quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Patagônia

                                                                     Vladimir Safatle

Recuperei alguns amigos através da net, amigos da universidade, de bairros onde morei por algum tempo, de cidades onde a aventura do diploma recém ganho me fez ir e que me ficaram na memória como remansos que só existiam enquanto estive lá, com sua vida prosaica e sua população de mil habitantes. A net resgatou todos eles para mim, me mostrando que a distância os transformaram em diversos níveis de profundidade. Um dos meus melhores amigos, José Canavarros, que não o vejo há doze anos, o maluco despojado com quem aprendi muita coisa e formamos uma banda despretenciosa com um nome um pouco menos (God´s Sound), me fez ver o quanto eu mesmo me tornei outra pessoa. José tem dois filhos, assim como eu, e deve sentir a espécie de aturdimento que eu sinto pela roupa do adulto sereno e atarefado ter-lhe caído tão bem no corpo. Quando o vi pelo Facebook me passou uma fagulha de vergonha de reconhecimento por termos traído aquelas ideias seriíssimas de liberdade, e me doeu calmamente a memória de que quando o dia prefixado chegou, nossos pés se desviaram da longa trilha da Patagônia com a qual sonháramos tanto. Eu estudei espanhol, ele, que já o sabia, comprou e aprendeu a tocar um charango.

Também tive o choque de descobrir que um outro amigo dos tempos da veterinária morreu escorado a uma árvore. Poderia-se ter imaginado por detrás de seu olhar que não pousava mais que alguns segundos nos objetos, que as drogas o cosumiriam? Minha primeira namorada se casou, teve dois filhos, o marido a deixou, seu irmão deu-se um tiro fatal no ouvido, e a encontrei com o carro roubado acionando o seguro em  alguma esquina do Google. Ontem, porém, ou antes de ontem, me aconteceu o maior choque dessas redescobertas todas. Assistindo ao Jornal da Cultura, vejo que um dos usuais professores universitários que comentam por lá, não me era de forma nenhuma estranho. Aguardei o anúncio de seu nome e, era ele: Vladimir Safatle. Meu Deus, há quanto tempo não pensava nele! Estudamos juntos no Colégio Objetivo de Goiânia, e tínhamos 16 anos. Desde então, depois que nos afastamos, por uma incrível distração eu o havia apagado da memória. Não, é mentira. Uma ou outra vez,  trazido por alguma correlação de pensamento, punha-me a cogitar o que a vida tinha feito dele. Lembrava-me que um amigo daqueles tempos, que hoje, aliás, o encontrei médico pelos espaços virtuais, dizia que não chegaria aos trinta anos, um suicídio o aguardava cordatamente pela frente. Nunca compartilhei com essa teoria.

O Vladimir hoje, abaixo da calvície que lhe saiu melhor que o receio (entre os ruivos e os negros, a calvície cai bem, azar o meu!), é exatamente igual ao quando tinha 16 anos. Era um cara para lá de excentrico, e dono de um senso de humor que se firmava nas reticências e no olhar de resignação diante sua superioridade intelectual entre nós, os outros moleques. Conseguia despertar o riso alheio por se misturar a um senso de vergonha que compartilhávamos diante ao segredo que levava. Ele chegava à sala de aula sempre com alguma novidade chamativa no corpo, disfarçada como algo naturalíssimo. Ia com alfinetes enfiados na carne das bochechas, com a cara maquiada ou simplesmente com um risco enigmático rosa traçado da orelha  à boca. Dormia com o rosto no tampo da mesa religiosamente durante todas as aulas, insistindo em se levantar como um Lázaro ressuscitado por alguma besteira dita pelo professor para lançar com sua voz rouca (embargada ainda mais pelo sono) a verdade sobre o tema. Os professores não o gostavam muito, compreensível. Chegava quinze minutos antes das provas, com um olhar de desconhecimento simulado, e, com um caderno emprestado em mãos, em sua modéstia ostensiva mostrava o quanto sua concentração era primorosa por apreender o conteúdo de uma vez.

Ele tinha ido ao programa do Jota Silvestre e ganho o prêmio máximo de conhecimentos gerais. Sua figura de garoto esfalfado por uma felicidade estranha desvinculada aos brinquedos comuns dos outros garotos rodara o Brasil inteiro, a criança prodígio do Fantástico. Claro que um garoto cabeludo com a cara cheia de timidez estúpida como eu não poderia interessá-lo, e meu nível de autismo social era muito grande para também ele me interessar. Mas aí me deram um prêmio de literatura e ele se achegou a mim. Passou a me instruir em vernissagens que serviam bebidas alcóolicas, me apresentou ao García Márquez, ao Joy Division, e me emprestou o Crime e Castigo em volume duplo. Fui a uma apresentação de sua banda "Oficina de Testes", e até hoje não compreendo o disparate da música dark que ele compunha aceitar um vocalista rebolante que queria ser o Paulo Ricardo.

Uma vez eu levei a melhor sobre ele. Para fugir ao martírio de assistir ao Beijo da Mulher Aranha, anunciei ao bilheteiro que tínhamos 16 anos. Em represália, quase fomos linchados pelo público impressionado de Alienígenas do Espaço, quando ele passou a comentar alacremente cada cena do filme em voz alta. Sua casa tinha um ambiente pesadamente intelectual. Ele era uma cópia do pai, taciturno, avidamente grudado a suas crenças políticas, se havia carinho por ali era segredo para horas noturnas, escondido do olhar alheio e da consciência de autoimportância. Minha família também tinha o mesmo hermetismo, mas essa semelhança em vez de me alegrar me deixava mais deprimido. Preferia os amigos com radiosa normalidade burguesa.

Nossa amizade chegou ao fim por causa de um aspirador de pó. Havíamos comprado, cada qual, o LP que trazia a melhor canção nunca cantada pela Madonna, "Maria Madalena", de uma tal de Sandra . Estávamos na casa de minha mãe e ele, num de seus arroubos de inconstância, olhou para o aspirador de pó  e, sentenciando-o como objeto fútil da burguesia, lançou-se a destruí-lo com os pés e mãos até reduzir a coisa a fragmentos de plástico. Rolamos no chão na porrada, um enforcando o outro até não sei quem obter a rendição. Ele saíu pela porta, para minutos depois voltar para pegar a Sandra que havia esquecido por sobre a mesa. Nunca mais nos vimos, o que pode ser razão da bolha de supressão que minha memória criou.

O que eu posso dizer agora, do alto da minha maioridade, caso Vladimir tenha um tracking tão bom a ponto de cavucar esse blog obscuro. Cara, eu também odiava aquele aspirador!

21 comentários:

  1. Você escreve bem melhor quando não fica afoito em arrolar referências culturais, umas atrás das outras.
    Escreve bem mesmo. Como aqui.

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  2. Obrigado, mais ainda pela crítica. Isso não me passa desapercebido, a gordura que coloco no texto. É que na verdade, considerando que eu tenha um talento para escrever, ele está todo centrado no contador de histórias, e, de alguns anos para cá, eu forço a barra para escrever ensaística. Alguns dos textos que eu publico aqui são exercícios de estilo propositais, em que eu considero a grande hipótese de fracassar mas que me parece imprescindível que os exponha. Meu texto sobre futebol _ o único _, por exemplo, quis que saísse o mais adorniano possível, ou seja, hermético, palavroso, com estilo propositadamente rebuscado. Não consigo lê-lo, nem ao menos parar na página em que ele está.

    Isso é um dilema para mim. Ao mesmo tempo que me parece fácil escrever, algumas vezes, não raras, o alinhamento de palavras me parece tão difícil que me dá uma espécie de dislexia instantânea em que esqueço a grafia correta. Esse texto aí saiu sem medo e de uma vez. Se não sai fácil, não vale, já dizia alguém que não vou contar para evitar eruditismos.

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  3. Eu adorei o texto. Nunca interpretei mal as referencias culturais, mas devo reconhecer que este saiu muito mais próximo e fluido. Se tem uma coisa que me fascina são os retratos feitos na literatura. Ouso dizer que são as partes mais interessantes dos livros. Ou que um escritor que não traça um perfil interessante das pessoas nunca é um escritor bom. De qualquer maneira, veja nisso a prova do quão bem você escreve.

    Eu acho que você deveria procurá-lo e lhe enviar esse texto. Aposto que ele ficará lisongeado. É como ser fonte de inspiração para uma música, uma experiência que poucos possuem o privilégio de passar. O mais próximo que passei disso é uma história tão desagradável... O autor do possível livro nem teve coragem de me dizer do que se trata; acredito que serei capítulo de algo como "Mulheres que eu teria comido se me dessem bola".

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  4. Fiz o que dissestes, Fernanda. Mandei um recado por e-mail para o Vladimir. Vou agora procurar cortar as referências, que nem sempre são legais mesmo, e enxugar o texto.

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  5. Ah, Fernanda, e que história é essa? Fiquei curiosíssimo.

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  6. Charlles,

    As referências não me desagradam não. É um pedantismo que acho até endearing.
    Lembra um pouco alguns dos diálogos do Gilmore Girls (uns dois tons acima), caso Lorelai e Rory tivessem lido muita Critical Theory.
    ;)
    Menos é mais.

    Luiz

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  7. Ixi, Charlles, é uma história tão longa. Será que eu consigo resumir? Tentarei transcreve-la aqui, já que no meu blog não dá.

    Eu tinha muitos amigos no orkut, escrevia em comunidades, etc. Lá, através de amigos de amigos um médico me conheceu. Mais velho do que meu pai e muito importante na especialidade dele. Não, antes: ele me conheceu através de outra médica. Uma mulher bonita da minha idade. Esse médico me adicionou no orkut, no msn e ela ficava com ciumes. Eu não quis me meter e era o mais fria o possível. Mas ele nem ligava e era insistente.

    Um dia comentei no orkut que ia para SP, combinando encontro com os amigos de lá. Ele viu e se meteu na conversa, se auto-convidou para me conhecer. Eu não tinha como me recusar e marquei num lugar público. Para prevenir qualquer coisa, para não passar nenhuma impressão errada, fui com uma bermuda enorme e uma camisa larguíssima. Quase uma burca, levando em conta que sou calorenta e estávamos no verão. Ele me encontrou fazendo compras para o Luiz, perto da clinica dele. Almoçamos, conversamos civilizadamente, e eu fui embora.

    Algum tempo depois, ele puxou papo no msn e me disse que estava escrevendo um livro. E que havia um capítulo inteiro dedicado à mim. Pressionei para saber o assunto do livro e ele me disse que falou demais, que era segredo, que não ia dizer. Só me disse que eu deveria ficar "lisongeada", porque ele não tinha dado em cima de mim e nem me dito qualquer coisa, e que escrevia "aquelas coisas" ao meu respeito. Citou que eu estava usando meia socket e outros detalhes da minha roupa que nem eu lembrava. Isso foi assustador.

    Bem, logo depois... foi tão constrangedor que não ouso escrever. Logo depois ele foi desagradável e grosseiro, eu tive que ser incisiva e ele sumiu, acho que de vergonha. De qualquer maneira, há indícios de que ele ainda me acompanha virtualmente. Só não sei o quanto.

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  8. Puxa! Taí a razão de não poder escrever isso em seu blog. Peraí, então tem alguma chance de, se vc vir aqui em Goiás ou eu aí em Curitiba, almoçarmos juntos? Mas sem a burca!
    :¬))

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  9. Hahaha! Luiz, mas reconheço que muitas vezes exagero. Mas não é para mostrar erudição ou por esnobismo (já havia respondido a um amigo meu que seria pouca perspicácia querer passar por culto num país onde isso é visto como uma espécie de aberração), apenas o que seria, numa conversa comum entre aficcionados por futebol, falar sobre os melhores lances e os jogadores preferidos. Foi muita válida para mim a sua crítica.

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  10. Só se você me garantir que não está escrevendo um livro!

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  11. Charlles,
    a crítica do Luiz é válida. As citações às vezes ficam num vazio. O que você busca como estilo é extremamente difícil, pois exige grande maturidade de incorporação intelectual, isto é, quando você cita um determinado autor ele deveria naturalmente aparecer incorporado à sua escrita, mas muito mais do que isso: ele, o autor, deveria falar naturalmente por sua boca: é dificílimo.
    O José Miguel Wisnik, da USP, em minha opinião, é o único com tal proeza de estilo. Já assisti palestras do Wisnik em que uma aparente simplicidade jorrava em seu discurso, porém tal resultado sublime era fruto de uma colossal erudição sobre o tema abordado. Parecia papo de boteco, mas não era. Se eu fosse espírita, diria que o Wisnik “incorporava” os autores que mencionava.

    Em poucas palavras: o cara é fantástico.

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  12. Em tempo ainda: outra coisa admirável no Wisnik é que o seu discurso floresce naturalmente com toda a pontuação. Mas o cara discursa sem qualquer papel nas mãos!!

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  13. Charlles, ando fazendo uma revisão sobre o meu passado. E tal revisão se da através de minha poética. Pois bem, olha o que reescrevi sobre alguém que ficou lá, bem distante…

    A BARATA
    by Ramiro Conceição


    Disse-me certa vez uma barata
    que, com estimação, eu criara:

    “Se eu não tiro pedaços de ninguém,
    então há sanidade na mediocridade.”

    Contudo a desgraçada sempre devorava
    o mais caro a alguém; e defecava rápido,
    às escondidas, sobre a mesa de outrem.

    Moral da história:

    ao lidar com capachos,
    cuidado com escarros!

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  14. a proposito, eu também sou veterinaria! e teus amigos de infância dão romances, não?

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  15. Larissa, só tenho amigos excentricos, conturbados e pouco adaptáveis_ um privilégio.

    Veterinária! E que gosta do tin tin! E que faz parte do ops! Da minha turma, pois.

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  16. Ah... seu Charlles e suas ideias.
    Saí desta leitura e fui procurar um amigo na rede. Foi meu melhor amigo dos 12 aos 14 anos. Nessa idade, os melhores amigos são das coisas mais importantes da vida. Não o vejo há 21 anos.
    Acho que, na última vez em que no vimos, fiz uma tremenda grosseria. Nunca fiquei feliz com isso.
    Procurei o cara na net, por influência desse teu post.
    Descobri que é muito bem sucedido, um destaque da área da informática. Ganhou até um prêmio. Sendo nessa área, deve estar ganhando muito dinheiro.
    Fiquei na minha e não entrei em contato. Há certas coisas que são melhores na memória. A outra opção era escrever lembrando os velhos tempos (menos a grosseria) e pedir algum emprestado.

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  17. hahaha!...Farinati, é sempre bom quando aparece por aqui, com sua inteligência e seu humor. Pedir algum emprestado foi muito bom. Na adolescência, nós aprendizes de levar adiante a vital masculinidade ocidental, fazemos muitas besteiras, principalmente pelo motivo que por debaixo da carapaça existe sim alguém espantado, delicado e assustado com suas fraquezas. Um tio meu me deu um conselho quando lhe fui pedir auxílio em uma das fases da vida: "Nós passamos o grande restante de vida que nos resta após os 25 anos, tentando sanar todos os erros que cometemos na adolescência."

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  18. Perfeito!
    "debaixo da carapaça existe sim alguém espantado, delicado e assustado com suas fraquezas." Foi exatamente isso!! Aliás, ainda é...

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  19. não temos curiosos entre nós?
    o q Vladimir Safatle respondeu, se é q respondeu?
    [post mto bom. não parecia seu, no entanto. gostei da variação.estou lendo alguns atrasados. discordo sobre as "referências culturais" incomodarem, e entendo bem a analogia q fez com apreciadores de futebol - até pq me identifiquei. aliás, fiquei curioso sobre o texto q menciona ter escrito sobre futebol. vou por aí procurar]

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  20. Arbo, meu amigo, como bom cavalheiro que é, o Safatle me respondeu sim. Segue abaixo a cópia do email que ele me enviou e que eu gostei bastante:



    "Charlles,

    Primeiro, creio que estou te devendo um aspirador novo. Nao consigo lembrar porque eu o quebrei, mas temos que nos encontrar para que eu possa pagar esta dívida. Fiquei muito sensibilizado com seu texto. É sempre meio aterrador nos descobrirmos pelos olhos dos amigos antigos. Talvez você também tenha a impressao de que a vida de alguém acaba sendo uma sucessao de personagens que ficam meio pelo caminho. Algo se vai e algo fica.
    Bem, entendi que você virou veterinário e mora em algum lugar que nao é Goiânia, certo? Entao, seria legal ter mais notícias tuas. De fato, eu também tenho boas lembrancas desta época.

    Um grande abraco,
    Vladimir

    Vladimir Pinheiro Safatle
    Professor Livre-docente
    Departamento de Filosofia
    Universidade de São Paulo
    00 55 11 3091-3709
    www.fflch.usp.br/df"

    Sobre o post do futebol, é este:

    http://charllescampos.blogspot.com/2010/09/e-natural-que-seja-assim.html

    Obrigado, Arbo, por sua sempre tocante sensibilidade e afeto que tem demonstrado quanto a meus textos, e pelos comentários.

    Forte abraço!

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