sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Gonçalo M. Tavares



Gonçalo M. Tavares é um tipo curioso e essencial de escritor: aquele que se faz escritor contra toda a lógica da mídia livresca, da necessidade de talento altamente distintivo, do anacronismo da devoção literária no mundo moderno, do corporativismo das empresas da cultura. Numa má sorte de total ostracismo, ele seria um Fernando Pessoa, seguido por uma postumidade fiél e incontornável, ou um desses loucos em efervescência cujo sentido é dar um basta na vida de funcionário público e minguar de fome em cima da página em branco. Sorte de Portugal que tenha tido ao menos dois desse espécime num prazo de menos de meio século, o Saramago e o Tavares (considerando que Lobo Antunes teria como suprir a sobrevivência com a medicina). Então não é o caso de ter achado Jerusalém fragmentário, ou Aprender a Rezar na Era da Técnica um romance em interstícios significativos onde se perde os meandros do conflito. Gonçalo M. Tavares prescinde da conivência de leitores. Existe apenas por si mesmo, por seu monasterismo vocabular de regras e objetivos próprios solidamente fundamentados. O fato de ter leitores e não guardar seus rascunhos num baú com a etiqueta "posteridade", ou não ser um mendigo com papéis amassados nos bolsos da calça em frangalhos, é absolutamente irrelevante.

(comentário meu publicado no sempre ótimo blog da professora Rachel Nunes:

http://rachelsnunes.blogspot.com/2011/02/obsessoes-de-goncalo-m-tavares.html )

12 comentários:

  1. Charlles,
    conheço pouco do Gonçalo Tavares. Porém do pouco, gostei muito… Pareceu-me um grande poeta cerebral. Ou seja, nesse tempo de consumo rápido, uma iguaria é fundamental.

    Por ser brasileiro, senti uma certa falta de ritmo, um certo histórico batuque tropical, em seus poemas… Mas isso é apenas uma pequena questão cultural; no imaginário de nossas culturas diferentes de mesma língua, se fosse possível a honra de encontrá-lo, apresentaria a ele o seguinte…


    BIG-BANG
    by Ramiro Conceição


    Construímos casas,
    condomínios, partidos,
    vielas, fábricas e favelas.
    Construímos casamentos,
    tormentos, fortalezas,
    igrejas e testamentos.
    Construímos aldeias,
    ideias e cadeias.

    Construímos o mundo...
    Contudo tudo é nômade
    qual o canto profundo
    do Big-Bang ao fundo...

    Saber pouco é danoso,
    mas muito é perigoso!
    Então o que saber
    do quê que não se vê?
    Ora, a Vida revelada!

    Quem nasceu? Quem morreu?
    Quem sofre? Quem ama? Quem clama?

    Quem dorme com as flores na cama?
    Quem tece foices à noite nas ramas?

    Quem brilha? Quem cintila? Quem brinca?
    Quem está ensolarado, num dia nublado?

    Quem sabe que nunca saberá
    pois sempre haverá um “MAS”

    que muda tudo? Quem, mesmo
    com medo, inventa o lúdico?!

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  2. Olá, Charles.

    Depois de publicar meu texto de hoje (bem bobinho) vi seu comentário em meu blog e descobri, em seguida, que você publicou o mesmo comentário como mensagem do seu.

    O Gonçalo, até os 17 anos, conforme declarações dele numa entrevista, não sabia ainda se seria escritor ou jogador de futebol. Como era um jogador apenas esforçado, decidiu pela literatura – onde certamente sua modéstia é menor.

    Depois desse último livro, vejo que ele ratifica outras coisas que falava de si mesmo; que começou a publicar só depois de escritos vários livros; que tratou de por os livros à baila para ver os efeitos imediatos; que, sendo bons, ele prosseguiria; que, como foram bons, ele assim continua hoje, de forma que “Uma Viagem a India” é livro de escrita mais recente (ainda publicarei outro texto sobre este livro), com relação aos primeiros publicados; que ele gosta demais de literatura para se preocupar com a mínima fama e privilégios que poderia colher com o exercício dela como “profissão”; que, a bordo de sua nau, ele continua a remar, embora não tenha certeza para onde, apesar de ter instrumentos e um rumo previamente traçado.

    Conforme escrevi em minha própria mensagem, espero que, daqui por diante, ele se surpreenda com o desvio de rota solitário, decidido à deriva dele mesmo pelo seu próprio barco. A literatura geralmente tem dessas coisas. Mantido o projeto, Gonçalo tende a ficar repetitivo e chato – um pouco, forçoso dizer, como o Lobo Antunes, de quem gosto imensamente, mas cujos últimos livros são pouco mais que sobreposições aos anteriores, com seus fluxos de consciência, memórias da guerra colonial, frustrações existenciais, amores imersos em angústias e desesperos ocultos na faina do dia a dia. Espero que não aconteça. Mas ele tem futuro – apesar de jovem.

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  3. Rachel, compartilho de seu receio quanto à tendência de se repetir do Gonçalo. Talvez ele esteja na encruzilhada criativa que o elogio do Saramago já intuía, de como poderia escrever tão bem sendo tão jovem. Acho que ele fez algo imensamente produtivo para um escritor: exteriorizar todos os seus caçoetes e toda a sua influência. Ser comparado a Kafka é um fardo que ele deve relevar e procurar ampliar sua voz própria. Agora que está expurgado, surge o maior desafio, de produzir algo livre de todas as técnicas aprendidas; ou seja, reconstruir-se praticamente da estaca zero. Vários outros autores passaram por isso, e cito o Machado.

    Li dele o Jerusalém e o Rezar Na Era da Técnica. Achei-os ainda um tanto artificiais, ainda que muito bons (sei que pode entender isso). Cada criador tem seus matizes próprios para uma visão alheia ousar dar opiniões, mas assim como acho que a leitura do Javier Marías iria trazer benefícios para o Marcos (já disse isso a ele), pela semelhança de estilos (no sentido de encorajar o Marcos a não sair de um certo monocordismo que, afastando de imediato um determinado tipo de leitor, pode ganhar outro tipo, mais concentrado e paciente; ou seja, insistir em seus vícios a ponto de desenvolvê-los com máxima proficiência), também ousaria dar a sugestão ao Gonçalo de que ele saia de seus cenários oníricos de pesadelo, e começe a trabalhar com a realidade. Há muito de Portugal para ser explorado, ou muito do mundo, para ele, em pleno século XIX, se limitar a fábulas que, por mais que sejam tenebrosas e coloridas com sombras, por extenuação não se desassociam do tom de exercícios de estilo.

    Eu adoro três ou quatro livros do Lobo Antunes. Acho o "Cus do Judas" um dos melhores livros que já li. Tem parágrafos do Antunes que são belíssimos, que conseguem uma grandiosidade bem acima dos seus contemporâneos (incluso o Saramango). Mas ele sofre de um mal terrível de falta de auto-crítica em não ver que isso não basta para um romance. Há romances dele absolutamente perdidos, como o "Auto dos Danados", em que a excessiva metaforização asfixia a narrativa. Ele, sem dúvida um metaforista como nunca houve nenhum outro (nem Neruda), se torna tão virtuse nessa arte que cansa, com figuras dentro de figuras, imagens devorando imagens. E sua "pós-modernidade", francamente...é o tipo de situação da pessoa que tem um mau hálito terrível e sem nenhum amigo corajoso para lhe alertar.

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  4. Charlles, eis dois poemas de Gonçalo que admiro...


    O Futuro Sai da Fenda e da Ferida
    by Gonçalo Tavares

    a geometria abre a linha para deixar passar a Imaginação.
    O FUTURO sai da FENDA e da FERIDA.
    Do que antes foi, hoje sai Sangue.
    Inundar o VAZIO: o FUTURO inunda o VAZIO.
    Porque todo o vazio tem por INIMIGO a Imaginação.
    Porque todo o vazio tem o Inimigo.



    A Força Exacta é Violência
    by Gonçalo Tavares

    a Força Exacta é violência.
    a Força em espirro, ao acaso, não é violência, é existência.
    O mal é Fixar a Força (direccioná-la) porque a natureza espon-
    tânea não o FAZ.
    Natural é ser FORTE, isto é, avançar.
    Violento é o Percurso que antecede o viajante. Antes dos pés:
    Sapatos; a estrada.
    A Força Exacta é violência.
    A natureza não tem, nunca teve, Forças EXACTAS.
    E tudo o que o homem faz é tornar exacta a FORÇA.
    Ser violento é construir; todo o Edifício é violência.
    O homem é o Exacto da Natureza; a falha NATURAL; o Erro.
    Deus errou:
    fez o homem EXACTO.

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  5. Para tentar explicar o escrito no meu primeiro comentário: por exemplo, no verso “a Força em espirro, ao acaso, não é violência, é existência.” Na minha pequena maneira de pensar-sentir poesia, o verso contém excessos, isso é: todo espirro é um acaso (é uma explosão, não é?), então “ao acaso” parece, para mim, uma “gordura”…
    Outra coisa que me incomoda é a repetição de “é”, no mesmo verso. Para mim seria direto: “ a força em espirro não é violência, mas existência”, ou seja, o verso fluiria mais parecido com a força de um espirro, que é a metáfora fundamental, no texto em questão. Minha crítica é só isso, nada além disso…

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  6. Ramiro, tu sabes que te tenho em alta conta como poeta. Aliás, tua poética é bem superiora a do Gonçalo. E não poderia concordar mais com suas correções aos versos do português.

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  7. Charlles,
    estou muito agradecido pelo comentário, pois você sabe que o considero um conhecedor profundo de literatura. Disse-lhe, certa vez, que ao lado de você, do Milton, do Idelber, do Marcos e da Rachel Nunes, sinto-me um aprendiz.

    Por favor, acredite, não há aqui qualquer falsa modéstia ou jogo de confetes, porque tenho a plena consciência que, se a vida me permitir, levarei até as últimas conseqüências a poesia que, talvez por dádiva, passou, passa e passará por mim; pois sou um escritor que, depois de muito, muito, medo, mas agora lúcido e calmamente, conseguiu escrever o epitáfio à sua insignificância existência que, no fundo, no fundo, é inerente a todo ser humano:


    A CASA DO POETA

    Na casa do poeta,
    o comprimento é o tempo;
    a largura - a escritura;
    e a altura é o pensamento
    onde o firmamento mora.


    Acredito que a POESIA é uma das pontes ao SER-HUMANO! Esse simples hífen, caro Charlles, talvez tenha sido a razão de eu estar por aqui (vide o poema “Nascimento”, no Vagalúmen…).

    Tenho a certeza de que os futuros dicionários construirão o significado possível de tal ser histórico que, na realidade, foi sempre um composto-substantivo-complexo destinado - ao impossível!

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  8. Errata: é óbvio que onde se lê "insignificância", por favor, leia-se "insignificante".

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  9. Charlles,
    veja o que fiz neste final de tarde...


    ELÍPTICO
    by Ramiro Conceição


    Com matemática e fantasia,
    aprendi uma viva astronomia
    que explica o porquê que,
    elíptico, o meu olhar alegre
    gira livre - em torno ao seu.

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  10. Gonçalo M. Tavares é um escritor absolutamente genial para o qual só tenho um adjectivo para o qualificar: DESCONCERTANTE.

    "MATTEO PERDEU O EMPREGO" - é um livro do outro mundo (não sei se já foi publicado no Brasil)

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