quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O direito de ser Paul Auster

Leonardo Padura Fuentes

Em Negro dorso do tempo, esse que é o mais independente dos escritores espanhóis dedica páginas reveladoras sobre o mais independente dos escritores cubanos: Javier Marías relata as deliciosas conversas que tinha com o casal Cabrera Infante em Paris. Cabrera Infante dedicava longas horas a contar piadas e acontecimentos surrealistas que ele e seus amigos passavam pela Europa, de maneiras que Marías ressente de que o tempo desses encontros era incompatível com o torrente aparentemente inesgotável de histórias impagáveis que o autor de Três tristes tigres tinha para contar. Em nenhum momento, pelo menos no livro de Marías, se fala em Cuba, ou ao menos se vê algum vestígio de que Infante era um dos mais notórios intelectuais exilados do regime de Fidel Castro. Não se fala em Fidel, de revolução, e nem dos amados charutos cubanos para os quais Infante chegou a escrever um livro inteiro como tema. Para um certo tipo de leitor relativista, o relato de Marías pode ser visto como levianamente superficial e indevidamente apolítico em se tratando de um tema latente caro para os escritores modernos que se expressam em espanhol, e junta-se a isso que Marías às vezes é criticado pelo que alguns abstratamente julgam ser um ar de empáfia e um distanciamento senhorial de escritor na torre de cristal. Falar de Cabrera Infante sem citar nem passageiramente a realidade política corrente em que tal escritor está instalado pode parecer o maior dos pecados. Para outros leitores, entre os quais me incluo, a atitude de Marías é coerente ao seu depoimento de que vender milhões de livros tem a vantagem de o permitir escrever o que quer, sem prestar vênias a estados ou órgãos de ofício. Talvez a ausência de interlocuções óbvias em seu relato sobre Infante possa ser uma provocação, o que corrobora a essa impressão o fato de Negro dorso do tempo ser um compêndio de personagens reais que sofreram a indistinção de sempre estarem apegados a circunstâncias históricas. 

Talvez a atitude de Marías resume o que o atualmente mais conceituado romancista cubano, Leonardo Padura Fuentes, escreveu em um ensaio intitulado Eu queria ser Paul Auster. Como cita Jon Lee Anderson em um recente artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí deste mês, Padura escreve: "Nunca perguntam a Auster que direção ele acha que a economia americana devia tomar", ou "por que ele não foi embora do país durante os anos horríveis do governo de George W. Bush". É nessa ruptura às expectativas que nos dois grandes romances de Infante vemos uma Cuba visceral, com putas e cantores de bar (as putas e cantores que serão marca registrada da literatura cubana assim como o são da literatura argentina os professores catedráticos e bibliotecários assolados por mensagens enigmáticas), com jovens nativos que sonham com a cultura de massa norte-americana e a ela se entregam com apaixonante libertinagem; em suma, em Tristes tigre e Havana para um defunto infante (esse último um marco do quanto pôde chegar a expressividade das letras latino-americanas só comparável a Rayuela, se não lhe for superior), Infante faz um prosseguimento em negativo da literatura norte-americana, uma espécie de releitura de todas a superioras características estéticas que se faz naquele continente no campo do romance, só que ressaltando, através de intrincados jogos subliminares, o que o fato de ser cubano retira de liberdade e de não-compromisso salutar com o que pede o partido ou a política mais baixa. Nisso é que o escritor cubano se diferencia do escritor americano: o segundo, como diz John Updike, pode muito bem fazer seu trabalho sem nunca ser incomodado pelo seu país. Infante foi tachado de traidor ao deixar Cuba após 1959; é pouco lido e respeitado na América Latina, ainda hoje (como se por aqui a passagem do tempo trouxesse a suavidade da compreensão retroativa). Com presciência, Infante escreveu com brilhantismo sobre sua Cuba juvenil, com todos os elementos helênicos etílicos de uma sociedade que estava de todo modo muito distante da redenção democrática, em um caminho ou outro, mas que se refestelava, como toda pátria de desmandos e submissão, em sua alegria libertária particular. A Cuba de Infante é como a estrada de Kerouac, ou a América sem fim dos demais autores out-siders americanos, ou a Bahia de Amado. Ler sobre o quanto o cinema americano era uma aquisição espiritual de empréstimo na ilha é tão bom quanto ler as melhores páginas de Philip Roth sobre os adornos particulares de sua maturação sexual, as piscinas do camping, os ônibus interestaduais, as estações de metrô, os grandes apartamentos luxuosos de uma Nova York efervescida pela lubricidade dos anos 60 e 70. Infante faz de Cuba o país mitológico perdido por uma excrescência inevitável da interrupção da História, do mal gosto da realidade em vir colocar de ponta cabeça o que era matéria efetiva de sonhos e identidade imaginária. 

Padura é muito mais áspero em seus livros policiais sobre a Cuba de 65 anos para cá. Ele diz que, subempregado e perseguido pela censura da ilha, ele se fechou em sua decisão de ser romancista lendo apenas autores norte-americanos e cubanos. Ninguém sabe escrever melhor que os americanos, ele sentenciou de uma vez. Leu Faulkner, Roth, Salinger, e todos os outros. Sua Cuba, como a Cuba de Pedro Juan Gutiérrez, é a nação das putas e dos famélicos, da corrupção moral em todos os níveis, da perseguição ininterrupta pela sobrevivência, do mercado negro e da pinga feita com ácido de bateria, do assassinato diário e perda do poder mínimo de ser um cidadão que já não é apenas uma carência social, mas uma mutilação na alma. É impossível ler Gutiérrez e Padura, ou ler órbitas mais ligeiras de reportagens como o artigo de Lee Anderson, e ter estômago de aço eufemístico para ainda defender a Cuba de Fidel.

Padura reivindica seu direito de ser Paul Auster, o menos político e mais comedido dos romancistas americanos. Reivindica o direito de escrever uma crítica pelas beiradas, sutil e contundente, como fez Infante de seu refúgio parisiense, sem ser retalhado e perseguido dentro e fora de Cuba. Ele mora na mesma casa em que morou seus pais e ainda mora sua mãe, em um bairro perigoso e barulhento, longe 40 minutos do centro de Havana. Teria como morar em outro país, mas é muito apegado às memórias e ao imaginário de sua Cuba particular, a seus antepassados. Ele não quer outra coisa que quer todo escritor: ser deixado em paz pelo seu próprio país.

3 comentários:

  1. Charlles, esse comentário é de UTILIDADE PÚBLICA aos pais com filhos em idade inferior a 5 anos.
    Ontem, Charlles, eu, minha mulher e meu filho pequeno, fomos comer um churrasco em uma praça perto de casa. Pois bem… Feito os pedidos… Estávamos tranquilos… De repente, meu filho se engasgou com um pedaço de carne… Foi um desespero… Vi meu filho morrendo, sufocado… Tentávamos de tudo e cada vez mais aumentava o desespero…
    Não sei como!..., na mesa ao lado, havia uma ENFERMEIRA que percebeu instantaneamente tudo… Feito um relâmpago…, ela saltou de sua cadeira e abraçou meu filho pelo abdômen e, em movimentos bruscos, apertou o seu diafragma… Assim meu filho conseguiu expelir o pedaço de carne, que estava alojado em sua garganta.
    Ela salvou meu filho!!!… No desespero, nem perguntei seu nome… Em completo estado de choque ainda me encontro… Não consegui dormir… Decidi entrar em contacto com todos os meus amigos com filhos pequenos…
    PELO AMOR DE DEUS!!: ENSINE, POR FAVOR, AOS SEUS PEQUENINOS O TRIVIAL ATO DE MASTIGAÇÃO. REFORCE A ORDEM!!!: SE NÃO CONSEGUIR MARTIGAR CUSPA TUDO!!!!!!! ALÉM DISSO: É FUNDAMENTAL APRENDER OS PRIMEIROS SOCORROS (ONTEM, EM TOTAL DESESPERO, PERCEBI QUE NÃO DOMINAVA COISAS TÃO FUNDAMENTAIS).
    ESTOU AQUI, EM NOME DE DEUS, AGRADECENDO A GRAÇA RECEBIDA…: MEU FILHO ESTÁ VIVO!

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    1. Que bom que foi só um susto, Ramiro. Tem uma organização boa aí que divulga essas situações de risco, não me lembro o nome, mas é daquelas propagandas que simula a visão das crianças visto por um adulto (as tomadas elétricas como carinhas sorridentes convidativas, etc.). Sou um pai excessivamente paranoico nesses assuntos.

      Forte abraço para você e seu filho.

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    2. É, Charlles, também sou paranoico nesses assuntos… O problema são os detalhes que passam despercebidos…
      Agora, refletindo com mais calma, lembrei de que meu filho havia reclamado, segundos antes do acontecido, que estava com dificuldade de mastigar porque um de seus dentinhos estava um pouquinho mole (ele está com quase 5…). Recomendei que mastigasse mais com o outro lado da boca. Aí foi meu erro ou minha imprecisão…
      Deveria ter recomendado a ele que tirasse - com a mão - pedacinhos do espeto. Mas eu estava distraído… Além do mais, em outra ocasião recente, ele já houvera comido sem qualquer problema um espetinho… Triste ilusão!
      Agora aprendi: com filhos pequenos não pode ocorrer distração! Tem de ser marcação cerrada!

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