sábado, 19 de novembro de 2011

Manha de Cavalo


Desde domingo passado até quarta-feira eu tive uma febre terrível causada por um  molar quebrado. Minha face direita ficou deformada por um inchaço que uma correlação de lógica cubista fez-me parecer um cavalo. Eu olhava no espelho o maxilar espichado e abria os lábios com os dedos para ver, admirado, o contorno da enorme bola de pus ali dentro. E a dor era extrema. O pior era que a impressão de segurança da odontologia moderna ficava subtraída pela impotência medieval do dentista em não poder fazer nada até que todo o inchaço acabasse. Tomei 550 mg de um forte antiflamatório, duas vezes ao dia, e já estava por cair em desespero diante a renitência da coisa em não querer capitular, até que na terça-feira acordei com a massa diminuída, a equinidade mutante já não tão evidente. Na janta, não tanto pela debilidade da moléstia mas para externar uma constatação biográfica, deitei a colher de sopa na mesa e, olhando para a Dani, disse o quanto minha vida mudara mesmo nos detalhes mais ínfimos desde que nos casamos. A última lembrança que eu tinha de ter tido febre dista uns sete anos. Fiquei três dias trancado em minha casa de solteiro, tremendo sob cobertores, e absolutamente indiferente quanto ao abandono. Depois de ter finalmente suado, levantei-me, tomei um banho e já estava de volta à vida. Agora_ continuava a dizer à Dani_ nesta febre, havia você a cada cinco minutos me perguntando como eu me sentia, assegurando-se de que tomei os remédios, ligando para o trabalho para dizer que eu não iria na segunda-feira, ligando para sua mãe para saber o que era bom para inflamações, e me administrando um chá de gargarejo de alho, vinagre e sal. De forma que não consigo entender como eu aguentava minha solteirice, não consigo mais me ver antes de você. (Talvez o que estivesse querendo dizer, inconscientemente mesmo para mim, era o quanto o casamento havia me deixado debilitado, sem aquela independência e auto-suficiência de quando eu era solteiro e que agora soa tão alienígena.)

Bom... a Dani e eu temos muitas coisas em comum. Gostamos das mesmas comidas, somos loucos por espaguete e talharim, por chocolate, por chá gelado, por posta de peixe, por leite batido no liquidificador com ovomaltine. Amamos a paternidade com uma devoção deslumbrada. Ela não é tão devotada aos livros como eu, e nem poderia ser, mas esporadicamente dividimos a leitura do mesmo livro e varamos noites a dentro comentando a obra. Ambos gostamos de casas antigas e espaçosas, preferencialmente com fantasmas, inclusive compramos uma. Ela tem um senso de justiça elevado que me deixa orgulhoso; certa vez chegou puta da vida aqui em casa por não ter visto uma alma viva oferecer a poltrona do ônibus para uma senhora, que seguiu toda a viagem em pé. Mas paradoxamente somos também muito dessemelhantes. Eu tenho uma calma explosiva; ela tem uma doçura permanente. Eu sou lacônico com desconhecidos e sempre me ponho na defensiva; ela é altamente social, o tipo de pessoa que todo mundo gosta. Ela já traçou itinerários de viagens para me desentocar de meu reduto confortável. 

Eu disse a ela que fico muito sensibilizado quando ela e as crianças viajam. Eles terão que passar a primeira semana de dezembro na casa de minha mãe, na capital, para os últimos exames da Dani afim de que o médico finalmente suspenda seus remédios. Já antevejo meu stress. Da última vez, discuti com ela pelo telefone, ela chorou, eu me senti um crápula e por aí vai. Outra coisa de que gostamos é do natal. Enfeitamos a casa, fazemos uma ceia, compramos todos os tipos de panetone e não estamos nem aí com as críticas de consumismo e o escambal. Ela me pediu um vestido, descaradamente. Eu nunca digo o que quero, mas ela sabe e sempre me dá livros. Desde a semana passada estou namorando a edição de Guerra e Paz, traduzida direto do russo, e a ser lançada pela Cosacnaify ainda esse mês. Como fiz encomenda de alguns livros antes de ter ciência desse lançamento, só poderei adquirí-lo lá para março do ano que vem. Todos os dias acesso o site da Cosac e namoro os dois volumes da maior obra de Tolstoi, do maior romance de todos os tempos. Traio todas as minhas leituras de Bauman ao me identificar como o consumidor padrão, possuído pelo fetichismo de que serei um excluído se não fizer parte dos felizardos da lista de pré-venda do livro. E se venderem toda a primeira edição e eles só lançarem uma outra daqui um ano?

Daí que minha esposa, que não consegue guardar surpresa, me revelou hoje que encomendou o Guerra e Paz e esse será meu presente esse ano. Um tanto astuciosa! Calculou as datas de lançamento e entrega e sabe que o presente chegará na semana em que ela e as crianças estarão na capital. Sabe que as 2500 páginas me consumirão pelo primeiro mês de licença prêmio que tirarei a partir de janeiro, de modos que sobrarão ainda três meses pela frente (incluso minhas férias) para que seu propósito de uma viagem ainda seja atendido. Talvez ela nunca tenha gostado de natal (tenho que consultar isso com minha sogra, sorrateiramente), e ela não faça outra coisa que meus pais faziam quando eu ainda era muito criança: me amanse. Uma semana a um mês de sossego da criança diante seu triciclo vermelho. Um mês de dominação supraciente de seu homem fragilizado pelos costumes domésticos para conduzí-lo como quiser. A mim só resta exercer meu papel: recolher-me ao quarto dos fundos, onde a música e a ótima leitura me afagam, e a lembrança de quando eu era um solitário viril, prepotente e seguro de si ao extremo, está para sempre confinada no fundo da memória.

6 comentários:

  1. O Guerra e Paz está nas livrarias por R$ 198,00. Não li, mas li Ressurreição. Na resenha de Guerra e Paz, Alcir Pécora cobre o livro de elogios, sem deixar de assinalar a grande quantidade de páginas dedicada às pregações tolstoianas no romance, justo o que me pareceu quase intolerável em Ressurreição. O problema é que Tolstói, em dado momento da vida, começou a achar a literatura algo fútil, e só se dava ao trabalho de produzi-la para fins de inserção de suas ideias de missionário. Juro que stou com um pouco de medo de ter pela frente trinta, cinquenta, páginas de pregação tolstoiana.

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  2. finalmente a dani!
    e eu li "me ame" onde tu escreveu equivocadamente "me amanse".

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  3. O amor tem dessas coisas, quando se completa no um e no outro, já não mais sabemos o que éramos antes, ou se sabemos, não entendemos bem como é que se vivia. Ainda somos os mesmo independentes, mas a conexão que por hora nos põe frágeis é o que nos cura mais rápido.
    Melhoras rápidas, Charlles. E uma excelente leitura do velho russo.

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  4. Obrigado, Nikelen. Já passou a dor, e hoje comecei o tratamento com o dentista.

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  5. Rachel, não vi essa pregação em Ressurreição. Há um caráter moral cristão acentuado lá, mas não a homilia direta. Sei que Hemingway dizia que o que atrapalhava a grandeza de Guerra e Paz eram as pregações...Mas, vindo de Tolstoi, tudo fica no lucro.

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  6. arbo, sempre a dani.
    Eu já sou desses caras conformados com a verdade: sem a dani, não me vejo.

    Abraços.

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