quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Rock- Uma nota para capa

                                                                   Frank Zappa
por Salman Rushdie

Frank Zappa e The Mothers of Invention estão se apresentando no Albert Hall. É o começo dos anos 70. (Como dizem, se você lembra a data exata é porque não estava lá.) Na metade do concerto, um enorme negro de camisa roxa brilhante sobe ao palco. (A segurança era mais leve naqueles dias inocentes.) Ele oscila um pouco e insiste em tocar com a banda.

Zappa, imperturbável, perguntou, sério: “Sim,senhor, e qual é o seu instrumento preferido?”.

“Trompete”, resmungou o Cara de Camisa Roxa.

“Dê um trompete para o cara”, Frank Zappa mandou. No momento em que o Cara de Camisa Roxa toca a sua primeira nota terrível, fica claro que a habilidade dele com o trompete deixa muito a desejar. Zappa parece brevemente perdido em um pensamento, queixo apoiado na mão. “Humm.” E vai ao microfone. “Estou pensando”, ele medita, “no que q gente podia tocar para acompanhar esse cara com o trompete.” Ele tem um estalo, uma inspiração trombeteira. “Já sei! O poderoso órgão de foles do Albert Hall!”

O poderoso órgão de foles do Albert Hall estava efetivamente interditado à banda, mas agora um dos Mothers começa de fato a escalar a grande fera, se encaixa na cabine do organista, puxa cada uma das alavancas e quase põe teatro abaixo com uma versão ensurdecedora de “Louie, Louie”. Fom-fom-fom/ fom-fum!

Enquanto isso, no palco, o Cara de Camisa Roxa apita, absolutamente feliz, totalmente inaudível, enquanto Frank Zappa o observa carinhosamente, como o benevolente e subversivo pensador que é.
                                   
                                                                     * * *

Essa vivacidade não é geralmente uma qualidade associada ao rock, e quando se escuta os grunhidos de Cro-Magno da maioria das estrelas do rock, rapidamente se entende por quê. Apesar das Spice Girls, porém, o rock-and-roll tem uma longa história de achados e acertos musicais.

Tem Elvis dizendo ser tão agitado como um homem alérgico numa árvore felpuda.

Tem a agilidade verbal de John Lennon. (“Como você achou os Estados Unidos?” “Virei à esquerda na Groenlândia”.)

Tem Randy Newman, que prova, em “Sail Away” [Navegar para Longe], que uma canção pode ao mesmo tempo ser um hino e satírica. (“Na América, tem muita comida/ Ninguém precisa ir para a floresta e gastar os pés.”)

Tem as letras surrealistas associativas de Paul Simon. (“Por que eu tenho coração tão mole/ se todo o resto da minha vida é tão duro?”)

E tem o trovador que fica acima de qualquer categorização, Tom Waits, contando suas ásperas histórias de vagabundo sobre gatos de rua e cães vadios. (“Tenho as cartas mas não tenho a sorte/ tenho as rodas mas não tenho o caminhão/mas, ah, eu sou grande no Japão.”)

Em tudo isso já há muita coisa para o pessoal literário estudar e admirar. Não faço parte da escola de exagero dos fãs de rock que acham que letra de música é poesia. Mas sei que ficaria ridiculamente orgulhoso de ter escrito qualquer coisa assim tão boa. E adoraria ter o talento, humor e a agilidade mental que Frank Zappa mostrou no Albert Hall aquela noite.

(De Cruze esta Linha, lançado pela Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira, maio de 2007)

7 comentários:

  1. Meu filho vai adorar esses causos. Ele assina Appaz, sacou?

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  2. Surreal ler o Rushdie fazer ensaio no Frank Zappa. Deixa eu despirocar logo e cometer a infâmia de dizer que é quase como o Zizek escrevendo sobre Jeniffer Aniston e Vince Vaugh em The Break-Up.

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  3. Milton, já li textos do seu filho, como te disse antes, e o cara é fera.

    Luiz, te digo mais: estou lendo o calhamaço de quase 1000 páginas do Tony Judt, Pós-Guerra, e me surpreendi dele citar o The Who, na abertura de sua análise sobre os eventos mundiais de caos e greves deflagrado em 1968. E o Garcia Márquez, num ensaio no volume 5 de suas crõnicas lançadas pela editora Record, diz que há 3 B´s geniais na música: Beethoven, Bach e Beatles. E, nesse mesmo livro de ensaios do Rushdie citado acima, há todo um ensaio dedicado ao estudo da música do U2 _ só que bem mais extenso que esse para que o digitalize.

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  4. Charlles,
    estou a esperar uma banda de roqueiros
    para musicar isso...


    GIRASSÓIS PRA SEMPRE
    by Ramiro Conceição


    Não contarei os mortos de Paris,
    São Paulo, Vitória, Rio ou Madri.
    Não cantarei aos mortos de Bagdá.
    Não contarei os mortos do Haiti.
    Não cantarei: porque também morri.

    Ai de nós, porque a Vida estava aqui,
    está aqui e estará aqui, apesar de nós!

    Eu acuso a América
    de doente química
    do petróleo de Alá
    e de ave de rapina
    sobre tantas Bagdás!
    Eu acuso Washington
    de criadouro de ditadores
    e de abatedouro de inocentes,
    ao bel-prazer de vis tesouros!
    Eu acuso Manhattan de matar
    Lennon em todas as Brasílias
    do mundo!

    A grandeza de uma civilização
    não é a globalização do capital
    a roubar, a matar impunemente.
    A grandeza de uma civilização
    são os seus seios a alimentar
    gerações de construtores
    de estradas entre estrelas,
    mares e palavras.

    Porém somos ávidos por ideologias,
    aptos à imundice de tudo... Contudo,
    há uma Ética,
    uma navalha a separar
    canalhas - de canários!

    Eu preciso dessa Ética pra viver!

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  5. Oh, Ramiro...letrista também. Pensei nas bandas punks dos oitenta (Os Inocentes), mas há um grau de lirismo nesta letra que adocica um pouco. Talvez a excelente banda atual O Teatro Mágico.

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  6. Charlles,
    eis outro rock; ou sei lá o que será isso...


    DELICADEZA
    by Ramiro Conceição


    Tanta gente a entrar…
    Tanta gente a partir…

    Será que elas testemunharam algum sonho
    à solução - desse nosso mundo bisonho?

    Ou foram cúmplices dum plano macabro
    dum bando de assassinos engravatados?

    Quanto foi o leite derramado?
    Quantos ficaram enamorados?

    Quantos deixados - ao adeus,
    sobre esses seus pés, ateus?

    Que delicadeza têm as mesas caladas
    do restaurante à beira duma estrada!

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