segunda-feira, 7 de abril de 2014

Batendo à porta do céu, de Lisa Randall



É uma tentação leviana dizer que Lisa Randall não é Carl Sagan. Mas era o que passava pela minha cabeça na maioria das partes do bom Batendo à porta do céu, livro da Randall que trata com prioridade sobre o LHC, o maior acelerador de partículas do mundo (e que inevitavelmente fala também do maior fruto dessa faraônica obra científica, o bóson de Higgs, ainda que não com o foco central falseado pelo subtítulo da tradução brasileira). O livro é um meio termo em seu próprio desfavor entre um Carl Sagan e um Brian Greene, apelando pelo tom popular do primeiro e podando as arestas demasiadamente específicas do segundo, com isso incorrendo de forma involuntária em uma visível carência da erudição esotérica de Sagan (que decepciona a nós, amantes de literatura aficionados ao grande escritor que foi Sagan) e um certo comedimento em explorar um pouco mais a inteligência do leitor (coisa que Greene faz, apostando que do outro lado da página há um leitor um tanto mais sofisticado). Digamos que, se Batendo à porta do céu virasse série de televisão, dificilmente o tom de voz de Lisa Randall comportaria a trilha sonora reverenciosamente deslumbrante de Cosmos, com as paletas enfileiradas de Bach, Vivaldi e Vangelis.

Também me passava pela cabeça que deve ser uma raridade entre mentes expressamente cientificistas e matemáticas ter uma inteligência panorâmica do calibre da de Sagan. Me vinha a recordação dos ensaios da revista Piauí, escritos pelo João Moreira Salles, sobre mega-cérebros da matemática. Virou uma fixação do Salles escrever sobre matemáticos, desde que ele foi a um rincão da Rússia tentar encontrar aquele matemático que recusou a medalha Fields para morar com a mãe (Grigori Perelman, não o nome da mãe, mas do filho amoroso). Depois disso, como se tivesse havido uma contaminação cruzada de um vírus da paranoia, Salles desenvolveu uma bússola particular que localiza em qualquer raio planetário algum adolescente cujos altos dotes cerebrais estejam associados de forma inconteste a expressões como conjectura de Poincaré e a hipótese de Riemann. Felizmente, Salles descobriu dois desses tipos aqui mesmo no Brasil, e é um deleite ler o quanto esses tipos são determinadamente compressados dentro de seus funis em que tudo em volta não passa de fórmulas numéricas. São confortavelmente limitados no interior de seus assustadores QIs. Um deles disse que, em uma viagem de avião, pegou certo romance clássico para ler (não sei se O retrato de Dorian Gray), mas o abandonou na trigésima página por intuir tudo o que viria a seguir da trama. O mesmo, na troca de e-mails com um colega, aproxima o problema matemático em que estavam lançados da estrutura da hemácia, mas conclui que não poderia avançar mais por desconhecer por completo mais informações sobre hemácias, coisa que se perguntasse qualquer dedicado estudante de segundo grau poderia responder com proficiência. O último artigo de Salles sobre essas entidades da alta abstração matemática conclui com um parecer de um professor, que diz que a matemática atual não tem nenhuma aplicação pragmática direta, que é como a poesia ou a música.

Seria muito esperar poesia e música da prosa de Lisa Randall? Acho que sim, e quem for ler seu livro não espera encontrar bem isso. Mas Randall percebe a sua própria limitação em se mostrar simpática às massas, e ela mesma usa das velhas técnicas em se fazer inteirada com as conexões da linguagem fora da academia científica. E isso soa falso, às vezes forçado. Se Greene faz uma referência à frase de Camus sobre o suicídio ser a mais capital das questões humanas, na famosa abertura de O tecido do cosmos, Randall pretende fazer as mesmas intersecções literárias citando Tennyson e Fielding, mas, ao contrário do uso relevante de Greene, Randall transparece nunca ter lido Tennyson e Fielding, aliás, transparece nunca ter se importado a mínima para literatura ou qualquer outra coisa fora a ciência. Daí, emulando as dissecções da superstição humana feitas por Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios, Randall escreve um arrastado capítulo em que desmente a possibilidade apocalíptica de que o LHC venha a provocar o surgimento de buracos negros e com isso devore a Terra. Se limitasse à explicação satisfatória que introduz o capítulo, a coisa estaria em bom tamanho, mas aí, para assombro do leitor (que pensa, "mas ela está mesmo se lançando a uma argumentação didática tão capenga?"), Randall produz umas quase cinquenta páginas em que debate sobre as previsões catastróficas da economia mundial a partir de 2008, os efeitos deletérios da industrialização no clima, as guerras do Oriente Médio e a ameça nuclear. Com uma fixação em citar personalidades importantes com as quais se depara em suas tantas palestras e eventos sociais pelo mundo, Randall se aventura a uma chata aproximação de equivalências entre a bancarrota do banco Goldman Sachs e à empresa de seguros AIG e a previsão de danos do LHC à sobrevivência do planeta, tudo para fazer uma costura mal ajambrada em que insiste de maneira exagerada na afirmação de os buracos negros não são ameaças no LHC. O leitor do excepcional O mundo assombrado pelos demônios sabe que Sagan estuda a fundo as formações de círculos nos campos de trigo americanos, entre outros fenômenos da crença humana pelo fantástico, com um apuro e uma eloquência que situa tal livro tanto entre os de história como entre os de divulgação científica, usando amplas fontes bibliográficas e investigativas, enquanto Randall se baseia no mais crasso senso comum googleista para compor páginas que muito melhor seria se fossem reduzidas em 90% de tamanho.

Mas o livro compensa quando Randall faz o que sabe fazer, pela ótima parte inicial em que detalha tudo sobre o LHC, sobre o passo a passo de como foi feito, sobre a importância grandiosa do LHC para as futuras descobertas científicas, sobre os conceitos de comprimento de Planck e física de partículas. Uma parte notável é a que ela fala sobre a beleza estética do LHC, como uma das maiores obras de arte da engenhosidade humana. As últimas partes do livro (partes IV e V) são instigantes, as que tratam sobre o bóson de Higgs. E compensa também pela surpreendente humildade de Randall diante a enorme limitação em que simples trezentos anos de maturidade científica nos acondiciona.

Lisa Randall: boa quando não fala de política e economia.

20 comentários:

  1. A Dava Sobel, autora de Longitude, pra mim escreve tão bem quanto Sagan. Pena que seu livro seja pequenininho...

    Eu li um artigo na Piauí sobre Perelman, mas era traduzido. Como se chama esse de João Moreira Salles?

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    1. Não me lembro bem se esse do Perelman foi do Salles, agora que você tocou no assunto. As minhas edições da Piauí estão amontoadas aqui e é impossível pesquisar. Tinha para mim que era. Mas ele escreveu no mínimo dois sobre diferentes jovens prodígios da matemática, brasileiros.

      Esse livro da Randall é extenso demais. É bom, mas as longas divagações dela sobre ações da bancos e subprimes revelam que ser eleita uma das pessoas mais influentes do mundo a desestabilizou de ser cerne. Uma espécie de síndrome de oráculo.

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  2. Carl Sagan, na década de 80 e no início dos 90, foi minha leitura predileta. “O Pálido Ponto Azul” me comoveu profundamente… Embora não sendo físico, mas metido até o pescoço em meu doutorado, bebia de suas linhas tal qual um inocente aprendiz… Sagan sempre me preencheu de esperança no futuro humano… Embora sendo ateu, Sagan nunca atacou qualquer religião… Creio que, no fundo, a ciência lhe ensinou uma elegantíssima humildade… Sagan foi um daqueles que, sem dúvida, acrescentou conhecimento durante a sua passagem entre nós.

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    1. A diferença é que desses divulgadores da ciência, só Sagan é um grande escritor, na acepção mais literária do termo. "Bilhões e Bilhões" é magnífico. Ele escreve sobre tudo sem o mínimo traço de pedantismo.

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    2. Tempos depois
      de ter lido “O Pálido Ponto Azul”,
      em homenagem a Sagan, escrevi…
      .
      .
      GOIABEIRA
      .
      .
      Éramos o pálido ponto azul
      n’ olhar da libélula metálica
      que estava além de Saturno.

      Sim, somos insignificantes.

      Por isso as coisas GRANDES são dos grandes, e
      as coisas raras dos RAROS. Por isso a goiabeira
      dedica maduros ao bem-te-vi que não é dono de si,
      mas que sem saber espalha sementes… ao futuro.

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    3. PS: nos dois primeiros versos da última quadra, a composição GRANDES/RAROS é um condimento nietzschiano para dar sabor, aroma e paladar à viagem da Libélula Metálica que, atualmente, voa lá pelas profundezas… além de Plutão.

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  3. Dava Sobel é uma grande escritora, no sentido literário. Agora Longitude, seu grande livro sobre a invenção do cronômetro, é antes de História que de Divulgação.

    Procurei no site da Piauí, e encontrei quatro bons textos de Salles sobre matemática e mais um indisponível. Um obituário de Mandelbrot, o dos fractais; o ótimo perfil de Artur Avila, que eu já conhecia de quando saiu em revista; e dois da seção "esquina" sobre vencedores do Fields dando palestra no IMPA (instituto mencionado em todos os quatro textos). Perelman está em outro texto mesmo.

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  4. "I can remember one occasion, taking a shower with my wife while high, in which I had an idea on the origins and invalidities of racism in terms of gaussian distribution curves. It was a point obvious in a way, but rarely talked about. I drew the curves in soap on the shower wall, and went to write the idea down. One idea led to another, and at the end of about an hour of extremely hard work I found I had written eleven short essays on a wide range of social, political, philosophical, and human biological topics. Because of problems of space, I can’t go into the details of these essays, but from all external signs, such as public reactions and expert commentary, they seem to contain valid insights. I have used them in university commencement addresses, public lectures, and in my books."

    Ele fumava uma erva, ia tomar banho com a mulher e tinha idéias para ensaios. O maior ser humano de todos os tempos, o Carl Sagan.

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    1. O Sagan realmente era demais. Viu o novo seriado Cosmos, o que fizeram? Ficou constrangedor com aquele apresentador novo. Pura forma, sem espírito.

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    2. Charlles, tô acompanhando o novo Cosmos sim, mas não tô achando tão ruim assim não... O Neil D. Tyson não é o Carl Sagan, nisso eu e provavelmente o resto do mundo concordamos plenamente contigo, ele não passa nem perto, e algumas tentativas de poesia que tentam fazer ali soam bem capengas (desconfio que a dublagem não ajude muito). Mas a mera exposição daquelas coisas todas, as imagens, a narrativa por mais simples que seja, todos os três primeiros episódios me entretiveram bastante até aqui. Nisso nós divergimos: bem sei que a ciência é insuficiente para você, quando desprovida dessa margem para especulações mais esotéricas; já eu acho tudo aquilo fascinante, eu diria até emocionante, tanto quanto as melhores ficções e tabulações. Consigo gostar até dos livros do R. Dawkins, veja você! (Aqueles em que ele fala sobre genética e evolução; os sobre religião eu não li, e nem tenho muito interesse.) Acho que com isso ficam bem demarcadas nossas diferenças, apesar de compartilharmos a preferência pelo Meddle, o que não é pouco...

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    3. Gosto muito de divulgação científica também, Fabricio. Gosto muito do Dawkins. Só acho que a série Cosmos é indistinguível de seu criador, Sagan, para que outro tomasse seu lugar. O cara poderia ter feito uma série própria, sem apelar para a assinatura. Me parece muito um oportunismo mercadológico em cima de Sagan.

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    4. João Antonio Guerra9 de abril de 2014 às 19:25

      Sei nada de Sagan, e vou só aproveitar a rápida menção ao Meddle (para mim um álbum realmente amável, mas menos por sua totalidade do que por Echoes, que considero uma das coisas mais maravilhosas que já ouvi) e botar este link aqui, uma gravação recém descoberta de Wish you were here com a participação do Stéphane Grappelli: http://www.openculture.com/2014/04/pink-floyds-wish-you-were-here-with-stephane-grappelli.html

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    5. Ah, sim, nesse aspecto você tem razão, Charlles. Utilizar "Cosmos" é hollywoodice. Não precisava. Nem o gancho do Neil D. Tyson ter sido discípulo do Sagan justifica. Mas me surpreendi: você gosta do Dawkins? Lembro de já ter lido palavras suas não muito laudatórias sobre ele... Ou não?

      Logo mais vou ver o link do Floyd, João! No momento tá rolando um Hendrix aqui, o "Axis", que é disco para se ouvir direto sem interrupções.

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    6. Tenho mais dois aqui do Dawkins, além de Deus um delírio, mas esse último foi o único que li, por enquanto. Aguardando o estalo pra ler. Mas não é só para sentar o malho no cara, mas por ser uma leitura instigante.

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  5. Acho que fazem uns 2 anos que descobri teu blog e só hoje descobri sou viciado nele.

    Pode parecer loucura - talvez seja - mas sempre releio teu texto do Sabres e Utopia do Mario Vargas Llosa.

    Enfim, um abraço e continue tocando a bola pra frente, que eu estarei aqui para ler e quem sabe daqui a alguns anos comento de novo.

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  6. É Realizações com 50% de desconto.

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  7. João Antonio Guerra13 de abril de 2014 às 20:20

    Li este texto na Salon, http://www.salon.com/2014/04/13/david_foster_wallace_was_right_irony_is_ruining_our_culture/ , e ficou apitando na minha cabeça após a leitura: porra, eu já li isso lá no Charlles!

    Dei uma olhada rápida: foram seus dois textos após a leitura de Knausgard, especialmente o segundo, "A hora de abandonar uma ideia'.

    http://charllescampos.blogspot.com.br/search/label/Karl%20ove%20Knausgard

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  8. Ótima resenha do livro da Randal. Concordo em quase tudo nas opiniões postadas.

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