quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

"O Mal da Humanidade É a Ignorância"


Eu não sei por que cargas d’água algum filósofo anônimo foi gastar a sua chance de notoriedade escrevendo em grandes letras garrafais o seguinte aforismo na parede do banheiro público da rodoviária de uma cidadezinha do interior de Goiás: “O mal da humanidade é a ignorância”. Meu contato com esse seu resumo primoroso do motivo de estarmos atolados em milhares de anos de incompreensão mútua, foi como um tapa na cara que se leva no meio de uma multidão em fúria, tentando entrar no metrô numa segunda-feira de volta do trabalho, ou correndo à frente de um touro desembestado em uma festa em Pamplona: demorei-me a perceber a ofensa apenas quando tive tempo de sentar-me e sentir a face afogueada. Pois a frase estava à minha frente, descaradamente limitada a ser a si mesma, sem retoques gramaticais, sem alusões evangélicas, oferecida gratuitamente para a redenção dos incautos que vieram ali desatrelar o volume das bexigas , modestamente sem as aspas que levassem o olhar a procurar o nome do autor abaixo, desenhado em meu nível de altura e acima da cocheira de metal que as convenções da língua chamam mictório. Aquilo aos poucos foi adotando sua constituição fantástica, o que me fez espontaneamente virar a cabeça para o estranho que estava em pé ao meu lado firmemente ocupado na regra universal dos banheiros públicos masculinos em, em hipótese nenhuma, olhar para quem estiver ao lado, afim de não alimentar uma série de maus entendidos, e, olhando-o com um sorriso bobo, como dizia, a ver se nele havia o mesmo potente reconhecimento de uma obra da mais seleta genialidade, me veio a vontade de lhe perguntar o que ele achava daquilo. “Ei, meu chapa, olha só que coisa sobrenatural! O que tu achas disso?” Claro que não perguntei. Seria colaborar com o mal que a frase ali se prestava a denunciar. Subi o zíper da calça, fiz a mesma cara de zumbi desprovido de visão periférica, lavei as mãos e saí. Mas a frase, o mistério daquele apotegma iluminadamente fatigado de como quem diz o óbvio a um rebanho de cegos, não me saiu da cabeça. Enquanto dirigia de volta à minha cidade, enfrentando o calor tão gigantesco que retirara a antiga paisagem e tornara-se ele mesmo paisagem_ um tapete tridimensional de amarelo tremeluzente que se incendiava e se reconstituía como uma fênix de energias raiadas _, uma série de probabilidades a respeito de quem a escreveu, de como, quando e por que, me motivava a encontrar as respostas. Imaginei um simples funcionário municipal, que um dia recebe a ordem do secretário de obras públicas de escrever qualquer besteira ocupacional na parede da rodoviária a ser inaugurada. “O que propriamente o senhor quer que escreva?”, ele teria perguntado; “Ora, qualquer coisa, abra aí a Bíblia, o Novo Testamento, o Salmo, o Cântico dos Cânticos, e reproduza alguma daquelas frases exemplares. Só tome cuidado para não copiar algo que não faça sentido, das tantas frases que não faz sentido no Livro Sagrado.” E foi-se o pacato pintor de paredes ao destino predito, talvez não realmente tendo ouvido de um chefe imediato da prefeitura de uma cidadezinha perdida no cerrado a contestação iluminista à supremacia divina ilesa a erros da Bíblia, talvez não tendo recebido indicação do secretário nem mesmo de onde, em quais das paredes de tinta amarela nova da rodoviária teria a liberdade de escolher para de próprio punho desenhar um dos exemplos morais do Altíssimo. E esse funcionário, esse homem que deve ser miúdo, que em nada teria para chamar a atenção alheia se resolvesse desenhar a quadra de um jogo da velha na parede e efetuar a vitória dos pontos negros na vertical, chega à rodoviária deserta, ainda com sacos por menos da metade de cimento deixados no chão, andaimes desmontados mas não retirados, utensílios dos mil usados pelo pessoal da construção, olha desconsolado para as tantas paredes que lhe assediam com a possibilidade de ser posto ali as palavras do monarca Davi, ou de um dos apóstolos do Cristo, e, num surto de ousadia que deva ter ocorrido não necessariamente de imediato, mas depois de se sentar no meio-fio e gastar algumas divagações derivativas, num repente de enfado com a espécie da qual faz parte,  num arroubo de calma e inconformada loucura que só na aparência parece ter explodido do nada assim tão espontaneamente, mas como todos os desabafos do espírito estava assando dentro de si por décadas, ele pega do pincel, a régua de precisão, o balde de tinta preta, vai até o banheiro ainda imaculado e escreve na parede acima da bacia de ferro longilínea onde se despejariam litros de mijo de tudo quanto é homem estranho e apressado da região de São Patrício: “O Mal da Humanidade é a Ignorância.” Demora-se uma ou duas horas, não sabe ao certo o quanto de suspensão de tempo se lhe consome a criação, arrematando as ombreiras do M, afiando a trave de união do H, caudalizando a astúcia quieta de gato deitado do g, o bigode francês impositivamente não chamativo do circunflexo. Depois do serviço todo realizado, observa-o à distância, com a apreciação desencantada e insatisfeita dos grandes criadores. Volta para casa sofregado, cabisbaixo, exaurido pelo gasto de energia que a parturiência de uma composição colossal daquele talhe lhe exigira. No meio da noite, ao lado da esposa, ele acorda de súbito, dando-se conta das conseqüências do que fizera. Uma frase singela, dita sem muito afinco, com a clara falta de outras intenções subjetivas além das que seu caráter meramente didático faz ver, com o mesmo potencial para não ser ouvida que tem um gasto conselho para um filho irrecuperavelmente perdido, lhe surge, pelo contrário, com todo o impacto de sua subversividade, de sua afronta aos poderes instituídos. A ignorância contra a qual apenas fizera um apontamento generalizado poderia, numa cidade onde a politicagem imperava e a vigilância recíproca entre vizinhos era uma regra de equilíbrio cordial, se transformar numa acusação expressamente dirigida a uma pessoa de verdade, com nome, sobrenome e cargo específico. E era tanto pior tê-la escrito num local restrito como o banheiro dos homens; a clandestinidade da coisa cheirava às ações contrárias aos militares nos anos da ditadura...


Sob o sol escaldante, eu limpo o suor da testa com a manga da camisa, e imponho um fim a toda essa tergiversação. O mais provável, penso, é que se trate de um desabafo da comitiva de limpeza contra o bando de mijadores sem mira que usa o banheiro. A ignorância para a qual os trinta centímetros de largura da boca do mictório nunca são suficientes.


7 comentários:

  1. aldsjgljdfalkdskhafkhjaksdjh
    desculpe, tive q parar pra rir mto aqui:
    "Subi o zíper da calça, fiz a mesma cara de zumbi desprovido de visão periférica, lavei as mãos e saí."

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  2. Pois parece que estou em um daqueles labirintos borgeanos. Você veja bem.
    Esse seu texto, que começa como uma crônica e se transforma em um conto no melhor estilo Cortázar me arrebatou. Obrigado. E tem essa frase maravilhosa "o calor tão gigantesco que retirara a antiga paisagem e tornara-se ele mesmo paisagem".
    Mas, prossigo.
    Como eu já contei lá no meu blog, após ler seu post e os debates com a CAMINHANTE me fui à biblioteca da UFSM retirar "Luz em Agosto". Minha programação genética de menino gordo, que fui, me exige sempre comer com os olhos. Então retirei mais dois livros, no mesmo ato, mesmo sem saber se teria tempo e apetite para todos.
    Um deles foi "Primeiras Estórias" do Guimarães Rosa, que eu queria reler. E veja que a Caminhante, ontem ou anteontem escreveu um post sobre o dito escritor.
    Mas só isso não basta. O outro livro que retirei foi nada menos do que "Todos os Fogos o Fogo", visando finalmente ler esse livro tão incensado do autor de quem eu já havia lido "Deshoras", "Bestiário" e "Las Armas Secretas". Esse Cortázar é o que estou lendo agora e cujos contos me colocam em relação com o enredo que tu criaste no teu texto.
    Ainda não terminou. Ontem lembrei-me que, algum tempo atrás, havia lido uma resenha do MILTON RIBEIRO sobre esse livro. Fui a ela, porque Mr. Ribeiro sabe das coisas. E não é que, na caixa de comentários encontro uma intervenção sua que minha intuição de historiador me sugeriu ser umas das primeiras naquele blog (estou errado?). Lá, você, inclusive, critica a internet e os blogs (estou rindo agora, desculpe) para, logo a seguir, insinuar que blogs como o do Milton faziam a coisa valer a pena.
    Não sei que em obscura confraria da Loteria da Babilônia os dados que comandam essa trama estão sendo jogados, mas o fato é de que, agora, estou com medo de ler qualquer outro livro porque isso pode introduzir um novo personagem nessa história e então trazer o caos, rompendo o suave equilíbrio que se formou quando, finalmente, tive este insight.
    Hoje é único dia de temperatura amena desde que o ciclo se iniciou. Talvez não por acaso.

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  3. Farinatti, sei desse meu comentário, e, sim, foi o primeiro que fiz lá no Milton. Lasquei o sarrafo em internet e blogs (divido seu riso, agora), mas vou te confessar algo enternecedor: acho que também foi uma das primeiras vezes que havia acessado a internet.Tinha total indiferença pela internet. Não que tenha sido uma descoberta fenomenal no sentido de ter as propaladas fontes de conhecimento da wikipédia e as infinitas probabilidades de relacionamento humano engrandecedor, mas a net me fez a revolução de saber que a literatura está longe de acabar, e achar pessoas que se interessam realmente por ela, como vc, sua esposa, o Milton, o Rômulo, a Caminhante...Sempre fui muito ilhado nesse ponto. E outra coisa: a inter-relação com os comentaristas do Milton me reavivou a fé na escrita. Na MINHA escrita, esteja dito. Não é exagero, mas havia ficado muitos anos sem escrever, e a convivência virtual com pessoas que escrevem_ e escrevem bem_, também serviu para recobrar o ensejo. Não tenho pretensões, mas também tenho um amor próprio valioso e a disposição e não incomodar ninguém com meus projetos.
    Sobre coincidências na rede, já comentei sobre isso muitas vezes com o Milton, das simultaneidades. Acho que a internet, algo tão moderno, acaba por confirmar uma das mais antigas intuições do mundo: que somos ligados por fatores de comunhão do tempo e do espaço que desmascaram que o que fazemos repercute em retorno, em algum momento (tema, inclusive, do conto homônimo de Todos os Fogos O Fogo). Minha visão da internet mudou radicalmente, alimentado pelo Zeigeist, pelo Bauman (que critica o uso indevido da técnica, não a técnica), Chomsky. Mas, nada é melhor que o livro, e nada substitui o contato direto _ embora eu duvide que a intimidade intelectual (digamos assim) que temos, essa turma toda citada acima, seria tão facilmente possível na limitação da fala.

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  4. E obrigado pela comparação com o Cortázar. Mas a história desse post realmente aconteceu, há dez anos, quando eu trabalhava como veterinário numa cidade de 27 ruas chamada Córrego do Ouro, e que, ao voltar para casa em Goiãnia, todo fim de semana, me deparava com essa frase no banheiro público de uma cidadezinha chamada Sanclerlândia.

    E...como está relatado em Cronópios e Fama, cuidado: há um livro numa biblioteca pública que, se um homem abrí-lo numa página específica onde esta guardado um fio de cabelo, cai morto instantaneamente.

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  5. putz, tinha escrito um comment mas consegui apagar.
    o mais importante é q me surpreendi agora, sabendo q isso faz dez anos, impressionante tua memória, ainda q boa parte tenha sido ficcionada, é preciso ter memória pra ficcionar
    eu não sou assim

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  6. A pior coisa de um indivíduo, é a ignorância, é aquele que se opõe a razão, é injusto com tudo e com todos, não tem disciplina no querer aprender mais do que já sabe, é um desordenado mental, desconhece as leis de DEUS, se livra do bem de DEUS e do mal dos homens, só acha que ele é o certo naquilo que ele escolheu como verdade, não aceita do assunto inédito a síntese de uma verdade desconhecida nas culturas clandestinas diante da verdade de DEUS. Contudo, vivencia a mesmice das coisas velhas, e empoeiradas, que vem desde os primórdios tempos, cantadas e decantadas pelos criadores de opiniões, que até hoje ainda não deslumbraram a verdadeira VERDADE DE DEUS... (Edvaldo).

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  7. A pior coisa de um indivíduo, é a ignorância, é aquele que se opõe a razão, é injusto com tudo e com todos, não tem disciplina no querer aprender mais do que já sabe, é um desordenado mental, desconhece as leis de DEUS, se livra do bem de DEUS e do mal dos homens, só acha que ele é o certo naquilo que ele escolheu como verdade, não aceita do assunto inédito a síntese de uma verdade desconhecida nas culturas clandestinas diante da verdade de DEUS. Contudo, vivencia a mesmice das coisas velhas, e empoeiradas, que vem desde os primórdios tempos, cantadas e decantadas pelos criadores de opiniões, que até hoje ainda não deslumbraram a verdadeira VERDADE DE DEUS... (Edvaldo).

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