quarta-feira, 12 de junho de 2013

Mustang



Conservava um Mustang 53 que havia adquirido em um de seus relativizáveis lances da sorte_ em uma noite das fogueiras juvenis em que havia mais de altruísmo despertado pela sensação de amizade eterna do que propriamente do jogo das barganhas do mundo das enganações comerciais, em que um finlandês de nome impronunciável com quem jurara promover a última revolução e não se viram mais por esses 15 anos lhe vendera por uma ninharia simpática_ , tratando-o com tanto zelo que aquilo passou a ser o sinal de seu nível de importância com a vida, não escovar os dentes ou manter o couro das botas lustrado como era do conhecimento popular de o quanto os soldados ainda se interessavam em despertar mais um dia nesse mundo, mas encerar o metal vermelho de impositiva quietura transatlântica, fiscalizando a qualidade das soldagens das mangueiras do carburador e o óleo da corrente de giro. Entrava no Mustang e andava pela cidade, o ruído branco do motor de 8 cilindros o consolando de suas tantas derrotas e tantas angústias não muito bem definidas, o adolescente tardio cujas bolsas de tempo escureciam por sob seus olhos e os músculos do rosto começavam a ter aquela maceração flácida não isenta de dignidade sexual, em última instância ainda competitiva mas que as garotas eram intuídas como por um indicador barometral de que ele já era de uma geração anterior; atravessando as ruas do centro e ganhando as empoeiradas vielas históricas periféricas, com o mesmo olhar distraído que usava como defesa contra o excesso de informações sensoriais, fumando um cigarro e equilibrando o ronco taciturno daquela beleza de espírito geminado ao seu com o pé no pedal da embreagem. 

À medida que segue adiante, sem rumo, sabe que deveria voltar. É possuído pela percepção de inutilidade de estar dentro do carro, parceiro dele e seu falso dono, em que o Mustang se compraz a simular que aceita a ordem desse elo. Sabe que o Mustang adiantou-se dele em duas décadas de existência e continuará a persistir em sua investidura indelimitadamente prorrogável por sobre a Terra, passando-o em anos e revertendo aquele jogo. Enquanto pisa no acelerador e escuta o motor ceder com um esbaforir fingido que se transforma em uma tranquilidade de alguém seguro de sua potência, pensa que terá seus componentes orgânicos desaparecidos até um derradeiro átomo formalmente identificável, derivando-se para o avatar de adubo ou rocha, e o Mustang ainda será a fraude piedosa que um dos engenheiros da Ford arranjara para ocupar o cronograma vaidoso do sonho de permanência: lata, pneus, o para-brisa largo entristecido por milhões de micro-fístulas recebendo o amarelo despersonalizado do sol, encalhado em um pátio soçobrado por camadas jurássicas de óleo de motor de alguma oficina mecânica; talvez essa sendo a única herança afinal que ele transmitirá como uma maldição para a máquina, a de ter que conviver em instâncias cíclicas com o abandono. Mas haverá sempre algum adolescente naquelas épocas futuras em que os mesmos velhos regimes de privação financeira e as mesmas velhas crises fleumáticas da história ativarão o desejo por possuí-la, por trabalhar na recomposição de seu ronco de lince subjazido pela câimbra das décadas, remodelar com uma tinta acrílica sua couraça de galeão calcinado, desencavá-la de sua mortalidade e fazê-la expressar com o orgulho das divindades imorredouras sua condição cambiável de amuleto sexual.

2 comentários:

  1. Isso me lembrou aquele filmeco supervalorizado, Beleza Americana, onde um babaca, para recuperar o "sonho americano", simplesmente deixa o emprego e a família para voltar à adolescência, voltando até mesmo a trabalhar como atendente de lanchonete, sendo seu sonho supremo dirigir um Mustang vermelho, obvio símbolo fálico com o qual sonha adentrar em ninfetas. É claro que o filme é crítico à imbecialização do american way, ao próprio cinema infantilizador de Hollywood, mas ainda sim ele trai um grau de "autenticidade" do desejo, e aí descambamos para a babaquice não do personagem, mas do filme mesmo.

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    1. Da minha parte, foi só um divertimento. Depois que me lancei a assistir a filmografia do Tarkóvski, até mesmo esse anteriormente cultuado por mim filme do Sam Mendes fica desbotado.

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