terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

"O Mundo Não É Feito para Nosso Benefício Pessoal"

 
Porém, antes de terminar, quero lembrar mais uma coisa. Como estudantes desta universidade, vocês são pessoas privilegiadas. As perspectivas são as de que, como bacharéis de um instituto conhecido e prestigiado, irão obter, se assim escolherem, uma ótima condição na sociedade, carreiras melhores e ganhos maiores que os de outras pessoas, embora não tanto quanto os de prósperos homens de negócios. O que eu quero lembrar a vocês é algo que me disseram quando comecei a lecionar em uma universidade. "As pessoas em função das  quais você está lá", disse meu próprio professor, "não são estudantes brilhantes como você. São estudantes comuns com opiniões maçantes, que obtêm graus medíocres na faixa inferior das notas baixas, e cujas respostas nos exames são quase iguais. Os que obtêm as melhores notas cuidarão de si mesmos, ainda que seja para eles que você gostará de lecionar. Os outros são os únicos que precisam de você."

Isso não vale apenas para a universidade, mas para o mundo. Os governos, os sistemas econômicos, as escolas, tudo na sociedade, não se destina ao benefício das minorias privilegiadas. Nós podemos cuidar de nós mesmos. É para o benefício da grande maioria das pessoas, que não são particularmente inteligentes ou interessantes (a menos que, naturalmente, nos apaixonemos por uma delas), não têm um grau elevado de instrução, não são prósperas ou realmente fadadas ao sucesso, não são nada de muito especial. É para as pessoas que, ao longo da história, fora de seu bairro, apenas têm entrado para a história como indivíduos nos registros de nascimento, casamento e morte. Toda sociedade na qual valha a pena viver é uma sociedade que se destina a elas, e não aos ricos, inteligentes e excepcionais, embora toda sociedade em que valha a pena viver deva garantir espaço e propósito para tais minorias. Mas o mundo não é feito para  nosso benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para nosso benefício pessoal. Um mundo que afirme ser esse seu propósito não é bom e não deve ser duradouro.

(Excerto de uma palestra apresentada por Eric Hobsbawm na abertura do ano acadêmico de 1993-4 na Universidade da Europa Central em Budapeste. Publicada sob o título Dentro e Fora da História, em Sobre a História, tradução Cid Knipel Moreira, Editora Companhia das Letras, p.21)


7 comentários:

  1. "Estudantes comuns com opiniões maçantes, que obtêm graus medíocres na faixa inferior das notas baixas, e cujas respostas nos exames são quase iguais. Os que obtêm as melhores notas cuidarão de si mesmos, ainda que seja para eles que você gostará de lecionar. Os outros são os únicos que precisam de você". É exatamente isso que ocorre também nesta parte do mundo, o que comprova que, mais ou menos "desenvolvida", as nações são basicamente iguais, geram seus rebentos da mesma forma e assim os criam. É difícil até lembrar para as pessoas que o mundo, afinal, não é feito para elas, mas também por elas, que somos todos interdependentes e que, executando funções desiguais, somos, no sentido mais profundo, porque também mais raso, iguais - somos feitos da mesma matéria, com as mesmas necessidades, morremos das mesmas doenças, carecemos de nossos semelhantes como da água que bebemos. É um bom texto para se ler em plena manhã de sol, de um dia comum - em que tudo pode acontecer.

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  2. Passei essa noite no hospital. A Dani teve um ataque de gastrite nervosa. A pior dor que ela já sentira, disse ela. O Eric teve um começo de convulsão, e a Dani e eu ficamos profundamente nervosos (acho que foi algo que ele comeu), mas só a ela a coisa teve esse desenvolvimento. Levei-a ao hospital particular da cidade. O único médico de plantão fez exames de raio-x e ultrassom, e deu ordem à enfermeira para que aplicasse morfina na Dani. O médico agiu com essa rapidez e eficía porque simulei um barraco na sala de espera, onde haviam mais umas quinze pessoas aguardando atendimento. Fiz minha cara de caminhoneiro louco e nessas horas minha estatura serve para alguma coisa, e bradei que ela não suportava mais a dor e que não podia esperar a boa vontade do médico. E indaguei ao médico se a Dani, amamentando, podia receber morfina. Ele mal olhava para mim, centrado na tela do computador cujo programa específico lhe dava de bandeja o diagnóstico das situações mais usuais. Simplesmente me respondeu que era só eu comprar o leite Nanny e dá-lo às crianças. Era quase nove horas da noite, comprar esse leite onde? E mais, o Eric e a Júlia sempre mamaram no peito. Vai lá que o Eric já está para ser desmamado e poderia até aceitar, mas e quanto a um bebê de 4 meses como a Júlia. Ele não se demoveu. Agradeci e disse que procuraria o serviço do SUS, aí algo nele mudou e ele disse que experimentaria o buscopan, mas que se não resolvesse, seria a morfina mesmo. Morfina! Uma gastrite incipiente suavizada com morfina, o mais forte paliativo para pacientes com câncer.

    Como era uma situação emergencial, eu estava de bermuda e uma camiseta surrada, e com havainas nos pés. A Dani mulambenta no mesmo nível (estamos de férias). Agora tá tudo bem e vou lá buscar a Dani e a Júlia. O Eric tá aqui.

    Mais humanidade! Mais lentidão! Mais coração! Menos necessidade da grana!

    O Eric aqui concorda com esse outro Eric que inspirou seu nome.

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  3. Nossa, de morfina ele foi pro Buscopan porque você reclamou? Que absurdo!

    Olha, eu tenho uma bronca muito grande com quem acha que buscar medicinas alternativas é sinal de ignorância. Muito pelo contrário, acho que a fé cega no nosso sistema médico é que é sinal de ignorância. Os médicos vêem a coisa muito por cima na faculdade e receitam determinados remédios porque os vendedores do laboratório recomendam, às vezes em troca de gordas comissões. Numa situação emergencial você tem que lidar com um médico que não está nem aí se a mulher está amamentando uma criança de 4 meses ou não. E depois desconfiar, procurar outra fonte de ajuda é ignorância? Não acho.

    Charlles, envio minha solidariedade aqui. Depois dessa, vocês precisam mesmo de férias!

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  4. Charlles
    Espero que tudo esteja bem com vocês. Envio força, empatia e solidariedade.
    Fiquei com vontade de esmurrar o médico que te atendeu. O que se passou com vocês está em perfeita consonância com o texto que escolheste para o post.

    Cada vez que penso em Hobsbawm (e penso nele quase todos os dias), fico feliz por saber que o mundo o tem, e triste por pensar que isso não tem como durar muito tempo.
    Uma mente lúcida usando sua erudição para pensar historicamente o mundo em que vive.
    Eu gosto de jogos, portanto gosto de metodologia da pesquisa histórica, da investigação, dessa coisa meio-detetive meio-arquiteto que os historiadores tem. Somos algo entre Poirot e um cartógrafo do século XVI (imaginando todos aqueles mundos de além Oceano).
    Bom, nesse ponto Hobsbawm está longe de ser dos mais fascinantes (Levi, Ginzburg, Natalie Davis, Duby, estão muito à frente). Mas aí reside também sua força, nesse olhar para o macro, para o processo histórico, sem cair na cilada da simplificação, mas também sem deixar de tentar uma visão de conjunto que, nele, nunca é esquemática. E que é sempre um serviço prestado à humanidade. Sem falar que, como já se disse, ele escreve como quem dança.

    Ler o excerto que você postou era tudo que eu precisava para esta minha volta ao trabalho, este meu início de ano no mundo da formação de professores de História e de historiadores.
    Eu concordo com cada frase e fico com vontade de colocá-las sobre minha mesa, para olhar para ela todo início de dia. Um breviário. Precisamos dessa ética que assenta sua força na consciência de que fazemos parte de uma coletividade (tão forte no Bauman, também, não é mesmo?), que o Hobsbawm puxa da ética docente e se projeta para a sociedade.
    Eu precisava ler isso porque precisava me revigorar, como se recomenda na ritualização de todo início de ano. Mas não é fácil seguir por esses caminhos. Como disse o Calvino pela boca de Marco Polo, para quem tenta encontrar no inferno o que não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço, é preciso vigilância constante.

    Tenho certa ternura por Robert Owen, com suas tentativas que hoje parecem quase patéticas, mas que, no início do século XIX eram um grito de alguém que olhava para a construção do mundo capitalista e apontava para a necessidade de uma indignação moral ante as desigualdades novas que iam substituindo as desigualdades antigas.
    Isso tudo me veio à cabeça em seu belo post e nos comentários também interessantes.
    O comentário é longo, mas o assunto me provoca.
    Isso que eu nem liguei ao médico que lhe atendeu, aquele juiz filho da mãe cuja história já contei no blog do Milton e sobre o qual, daqui há uns dias, vou escrever no meu blog. Parecem gêmeos univitelinos. Certamente não por acaso.
    Parabéns pelo post.

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  5. Farinatti, muito obrigado pelo comentário e pelo carinho. Muito obrigado mesmo! E fico bastante feliz de ter escolhido esse post e que ele tenha te injetado ânimo. O Hobsbawn é um de meus escritores preferidos. Tenho uns dez ou mais livros dele aqui, incluindo o livro sobre jazz. É um dos tantos que leio prescindindo do diploma do curso de História. Também gosto do Ginzburg, do Marshal Berman e do Tony Judt. Alguém como o Hobsbawn é, como vc disse, mais que um extraordinário escritor, mas um exemplo de humanismo, de humildade, de pensamento concentrado. Lembro-me de sua sinceridade bem humorada em reconhecer-se de aparência física muito feia e como isso ajudou a torná-lo erudito, em Tempos Interessantes (assim como sua explicação de nunca usar jeans como reação ao modo de vida consumista norte-americano). Realmente ele escreve como Astair dança (como diz um crítico), e seus textos é de um refinamento, elegância e sutileza fora do comum (note no post como ele dá uma quebra de significativa poesia ao dizer, entre aspas, "( a menos que, naturalmente, nos apaixonemos por uma delas)").Esse texto eu o tenho entre meus preferidos há muito tempo.

    Bom...teria mais o que dizer, mas não tenho tempo agora. A Dani, o Eric e a Júlia estão bem. A Dani vai passar por um cateterismo daqui a dois meses para corrigir a válvula mitral (lembra daquela nossa conversa?). Não se preocupe (vc e a pequena cambada de amigos do blog), que trata-se de algo de extrema segurança e simplicidade, uma cânula vai por um vaso da perna até o coração, e uma bola é inflada ali para dar a força necessária de contração para a válvula. Mas, como preparo para tal, a Dani tem que tomar, além de diurético, dois comprimios de AS por dia, o que tem lhe sensibilizado o estômago. Mas tá tudo bem.

    Eu costumo brincar com a Dani, que se diz evangélica (do pau oco, pois acredita em mandingas e vive soltando um Nossa Senhora a torto e a direito), quando ela diz "Se Deus quiser" e "Em nome de Jesus", eu complemento com "pelos cavaleiros do apocalipse" e "pelas bruxas de salem". Daí que virou um vício inconsciente, sempre que ela faz essas invocações, eu digo "pelos cavaleiros do apocalipse", e ela responde "pelas bruxas de salém", de forma automática. Ontem, a Dani, com dor forte no estômago, disse para o médico, sentados que estávamos em sua sala, "se Deus quiser essa dor vai passar, doutor", ao que o médico respondeu "em nome de Jesus". Mais tarde ela me confessou que tinha aberto a boca para complementar "pelos cavaleiros do apocalipse e as bruxas de salém, doutor", mas se conteve em cima da hora. Eu lhe falei que se ela tivesse dito tal coisa, quem ficaria internado em estado grave de ataque apoplético e incontrolável de riso seria eu.

    Abraço.

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  6. Gostei muito do texto e bastante das repercussões aqui. Não sei se insiro algo relevante à conversa. No sábado saiu na ZH uma entrevista com José Arthur Gianotti, filósofo brasileiro q desconhecia (como desconheço basicamente todos). O q me chamou a atenção foi ele falar, mais de uma vez, da importância de se formar uma elite, elite "no sentido de q a universidade possa fornecer mão de obra qualificada para o desenvolvimento capitalista". Ele não deixa de ver avanços na universidade, nos últimos anos, mas pensa q houve uma massificação não acompanhada de um "programa de formação de novos quadros". De perto, só conheço o caso de minha chefe, q é doutora em física e acaba de passar num concurso pra dar aulas na UFRGS. ontem ela passou duas horas contando só como foram os 3 dias de provas. dureza. ela é superbempreparada. agora, mesmo na Economia da UFRGS, mesmo vendo uma grande maioria de professores qualificadíssimos, tem uns q não consigo imaginar como conseguiram doutorar-se e continuam professorando por lá. e a Economia da UFRGS é bem reconhecida, imagino q a coisa seja feia por aí (no jornalismo certamente era pior).
    mas, opinião pessoal, ensino pré-escolar, fundamental e médio deveriam ser prioritários.

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