sábado, 26 de novembro de 2011

Uma Página Memorável de Garcia Márquez

Crônica de Uma Morte Anunciada não é um dos meus romances preferidos de Garcia Márquez. Mas essa única página, que trata das cartas que a esposa desonrada devolvida à família enviava durante meia vida ao esposo o qual a abandonara, sempre me emociona. Uma das mais belas passagens da literatura do nosso continente. (Tradução de Remy Gorga Filho.)



Bastava fechar os olhos para vê-lo, ouvía-o respirar no mar, acordava-a a meio da noite o calor do seu corpo na cama. Em fins dessa semana, sem ter conseguido ter um minuto de sossego, escreveu-lhe a primeira carta. Foi uma missiva convencional, onde lhe contava que o vira sair do hotel, e que teria gostado que ele a visse. Esperou em vão uma resposta. Ao fim de dois meses, cansada de esperar,mandou-lhe outra carta no mesmo estilo enviesado da anterior, cuja única intenção parecia ser a de censurar-lhe a falta de cortesia. Seis meses depois tinha escrito seis cartas sem resposta, mas conformou-se com a prova de que ele estava a recebê-las.

Dona pela primeira vez do seu destino, Angela Vicario descobriu então que o ódio e o amor são paixões recíprocas. Quantas mais cartas mandava, mais atiçava as brasas da sua febre, mas também mais aquecia o rancor feliz que sentia contra a mãe. "Revolviam-se-me as tripas só de a ver", disse-me, "mas não a podia ver sem me lembrar dele." A sua vida de casada devolvida continuava a ser tão simples como a de solteira, sempre a bordar à máquina com as amigas, como antes fazia tulipas de pano e pássaros de papel, mas quando a mãe ia deitar-se, ela ficava no quarto a escrever cartas sem futuro até quase de manhã. Tornou-se lúcida, imperiosa, senhora da sua vontade, e voltou a ser virgem só para ele, e não reconheceu outra autoridade senão a sua, nem mais servidão que a da sua obsessão.

Escreveu uma carta todas as semanas durante meia vida. "Às vezes não me lembrava que dizer", disse-me morta de riso, "mas bastava-me saber que ele as recebia." A princípio foram cartões de cerimônia, depois foram pequenos papéis de amante furtiva, bilhetes perfumados de noiva fugaz, memoriais de negócios, documentos de amor, e por último foram as cartas indignas de uma esposa abandonada que inventava doenças cruéis para obrigá-lo a voltar. Uma noite de bom humor entornou-se-lhe o tinteiro por cima da carta acabada de escrever, e em vez de rasgá-la acrescentou um post-scriptum: "Como prova do meu amor mando-te as minhas lágrimas." De quando em vez, cansada de chorar, zombava da sua própria loucura. Seis vezes foi substituída a funcionária dos correios, e seis vezes ganhou a sua cumplicidade. Só não lhe passou pela cabeça uma coisa: renunciar. E, no entanto, ele parecia insensível ao seu delírio: era como se escrevesse para ninguém.

Uma madrugada de ventos, pelo ano décimo, acordou-a do sono a certeza de que ele estava nu na sua cama. Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte folhas, na qual soltou sem pudor as verdades amargas que trazia apodrecidas no coração desde a noite funesta. Falou-lhe das cicatrizes eternas que ele deixara no seu corpo, do sal da sua língua, do rastilho de fogo da sua verga africana. Entregou-a à funcionária dos correios, que ia à sexta-feira à tarde bordar com ela para levar-lhe as cartas, e convenceu-se de que aquele desabafo final seria o derradeiro da sua agonia. A partir de então já não tinha consciência do que escrevia, nem sabia de ciência certa quem escrevia, mas continuou a escrever sem tréguas durante dezessete anos.

Num meio-dia de Agosto, estava ela a bordar com as amigas, sentiu que alguém chegava à porta. Não precisou de olhar para saber quem era. "Estava gordo e começava a cair-lhe o cabelo, e já usava óculos para ver ao perto", disse-me. "Mas era ele, gaita, era ele!" Assustou-se, porque sabia que a via tão decaída como ela o via, e não acreditava que tivesse dentro de si tanto amor como ela tinha para suportar isso. Vestia uma camisa empapada em suor, como quando o vira pela primeira vez, e trazia a mesma correia e os mesmos alforjes de couro cru com enfeites de prata. Bayardo San Román deu um passo em frente, sem ligar às outras bordadeiras atônitas, e pousou os alforjes sobre a máquina de costura.

- Ora bem - disse -, aqui estou eu.

Trazia a mala da roupa para ficar, e outra mala igual com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera. Estavam arrumadas por datas, em maços atados com fitas às cores, e todas por abrir.

4 comentários:

  1. Mas eu passo uma semana longe da rede e o senhor me apronta esses posts, seu Charlles. E logo quando estou soterrado de atividades. Mercem grandes comentários, que não sei se poderei fazer.
    Excelentes!

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  2. Farinatti, pensei em vc ao rever esse trecho do nosso Garcia Márquez.

    Abraço.

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  3. AMIGOS
    by Ramiro Conceição


    Não ter medo do efetivo novo.
    Não ter medo do efetivo antigo.
    Novo e antigo são afetivamente
    amigos!

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