sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Nostalgia



Eu li muitos romances neste ano de 2012. Não vou cair no pedantismo de enumerar um por um aqui, mas nesse ano tive descobertas valiosas, como os nove livros de Javier Marías que me caíram nas mãos, Javier Marías que é o escritor que mais comporta o epíteto de maior escritor vivo da atualidade. Li a trilogia magnífica de Seu Rosto Amanhã, uma jornada insuperável nas mais nostálgicas qualidades clássicas do romance, uma experiência que tenho como uma das mais fundamentais de minha carreira de leitor. E no entanto, cheguei à conclusão de que o melhor livro de Marías, seu trabalho mais delicado e transcendente, o que ele conseguiu criar uma impactante sutileza crítica, é Os Enamoramentos, essa obra que não me sai da cabeça e me vejo retornando a ela a cada dia tentando compreender, tentando captar todos seus sinais sublimes e subliminares. E nostalgia é a palavra que mais define o que está a acontecer com o gênero do romance e com os níveis de inteligência de hoje. Tenho a incômoda suspeita de que um romance como Os Enamoramentos não tem serventia nenhuma no universo do pensamento atual. Mesmo Marías, nas tantas manifestações públicas sobre essa ficção, parece se mostrar cético, auto-depreciativo, um tanto já ultrapassado a linha de cansaço. Intuo que logo Marías vai entrar nessa categoria estoica de escritores que declaram sua aposentadoria. Li algumas resenhas sobre Os Enamoramentos, e a maioria delas se divide entre o elogio plástico, de quem parece que não leu o livro mas leu sua sinopse, e dos que realmente leram mas não demonstram uma atenção à altura do que o livro tem a oferecer. Poucas revelam uma leitura cuidadosa e, em consequência, a apreciação exata da sua grandeza.

Em contrapartida, os romances tidos como revolucionários, deliciosos, canônicos e fundadores, que tem aparecido por aí, me causam espanto. Estou a 50 páginas de terminar A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, um romance que vem com adendos de odes à sua excelência, retirados das tantas resenhas maravilhadas dos mais importantes jornais do globo, e me sinto constrangido de não compartilhar da festa generalizada em torno desse recente bezerro de ouro das letras. Os blogs literários fizeram frente também em decretar que A Visita... é uma obra-prima moderna. A nota principal dessas loas é sobre a agilidade da escrita de Egan, seu domínio excepcional das técnicas da ficção, etc, etc. E, contudo, a mim, tal livro não parece mais que uma competente (mas um tanto superficial) ferramenta de entretenimento, sem nada que destoe disto para bem e para mal. A Visita... me consumiu a tarde toda de ontem. Uma historinha bem montada, com doses certas, cronometradas, de ternura, a velha solidão do envelhecimento, os velhos suicidas revelados quando estamos por nos interessar pela paixão pela vida demonstrada por eles, e, o que é a lei inexorável de tal forma que se transformou em uma praga da literatura atual: as manjadas cenas de sexo, desde boquetes a torto e a direito, até as penetrações esfuziantes que ocupam longas e langorosas tardes suarentas de verão. E a tal prosa sofisticada de Egan, não é mais que o uso de uma aluna muito bem treinada e profundamente conhecedora da história da ficção, em que emprega a já manjada técnica de recuo e avanço no tempo para mostrar o choque sensorial de um personagem no auge de sua força física e, no capítulo seguinte, mostrá-lo em uma cama, entubado após dois derrames, e tão velho e vulnerável que a única saída natural que lhe resta é a morte. Coisa que gente como Virgínia Wolf e William Faulkner já fazia quando Egan ainda estava nos testículos do pai. E A Visita é tão pateticamente moldado para agradar e ser relevante, que se torna chato; é tão inevitavelmente linear em sua astúcia de ser bombástico, que a mim é evidente que com a mesma febre com que o veneram, o esquecerão no mesmo prazo recorde que levaram para calar sobre Liberdade, romance "mais importante do século" sobre o qual já ninguém mais fala.

A Visita é todo composto em cima da receita de Como Fazer um Grande Romance que a serialização da cultura produz nos cursos de escrita criativa. Fala sobre o universo traumático ultra-descolado do rock do final dos anos 70; tem um rebanho de personagens identificáveis pelo leitor que procura uma catarse para suas insuficiências de indivíduo urbano e inserido na ética do consumo; tem a homeostase matemática de profundidade cuja linha de controle nunca é ultrapassada para que a coisa não fique cabeça demais; é, em resumo, um romance feito na mesma fábrica dos seriados da tevê americana, com aquela inteligência coloquial cheia de insigths pretensamente iconoclastas que causam uma imediata impressão de ganho estético no espectador, mas cuja pobreza estrutural acobertada joga tudo no lixo da memória em pouco prazo. Romances como esse servem muito à sociologia americana, é uma ferramenta poderosa para compreender sobre a atual proficiência técnica do capitalismo que funde a mídia com as tendências controladas das modas de consumo, e sobre os mecanismos de escape e escoamento das frustrações comezinhas geradas por esse ciclo desespiritualizado_ é a forma mais funcionalmente grandiosa da utilização da arte para o apacentamento das massas, incluso aí parte das massas que se dedica a uma noção auto-elogiosa do apuro intelectual. Egan pode mesmo ser a maior escritora do que vem pela frente na mutação adaptativa do romance; ela tem a excepcionalidade da funcionária fiel altamente especializada; ela é o que escritores como Daniel Galera gostariam de ser: rápidas, situadas além da necessidade compulsiva de ter profundidade, que já teve a coragem madura e fenomenal de não pretenderem ser o novo Dostoiévski, para serem si próprias. E muito dessa excelência vem pela osmose de estarem no centro do mercado cultural mais efervescente do planeta, o que por si só já satisfaz grande parte dos fetiches da grande arte.

Ler esse romance ao mesmo tempo que se estuda a fundo a literatura russa de Dostoíévski e Tolstói é uma bruta de uma sacanagem com o livro. Mas é inevitável não sentir uma nostalgia profunda quanto aos romances que, na definição de Nietzsche, eram escritos com sangue. A Visita garante boas horas de diversão, esteja claro, mas não o envolvimento espiritual e perene de um livro como os de Marías, e tampouco como os dos russos pré-revolucionários. E não tem como não pensar em crise do romance quando se vê tal obra alicerçada como clássico instantâneo.

15 comentários:

  1. "Coisa que gente como Virgínia Wolf e William Faulkner já fazia quando Egan ainda estava nos testículos do pai."

    Isso é o que denomino de descer, digamos, o cacete com o cacete efetivo do pai do escritor... (Charlles, quero morrer seu amigo...).

    ResponderExcluir
  2. Charlles, uma reflexão de Lêdo Ivo que, sem dúvida, deve ser lida mas, principalmente, relida:

    “O grande escritor não precisa ser nem muito inteligente nem muito culto. A inteligência e a cultura são contudo indispensáveis nos escritores menores.”

    ResponderExcluir
  3. A tendência dos artistas hoje não é tentar parecer genial? Decerto. No entanto, acabam sendo patéticos por fim.

    A genialidade é um fenótipo que não se pode copiar.

    ResponderExcluir
  4. Antes que 50 shades of grey arruinasse o boquete por tempo indefinido, o boquete fora literário

    Before getting down to actualities, however, Maude had another inspiration-to make eggnogs. We had to switch the light on for that. The two of them worked swiftly, almost frantically. They poured a liberal dose of cognac into the concoction. As I felt it slipping down my gullet I felt it going straight into my pecker, into my balls. As I was drinking, my head thrown back, Elsie cupped her hand around my balls. "One of them's bigger than the other," she said laughingly. Then, after a slight hesitation: "Couldn't we all do something together?" She looked at Maude. Maude grinned, as if to say-why not? "Let's put the top light out," said Elsie, "we don't need that any more, do we?" She sat down on the chair beside the table. "I want to watch you," she said, patting the blanket with her hand. She got hold of Maude and lifted her up and on to the table. "This is a new one to me," she said. "Wait a minute?" She took my hand and drew me to her. Then, looking at Maude.... "May I?" And without waiting for an answer she bent forward and reaching for my cock, placed it in her mouth. After a few moments she withdrew her mouth. "Now... let me watch!" She gave me a little push, as if to hurry me on. Maude stretched out like a cat, her ass hanging over the edge of the table, the pillow under her head. She twined her legs around my waist. Then, suddenly, she untwined them and slung them over my shoulders. Elsie was standing beside me, her head down, watching with breathless absorption. "Pull it out a little," she said in a hoarse whisper, "I want to see it go in again." Then swiftly she ran to the window and raised the shades. "Do it!" she said. "Go on, fuck her!" As I plunged it in I felt Elsie slipping down beside me. The next moment I felt her tongue on my balls, lapping them vigorously.

    Henry Miller, The Rosy Crucifixion I, Sexus

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como já disse em algum post anterior, os únicos romances eróticos que são grandes não tratam de sexo: Lolita, O Teatro de Sabbath, alguma ou outra coisa de Anthony Burguess (Laranja Mecânica, Otocadordepiano). O sexo é um conducto para falar sobre a condição humana e, especificamente, a degradação espiritual. Lolita perde sua virgindade com um Charles quase pré-púbere sem graça e sem arrebatamento algum, e todo desejo do narrador se torna loucura. O diálogo de nota de rodapé entre Sabbath e uma de suas alunas gordas e inexpressivas só pretende ser suplantado em escatologia com a imaginada cena de masturbação de sua ex-esposa velha e alcoólatra. Por isso não suporto Henry Miller, e por isso Miller ser o sub-solo da toda grandeza literária: ele supõe alcançar a grandeza através de um esoterismo físico glandular esquizofrênico e eternamente juvenil, mas erra redundantemente ao dizer o sexo pelo sexo. Miller e suas tantas descrições saudáveis de uma ereção infalível, um falo de aço com asas, foi obtuso o suficiente para não sacar que a grandeza da literatura erótica está no falo brochado, na atriz pornô decadente, no câncer que remove a próstata e determina o fim da vida sexual, o casal composto por um professor arruinado e uma ordenhadeira de vacas quarentona com cicatrizes uterinas das tantas vezes que abortou. Miller é uma criança perto das cenas sexuais de seus pares como Pynchon (que descreve uma cena brutal de coprofilia em Arco-Íris da Gravidade), ou a sutileza de Charles Citrine descrevendo a vagina de uma de suas beldades como "todas aquelas deliciosas complicações de detalhes", em O Legado de Humboldt; e as tantas cenas de Roth que tanto fazem chorar de rir quanto pensar sobre a própria, íntima e encoberta degradação de quem as leem.

      Excluir
    2. "Let's put the top light out," said Elsie, "we don't need that any more, do we?"

      Luiz, infelizmente, não possuo a sua erudição em inglês, sou apenas um engenheiro-poeta que se pós-graduou. Amaria ler Joyce no original, por exemplo. Mas não consigo...

      Por outro lado, convenhamos, Luiz, que o texto acima de Miller poderia fazer parte do Genesis...

      Você concorda?

      Excluir
    3. Ramiro,
      O trecho caberia bem como uma cosmogonia Vaishna de um improvável Ménage à trois entre Vishnu, Lakshmi e Kali. Inteiros universos de fogo e éons se engendrando do sexo de Lakshmi. Sob a bênção de Brahma, a semente primordial de Vishnu...

      Excluir
    4. Discordo, Charlles.
      O sexo pode bem falar da condição humana. Mas ele certamente sustenta a si próprio.
      Henry Miller pode ser kitsch aqui e ali. Por exemplo, considero também de mau gosto o seu ocasional elogio à ereção. Mas é bem injusto classificar os seus livros como literatura erótica em razão de trechos como o transcrito acima.
      A preocupação de Miller nos livros dos "Trópicos" e na trilogia Rosy Crucifixion, passa longe da indulgência, do auto-erotismo literário. Ele escreve sobre o intelectual "vagrant" (vagabundo soa muito moralista). Faz parte de toda aquela turma que se desmembrou entre a geração maldita parisiense e mais tarde a literatura beatnik que você tanto considera.
      Se o intelectual cigano de Miller é também um imoralista, um sensualista no sentido pleno e completo da palavra, que há de mais?
      O sexo suscita considerações metafísicas, como também o faz, creia, Miller. Mas se ele perde o seu elo com o que há de mais primitivo, animal e telúrico, deixa de ser sexo e se transforma em alguma coisa Paulina. O velho combate entre carne e espírito.
      Ou vai me dizer que pensava na metafísica quando lia a conversa telefônica entre Sabbath e Kathy em Roth?

      Excluir
    5. Tentei ler Miller algumas vezes, mas a linguagem muito colorida me afastou dos livros dele, de forma definitiva. A tentativa de fazer uma poética bombástica com o erotismo é uma das coisas mais escabrosas da literatura, a meu ver. Lembro de que o narrador descrevia certa personagem usando esses termos: "ah! quanto o enlarguecimento daquela buceta deve-se a mim", e por aí vai, cheio de fogos de artifícios e imagens que pretendem ter o mesmo frescor perigoso da fé de Maiakóvski de que Lenin mudara o mundo para melhor, no caso aqui a ingenuidade da liberdade sexual. Pois é esse meio caminho de todas as coisas que me parece o mais repulsivo em Miller: meio caminho para o existencialismo, meio caminho para a audácia genial de Céline, meio caminho para a literatura beat, meio caminho para a crítica de um novo hedonismo ao capitalismo urbano americano. Na verdade me recordo agora que há um texto apenas de que não tenho completa ojeriza de Miller, um ensaio de não sei onde em que ele rasga o lirismo em descrever sua fé de que seria um grande escritor, pois desde cedo descobriu que só prestava para isso. Lembro que era um tanto enternecedor lê-lo confessando o quanto gastava dias inteiros descrevendo as minúcias do mundo para si mesmo em seus exercícios de sair da caverna. Mas tudo o mais de Miller soa o que há de pior no conceito de francesismos, e sempre o achei um poser, e na pior companhia possível, a deprimente Anais Nin, etc. Não teve a sorte de ter uma boa companhia, como a geração beat teve, a geração beat que para mim é valiosa justamente por ser direta, verdadeira, enérgica, o contrário da empolação e preciosismos fúteis do mais francês dos escritores americanos.

      O sexo na literatura nunca me interessou. Não consigo alcançar nem o mínimo de lubricidade com descrições sexuais escritas. E não vejo o sexo na boa literatura como algo que vale por si mesmo. Há sim grandes cenas sexuais, mas sempre remetem a outras percepções e deriva para o enfrentamento de outras verdades. Garcia Marquez, que tem estupendas cenas sexuais, servia dos sexo para configurar uma identidade telúrica de seus proto-machos desbravadores, numa antítese à sexualidade assepsiada dos norte-americanos da companhia bananeira. Na conversa telefônica de Sabbath, Roth já estraga tudo desde o início ao falar que a aluna era gorda, inexpressiva e com ar um tanto idiotizado.

      Excluir
    6. Luiz, tenho uma filha, hoje com 28 anos; porém, quando ela era pequenininha, na primeira vez que entrou no mar, me disse: “papai, papai, fui falando, baixinho, baixinho… e encontrei a música…”. Essa inocência cósmica é que sinto no trecho de Miller, que ressaltei. A metáfora da “não necessidade da luz” por que ela já está em nós, para mim, é fantástica… O sexo, aí, é um mero detalhe: a declaração é o que importa, pois possui essência vital.

      Excluir
  5. Tentei de diversas formas ter acesso a um texto recente escrito por Vargas Llosa sobre Miller, “Tropic Of Cancer: The Happy Nihilist”, mas descobri que não tinha acesso ao nono volume do Nexus, The International Henry Miller Journal. Em se tratando de Llosa, me parece notável que esse exemplar do conservadorismo pensante consiga ler Miller para além da obscenidade. Entendo quaisquer melindres em relação à obra de Miller em razão de seu misticismo mundano, sua fórmula de felicidade pseudo-epicuréia e do seu alardeado hedonismo contra-cultural.
    Isso nem é um rogo para que tente Miller de novo. Nem é, sei lá, uma defesa apaixonada do escritor. Meu ponto torto no início desse thread the comentários era fazer uma singela defesa do boquete literário :))
    Mas a mim me parece que Miller não é em absoluto o que você descreve dele. Ele é muito mais conectado com as preocupações dos poetas beatnik que você supõe e sua ligação (ainda que não biográfica) com a geração maldita que aporta em Paris umas duas décadas antes do próprio escritor vão além dos cuidados extemporâneos da vida exilada.
    O sensualismo de Miller é também, e acima de tudo, um sensualismo da imaginação, o ante-clímax da criação literária, ele transforma ante-sala da concepção literária, o foreplay do romance (se me permite as imagens cafonas) em romance, e isso é extraordinário. Sexus, Nexus e Plexus, apesar de saturados de um certo hedonismo, são uma defesa apaixonada da literatura enquanto vida reclusa na imaginação. Um sensualismo portanto que se espalha por todas as arestas da vida. Detalhe. Estou a mais ou menos 70 páginas de Plexus e não li ainda nada que poderia ser considerado como tipicamente Milleriano, nenhuma obscenidade, nenhuma vagina arrombada ou ereção quinquagenária.

    ResponderExcluir
  6. No mais, isso aqui dificilmente se sustenta. "Não teve a sorte de ter uma boa companhia, como a geração beat teve,"
    É curioso que normalmente as associações que se faz ao círculo de intelectuais próximos a Miller só aparece na figura de gente de menor expressão e quilate como Anais Nin e o Villa Seurat Circle. Ignora-se sua longa amizade com gente como John Dos Passos ou admiradores seus (enquanto era ainda um clandestino) como George Orwell.
    "When I first opened Tropic Of Cancer and saw that it was full of unprintable words, my immediate reaction was a refusal to be impressed. Most people's would be the same, I believe. Nevertheless, after a lapse of time the atmosphere of the book, besides innumerable details, seemed to linger in my memory in a peculair way."
    --- George Orwell, Inside The Whale (1940)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom, não penso que eu vá algum dia me interessar em restaurar Miller para meus preconceitos. Tenho um amigo meu, professor universitário de história, que adora Miller e quase rompeu nossa amizade ao tê-lo confrontado dizendo que Bukovski era melhor. Acho Miller um tanto juvenil e anacrônico, em um mundo em que o sexo já perdeu sua fleuma de coisa revolucionária. Pegue os nossos pais (somos, conceitualmente, da mesma geração), eles faziam parte dos jovens para quem um poster da Rita Hayworth semi-nua era um objeto de veneração radioativa, uma descoberta de peso espiritual. Lembro de meu pai dizendo que ver os calcanhares da Kim Novak era um evento que o deixava fisicamente nocauteado durante dias. Hoje, fazer uma adoração desse porte com Angeline Julie é puro despropósito, diante a pornografia alimentada a minuto nos milhões de sites de vídeos caseiros. Miller ficou estacionado nesse bezerro de ouro da vagina fantasmática, a vagina idealizada no início fulgurante da dita revolução sexual.

      E a alta literatura institucionalizada e de boutique dos EUA de hoje retorna desavisadamente a esse fetiche sem objetivo da glamourização do sexo esportivo. Jennifer Egan compôs um livrinho agradável, onde todas as ações rimam uma com as outras. Parece De Volta ao Futuro: uma coisa da década de 50 gera outra insuspeita mas refrigeradamente descoberta na vida dos personagens 30 anos depois. Tudo muito certinho e podado nas arestas, até com o direito da chateação chique de um pseudo-experimentalismo de 30 páginas em infográfico que não tem nenhuma relevância a não ser estarem lá para serem bonitinhas e ousadas. Tão divertido para os padrões de realidade de estofados macios do entretenimento sofisticado de hoje quanto o enorme aquário de peixes ornamentais da sala de espera de um psicanalista.

      Por isso concordo cada vez mais com Steiner, ao anunciar que toda literatura que se preze é, em última instância, teológica: ou esotérica, como dizia Bellow. Nada a ver com religião, mas com uma busca por formas de percepção menos comezinhas, a busca por algo que dignifique mesmo a falta de sentido (será que Beckett foi o último a fazer isso em extremos mais radicais?). E aí entra a diferença entre um boquete pynchoniano-rothiano, de um boquete milleriano-eganiano.

      Excluir
  7. Anacrônico, gosto de acreditar que não. Datado, talvez no que diz respeito ao hedonismo, que, ressalvas sejam feitas, passa longe de ser um fóssil do culto ao prazer de editoriais da Elle ou da pornografia anônima dos labirintos feitos de ciberespaço e de Frankensteins feitos da cabeça da Angelina Jolie sobrepostos a peitos e bucetas de desconhecidas.

    ResponderExcluir