terça-feira, 14 de agosto de 2012

Elias Canetti e o Manicômio



É um elemento de forte demérito a um anti-freudiano que seu relacionamento com a própria mãe seja pautado inconvenientemente pelas mais pródigas teorias edipianas de Freud. Entre tantas definições que possam ser dadas para a obra de Elias Canetti, esse búlgaro que se enquadra na espécie rara de escritor que produziu tanto um grande romance quanto um grande tratado de sociologia, a de ter sido um raivoso opositor da psicanálise revela as bases de sua necessidade de construir uma outra teoria que anteponha a explicação de seus tormentos pessoais às análises da psicanálise. Quando criança, foi ameaçado de castração pelo amante de sua ama-de-leite por ter visto o que não devia; seu pai teve um colapso e morreu à sua frente, sendo que pouco mais tarde  Canetti viria a descobrir que a causa fora a descoberta da infidelidade de sua mãe com um médico de um sanatório suíço; sua adolescência foi de um solitário e constante confronto com sua mãe possessiva e protetora, que por um lado o incutiu a noção da alta cultura através dos livros, mas por outro o isolou de qualquer contato feminino até uma idade tardia. Grande parte de suas lembranças desse período é a de sua mãe, resignada com a maldição que lhe caíra pela dupla tragédia advinda de sua traição _ a morte do marido e a falta de horizontes para a maturidade de ser mãe viúva_, e ele, sentados nas salas dos pequenos apartamentos pelos quais passavam, na Bulgária, Alemanha e Inglaterra, lendo em silêncio. Mesmo nos livros havia uma disciplinação séria, em que Strindberg, a grande paixão de sua mãe, ainda era proibido ao jovem Canetti dos autores alemães provincianos; que Shakespeare era matéria tomada para aguerrir a memória e a dedicação do filho, a sua urdidura espiritual que, conforme o exercício distintivo dos aristocratas falidos, o estivesse preparando para as novas e imagináveis dificuldades de um mundo em mudanças. A juventude de Canetti diante esse fardo oracular foi, então, um concentrado e premeditado plano de fuga. A única forma que ele tinha para olhar para fora era, em paradoxo, o que sua mãe lhe oferecia: os livros, que ele foi derivando para um recolhimento pessoal combativo que no fim, objetivava a escrita.

A sua libertação veio com a necessidade diaspória que tomou os refugiados das duas guerras mundiais, principalmente aqueles médio-europeus para quem a pátria sofria a dissolução das fronteiras territoriais, e o jovem Canetti veio a morar em sua conquistada independência em um quarto diante a um hospício, na Alemanha. Ele viria a se lembrar desse tempo com doce nostalgia: foi a época em que ele conheceu, entre outras mulheres, a filha petulantemente mítica e esquisitamente moderna de Mahler, e aquela outra que seria sua esposa para toda a vida: Veza. Mas foi ali, olhando os altos muros brancos do manicômio, e ouvindo os gritos imprecisos que continuamente erguiam-se deles para o acordar à noite, ou o desviar da escrita para olhar o indiferente céu das estações acima do prédio, que ele escreveu por três anos o seu único romance, essa peça sobre o inferno e livro cunhado numa maldade pura e inqualificável chamada Auto-da-Fé.  Diante tanta coisa represada que se condensara nas páginas desse livro, ele relutou não só  em publicá-lo como em mostrá-lo para alguém. Durante as trevas que se acentuavam pelo mundo, a opressão onipresente que regia as esperadas mudanças anunciadas por sua mãe, o definhamento de tudo que uma vez o definira como continuador de uma herança espiritual iluminista européia, Canetti escondeu esse romance a sete chaves, como se diz, ainda sem saber o peso que aquilo tinha, o real grau de estudo sobre o depravamento que seu filtro de lucidez obtinha como retrato dessas mudanças. Nunca foi assediado pelos males da modéstia, assim, sabia que havia conjurado algo de grandioso, e aquele não seria o tempo certo para mostrá-lo. Foram precisos muitos anos para que ele testasse a recepção do livro em leituras públicas, em que lia alguns capítulos com uma desenvoltura e encenação treinadas; leu-o para uma platéia em que estava Robert Musil, que o aceitou mas o rejeitou quando ele apenas citou o nome de Joyce; teve a aprovação de Hermann Broch, que o advertiu, porém, sobre os perigos de confrontar o mal de forma tão desescudada.

O romance tinha tudo para se enquadrar nas litanias freudianas: um intelectual que tem uma gigantesca biblioteca, isolado do convívio social, sobre quem cai a astúcia assassina de uma mulher sem atrativos e dominadora, e de um anão luciferino que é líder de uma gangue de pervertidos. Seria a mãe o traço subjuntivo inegável que rendia Canetti às teorias de Freud, e esses símbolos a sua procura de catarse? Voltara as costas soberbamente para o eco dessas possíveis leituras futuras, e se dedicara à composição de seu trabalho o qual acreditava ser a missão de sua vida: o compêndio monumental e minucioso sobre a relação entre o poder e as massas. Para isso, naquele paraíso de isolamento perfurado pelo grito dos loucos, Canetti se embrenhou na leitura de Kafka, sobre o qual iria escrever um ensaio fundamental, espécie de complemento específico de seu importante tratado, em que deslinda as cartas de Kafka a Felice Bauer. Naquele quarto no qual se imiscuía dos tormentos da história imediata, afundou-se em sua longa leitura sobre a história das religiões, dos reis africanos, o sultão de Delhi: Muhammad Tughlak, o caso Schreber, a imortalidade genuína de Stendhal, a Alemanha de Versalhes, o fogo sagrado de Jerusalém. Subliminarmente, arrebanhava material suficiente para seu combate involuntário contra Freud e o psiquismo do culto à doença almática  eterna e oni-operante. Pouco lhe importava Freud e as ideias modernas: a história lhe provava que o mal renascia a cada ciclo devido à inerente propensão humana à idolatria e à servidão, seja a uma ideia, a um líder, a uma tribo, a um totem  familiar, as hierarquias criadas, à humildade compulsória. As leituras exaustivas lhe mostravam uma linha diretriz de onde partia toda a aparente aleatoriedade dos movimentos históricos; davam-lhe um molde ao qual podia, sob certas posições óticas apreendidas, perceber um desenho diagnóstico que subjugava o homem desde o princípio dos eventos. Mas foi um acontecimento empírico que lhe serviu de iluminação à sua teoria, a noite de 9 de novembro de 1938, a Reichskristallnacht, a o pogrom de perseguição e assassinato de judeus, e destruição de sinagogas e prédios, na Alemanha, em que a turba ensandecida o pegara de cheio e o carreara para o centro dos incêndios e expurgos. Nessa noite ele intuiu os elementos significativos que abriria seu tratado, Massa e Poder, em que a unicidade independente se perde para dissolver o indivíduo em uma legião de pertença selvagem, desprovida de conceitos humanos afora o de ser parte concordante e mística de uma força da natureza, em que   o homem se torna um componente de deuses das trombetas de combate cuja voz de conjunto é a Floresta, ou o Fogo, o Mar, as Tempestades.

Quando já era um autor famoso, sua mãe ainda se recusara a vê-lo. Rejeitava que ele tivesse se casado com aquela mulher, escrito aqueles livros, envelhecido daquela maneira distinta. As páginas de sua autobiografia sobre a morte da mãe é uma das mais tocantes. Em sua fragilidade e solidão, a mulher que o concebeu se confinara dentro de sua mais rígida aristocracia espiritual e nostalgia de  antigas salas de infância, provérbios distorcidos e reconfigurados pelo tempo do que lhe diziam um pai e um marido imaginários e desaparecidos, sobre glórias imprecisas preservadas com fidelidades sem sentido ancoradas no acirramento da loucura. Seu triste vestido negro, seu chapéu de uma era evidenciadora de sua obsolescência, sua raiva cansada mas nunca resignada, de quando o filho crescido a vira furtivamente parada numa esquina, era a sua forma desamparada de ter enfrentado as mesmas mudanças que confrontaram as várias batalhas cerebrais do filho. Olhando-a ressequida e diminuída para mais da metade da altiva beleza da juventude, deitada no caixão, o filho descobre a última parte de sua infindável teoria, na maneira como ele e ela não se coaptaram a nenhum sistema, a nenhuma doutrina, como cada um se refugiou em um matiz do discurso, ele em sua busca implacável pelo conhecimento, ela fugindo ao conhecimento e se aprisionando no mais impiedoso ressentimento. Era um tanto injusto reconhecer nela uma das faces da tirania: talvez ele nunca encontrasse a palavra definitiva para seu tratado, a verdade pós-freudiana que entre eles ocorrera a inversão imperceptível em que o tempo, o silêncio, e a infidelidade da distância, usaram ele para tiranizá-la.

2 comentários:

  1. Depois da tua descrição, eu já o vejo numa sala mofada, com estantes desorganizadas e forradas de livros, sentado numa poltrona identica à da sua mãe. Alguém que não se tem vontade de conhecer, nem ao menos dirigir a palavra. Alguém que se não fosse a genialidade redentora seria sempre um sujeito a ser esquecido.

    ResponderExcluir