Emmanuel Carrère está no calor sufocante da ilha grega de Leros, hospedado na casa de uma amiga. A amiga oferece o chuveiro para que ele tome um banho, mas ele recusa. Está há uns bons dias sem tomar banho, e sente um "prazer sombrio em marinar no meu suor nervoso e nas minhas roupas rançosas". Eles saem à noite para beber. Carrère toma incontáveis garrafas de vinho. Volta para a casa da amiga, dança com ela ao som da Polonaise "heróica" de Chopin, tocada por Vladimir Horowitz. Depois, ele e a amiga não fazem amor, o que ele não se lembra "graças a quem de nós dois esse erro foi evitado", o que fica a suspeita que para o sensualista exacerbado e dedicado cultor erótico que ele é, na certa a recusa foi da mulher. O que não é de se espantar, visto a sua roupa que há dias não troca, a sua cueca que há dias não troca. Essa cena é narrada em Ioga, depois de Carrère tratar dos jovens médio orientais refugiados num abrigo grego, numa tentativa desaforada de ser um escritor com preocupações sociais e senso histórico. É desconcertante para o leitor ver na recusa de Carrère em tomar banho o limite clínico real de sua capacidade em ser altruísta, em pensar fora de si, em realmente ser "um grande escritor". E o mais desconcertante é que o nojo que eu, pelo menos, senti, ao imaginar o odor que um corpo europeu masculino de sessenta anos despende privado da mínima higienização por dias, aumenta por saber que Carrère mesmo não percebeu isso ao escrever o texto. Ele não dá dicas morais ou metafóricas a serem retiradas dessa porquidão, ele escreve isso sem a mínima autocrítica, desmerecendo todo esforço anterior empregado na obra por ser uma pessoa melhor, menos egoísta.
sexta-feira, 27 de dezembro de 2024
Cavalgada pela Masúria
"Cavalgada pela Masúria", um dos capítulos de "Minha infância na Prússia", entra fácil na minha lista de melhores contos. Trata-se de uma parte do diário da condessa Marion Dönhoff. Com uma prosa que lembra Hemingway, mas de forma superior_ sem nenhuma necessidade tão tipicamente masculina de dizer "olha como escrevo maravilhosamente bem"_, o texto narra uma viagem que a escritora, quando jovem, faz pelo interior rural da Alemanha, a cavalo, e acompanhada por uma amiga. É uma obra idílica, pastoral, cheia de sol, florestas e a densidade humana de povoados com camponeses laconicamente gentis. Só que o ano é 1941, e a presença da guerra é um incômodo generalizado. Marion cita os prisioneiros pelos campos de forma pictórica, um detalhe indispensável que se tem de colocar no quadro mas que teria sido muito bom se pudesse desconsiderá-lo. Só que a autora não é uma poeta, mas uma jornalista ativista, o que torna impossível qualquer grau voluntário de alienação. Ao mesmo tempo que fala da exuberante simplicidade daquela vida, em que nem sempre encontram estábulos para pernoitar os animais e uma só vez, depois de muitos dias, tem a chance de tomar um banho quente, perfaz pelas páginas o exército de jovens se arregimentando pelas estradas, as sopas de leite na mesa carente dos camponeses à noite e a desnutrição da onipresença da batata. É um texto que rescende uma dolorosa saudade, uma saudade de tudo, da paz, da harmonia, da modéstia. Como são belas as mulheres escritoras, em sua modéstia sábia, cientes de sua superioridade sobre seus pares masculinos; enquanto minha outra leitura, o Emmanuel Carrère, fala apenas "eu", "eu! eu! eu!", a "minha dor", o "meu desespero", a condessa quase não se coloca em cena, uma impessoalidade transparente para mostrar a história e a impermanência fruto da ganância do "eu". E quando essas reminiscências terminam, vem aquela lucidez que só a literatura mais elevada provoca, uma espécie de amplitude iletrada paradoxalmente feita pelas letras, uma fagulha de consciência universal que não é para menos que um outro escritor tenha conceituado como "esotérica". Sabemos que essa educada e serena senhora que escreve essas palavras é a mesma que fez parte de um complô fracassado para matar Hitler, foi presa e libertada, enquanto outros de seu grupo receberam a pena de morte. De forma que esse conto é auto-explicativo em última instância. É uma nostalgia por uma época e uma disposição de espírito que foram varridas pela história, mas não vinda de uma intelectual isenta, não vinda de alguém que se deleita ao som lisergiado por drogas pesadas do "eu", como é Carrère. Debaixo desse tom ameno dessa mulher de oitenta anos há a adaga escondida de quem lutou para salvar esse mundo da estupidez e da veneração por idiotas sanguinários. E é só uma ilusão achar que ela saiu de todo derrotada. A possibilidade de que seja lida por longos e longos anos atesta que sua força verdadeira está acima da violência, está na restituição da comunhão do entendimento. Como diz Sêneca, que pego de uma lembrança do Carrère em O Reino, os maus não vencem, os que praticam a injustiça não levam a melhor. É um engano se entregar a essa resignação derrotista. "Pensas que quero dizer: um ingrato será infeliz. Mas não falo no futuro: ele já é".
terça-feira, 24 de dezembro de 2024
Emmanuel Carrère
Emmanuel Carrère é ótimo. Mas quando fala o quanto é o fodão, com suas mulheres que transou, e com a grana que tem, que é rico e inteligentíssimo, a gente percebe o quanto a futilidade moderna impregnou a literatura. Não se vê isso, seria um absurdo inenarrável, nos russos pré-revolução, nem nos norte-americanos do século XX (nestes últimos eles não alardeavam seu classemediaaltismo, mas a usavam para a crítica profunda da perda da alma). Carrère faz como Seinfeld e outros alicerces da anedota elevada (porque, por mais que seja brilhante, o que ele escreve não passa disso): o culto da discriminação elegante, da condolência burguesa pelos desassistidos, desde que se mantenha sempre à vista o fato deles estarem por cima, com suas preocupações espirituais cosméticas e suas angústias metafísicas de vitrine. Mas há nisso uma grandeza. Não quero renegar o imenso deleite e aprendizado que um livro como O Reino me provocou. E o poder de Carrère está em reconhecer isso, de que ele é um escritor que atende à metamorfose do que hoje pode ser conceituado como "um grande escritor". Alguém que escreve algo que exorbita o cânone, que traz para o proscênio a tralha que antes era repudiada e hoje se adequa aos novos interesses de uma classe abastada de leitores: a auto ajuda refinada, temperada com filosofia e conhecimento social, o anseio pela redenção, pelo esclarecimento. Os russos o faziam se retirando para mosteiros, no exílio, ou de dentro de prisões, ou abraçando o campesinato; eles não, Carrère não. Carrère diz que não tem a amplitude moral de uma montanha, mas a mornidão dos que só tangenciam os grandes temas. Ele mesmo se define como "morno". Ele é uma "colina". Ele escreve em sua casa luxuosa na ilha de Patmos, a mesma onde o suposto evangelista escreveu o Apocalipse. É esse fetiche da coisa autêntica vendável que motiva Carrère, estar onde aconteceu o milagre, mas não se imiscuir nele. A aquisição do gostinho espiritual apenas, e não do Espírito. Sem sofrimento, tomando seu café com nome chique em um barzinho cool numa cidade de altíssimo custo de vida num lugar idílico na Europa. Mas ele é um escritor honesto e verdadeiro, não escondendo esses detalhes significativos de sua mornidão, de ser reflexo firmado no fetiche da sua impressão de profundidade. Seinfeld em um episódio pergunta ao George o que pode ter na América do Sul. Carrère, assim como todos os intelectuais franceses, deixa transparecer nitidamente seu prazer em ser europeu, intocável, em volta com suas marcas empresariais poderosas, suas grifes (em Ioga ele fala da maciez de seus sapatos finos), sua cultura restrita a seu direito de sangue. Em O reino ele abruptamente interrompe o tema do livro para falar sobre um vídeo pornô chamado "Brunette mourant de plaisir et jouissant deux fois", que ele achou pelo Google, e descreve a tristeza contemplativa da morena do título com todo o potencial de suas tintas superiormente reflexivas, pintando-a de maneira rembrandtiana, descrevendo sua entrega às duas explosões de orgasmos com a máxima sutileza insinuante à imolação interior dos primeiros cristãos, ou algo assim que ecoe elegantes dissociações perceptivas. Ele, Carrère, chega a mandar esse seu texto sobre o vídeo para sua esposa, pedindo que ela lhe traga mais informações sobre a morena. E a esposa dele, com o sorriso descolado da cônjuge culta, pergunta se ele entende as possibilidades terríveis que se escondem nesse vídeo, que pode muito bem ter sido postado de forma não autorizada por um ex-namorado vingativo, ou a própria mulher o publicou por uma situação de necessidade econômica, etc. E a única coisa que o morno Carrère escreve, em conclusão a essa aula sobre as torpes motivações políticas por detrás da mídia pornográfica, é como ele tem sorte em ter uma esposa assim. O que não impediu que Carrère fizesse a mesma coisa que o ex-namorado do vídeo, falando em seu livro Ioga sobre detalhes depreciativos não consentidos sobre seu casamento que levou essa sua ex-esposa a lhe processar. Mas essa cena não é um deslize autodepreciativo de Carrère, ele a descreve para, como Montagne (muito citado por ele), ressaltar que o assunto de seus livros é pura e simplesmente ele mesmo, com todos seus pecados, suas indiferenças, seus filistinismos, hipocrisia, carnalidade, preconceitos. Essa alfinetada gentil que sua esposa lhe dá para que ele se cientize um pouco ao menos sobre sua leviandade é um fato corrente de tantas outras partes em que a verdade lhe é mostrada por quem está de fora, dando pequenas marteladas em sua casca de proteção. Talvez toda obra de Carrère consista em suas respostas a essas marteladas. Seu amigo Hervé Clerc, como outro exemplo, é o homem espiritual, despojado, que vê a existência como uma luta da alma por sair das sombras e alcançar a consciência libertadora, enquanto ele mesmo se regala satisfeito de ser sua oposição, o homem feliz com sua riqueza, com suas bebedeiras diárias, sua sexualidade, sua agradecida limitação hedonista na carne. Carrère se descreve como uma repaginação moderna de Sêneca, esse filósofo best-seller mesmo em sua época que pregava o estoicismo da simplicidade mas que era um milionário banqueiro enfunado em seus palácios de prazer. E Carrère é ardiloso: ele conhece como ninguém seus leitores e o mercado do que sobrou do livro. Para uma geração de símiles globais dele, Carrère é uma amostra ainda bastante elevada do que a literatura vestigial pode oferecer.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Não intrometa!
Um dos efeitos da diminuição global da inteligência é essa ingenuidade vazia, algo satânica, dos vídeos feitos pela IA de velhinhos marinheiros salvando baleias árticas. É de um artificialismo tão flagrante que só uma percepção profundamente corrompida pelo sentimentalismo tolo e pela depravação mental julga verdadeiro. O animal cibernético adiposo em toda sua preguiça simula se encher de ternura por algo que não está só além do real como além do definhamento de sua sensibilidade. O próximo passo cotidiano é enxugar as lágrimas pelo salvamento do filhote da baleia e entrar no vídeo do sexo sadomasoquista, para calibrar as outras cordas de seus nervos viciados. E qualquer sinal de dissidência da opinião religiosamente corrente das redes sociais, o alarme é acionado: o que esse estúpido está criticando no facebook? o que esse esnobe arrogante está querendo reivindicar fora das regras? ou se adapte ao meme, à corrente de julgamentos da semana, à adoração ou ao cancelamento, ou caia fora. Ou faça o self do seu rabo, ou vá ser a estranha aberração que é na solidão. Não intrometa!
domingo, 8 de dezembro de 2024
Abrigo
Dos 17 até os trinta eu tinha só dois livros. Lord Jim, do Joseph Conrad, e O jogo da amarelinha, do Júlio Cortázar. Claro que eu lia como um louco, mas eu comprava, trocava, ou simplesmente me desfazia dos livros sem a menor consideração. Meu primeiro emprego era de veterinário em uma cooperativa, que eu exerci por cinco anos. Eu chegava exausto do campo à minúscula pensão na minúscula e esquecida cidade onde eu morava, tomava um banho, jantava, e me lançava à releitura infinita dos meus dois livros. Eu ainda hoje sei um capítulo de cor de Amarelinha, e trechos inteiros do Lord Jim. Tirei deste último o título da minha monografia de história, "As encarnações imprevistas". Daí conheci a Dani, e ela me deu os dois primeiros livros que eu iria guardar pra sempre, além das eternidades condensadas pelo outro argentino e pelo polaco que eu levava no alforje, os volumes três e quatro da obra completa de Borges. Nesse astucioso presente, veio decretado meu duplo destino, que era o de ter propósito para constituir um lar e formar uma biblioteca. (Lembro do espanto absoluto na cara da senhora minha vizinha, quando viu aquela moça e o bebê de colo_ a Dani e a Júlia_ entrando pela primeira vez na casa onde ela julgava morar apenas o triste psicopata solitário e inofensivo com o seu cão.) Daí a Dani me disse, quando eu lia a dedicatória em completo maravilhamento que ela escreveu naquele presente perfeito que em trinta anos ninguém jamais havia tido a sensibilidade ou o interesse em me dar: "Nós podemos reservar um dos quartos da casa e começarmos a montar uma biblioteca, o que você acha?". E hoje aqui estão, os meus primeiros livros de homem assentado, enquanto as crianças correm pela casa, elas mesmas se regalando por horas com a biblioteca. E a Dani, como sempre, com sua humildade política, por detrás de tudo.
sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Rimbaud
Sempre tive um forte preconceito contra Rimbaud. O que um adolescente pode escrever de legítimo? Desde então meu desprezo total por ele. Afora o magistral romance do Le Clézio, Quarentena, em que ele é um dos personagens, eu não tinha nenhum rastro dele na minha biblioteca. Então me chegou esse volume de suas obras completas, por obrigação contratual, e, por puro enfado, peguei-o para dar uma olhada essa manhã e comecei a ler Uma estação no inferno. Li todas as 40 páginas com os olhos cheios de lágrimas e o espírito cheio da euforia contestatória diante uma entidade antiga, que nada tinha de adolescente e nem tampouco de francesismos. Então isso é Rimbaud? Então esse "negro", esse "filho de Cam", como ele se define em uma das passagens, esse "ser de uma raça inferior", como ele de novo se mostra criticamente agregado aos excluídos da Terra, é o Rimbaud que por meio século eu ignorei? Essa alma transbordante de ternura, ódio celestial e amor humano!
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
O gene, uma história íntima, de Siddhartha Mukherjee
Toda a humanidade veio de uma tribo de sete mil negros que morava na costa oeste africana há 200 mil anos.
Nós só pudemos nascer e estarmos vivos graças à mitocôndria, uma organela que habita as células e é responsável por minuciosas funções indispensáveis, e que só existe na embriogênese pelo óvulo, nunca pelo espermatozóide. Ela é trasmitida única e exclusivamente pela mulher.
A fibrose cística, uma doença devastadora e fatal, é uma herança genética restrita a europeus e seus descendentes. Ela só se manifesta como doença se pai e mãe forem possuidores do gene correspondente, caso contrário, foi a sua presença recessiva no dna que fez com que milhares, ou talvez milhões de pessoas, sobrevivessem à peste negra. Seu comando genético determina a retenção de sais no corpo, o que impediu que o sintoma de diarréia intensa advindo com a peste matasse seus portadores.
Sendo simploriamente conciso nas conclusões suscitadas por esses dados, todos nós somos negros, somos femininos, e temos milhares de doenças escondidas em nosso genoma que tanto podem ser nosso holocausto quanto nossa salvação. E mesmo assim, estão disseminados pela sociedade, na história, nas religiões, no comportamento, na política e no pensamento midiático o preconceito contra negros e outras discriminações "raciais" estúpidas, o ódio contra as mulheres e a eugenia contra os fragilizados e "diferentes".
Por isso eu disse para a Júlia, quando nós iniciamos a leitura do soberbo O gene, do Siddhartha Mukherjee, de onde vem os dados acima, que este é um dos livros verdadeiramente religiosos. Se houver um propósito maior e mais sublime na nossa espécie tão combalida pelo ódio e pela ignorância, está aqui, na simplicidade chocante do nosso genoma (que é quase idêntico ao do verme), nessas zonas de silêncio e nesses espaços vagos na catedral genética. Tudo o mais é a procura e a ânsia por saírmos do atraso milenar, do estarrecimento da existência que ainda compreendemos de modo tão errado. Mukherjee está repetindo o que vem sendo dito desde os profetas judaicos, desde Platão, Kafka, Einstein, etc.
Solenoide, de Mircea Castarescu
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
A Vítima
Era bem provável que aquela nuvem gigante que
cobria a cidade viera do Polo Sul. O clima andava tão louco há tanto tempo que
não se precisava ver a meteorologia para supor isso. Era fácil cogitar que
também havia algo além, que dava uma atmosfera espiritual às pessoas andando
atarefadas sob as sombras e o frio. Por um momento seus dramas megalomaníacos,
as intuições de antigas memórias tribais, eram postos em suspensão para que
elas observassem aquele manto cinza metálico, inflado de umidade elétrica, tomando
toda a amplidão do céu.
Foi em uma noite dessas que
Anselm Dulabonde desceu do ônibus na avenida próxima duas quadras ao
prédio onde sua irmã morava. Havia apertado o botão para avisar o motorista,
mas este pareceu querer avançar além do ponto. Como em uma sincronia urbana,
ele apertou novamente com nova ênfase ao mesmo tempo que o motorista moveu o
volante com impetuosidade e freou o veículo a poucos centímetros da calçada. Um
movimento de outros freios e buzinas rascantes atrás denotou a falta de cuidados,
o que Anselm acabou sendo receptor da ira do homem, representada pela violência
com que a porta foi aberta.
Pulando para fora, com a estimativa de
acidentes provocados nessas circunstâncias na cabeça, Anselm não procurou
conferir o que o sujeito lhe gritara. Nada lhe desgostava mais do que esses
embates urbanos que estavam mais para clichês físicos. Movimentos de
acondicionamento dos dentes das velhas engrenagens sociais. Talvez o homem lhe
dirigisse apenas um olhar compungido se ele o enfrentasse, raramente ia além.
As pessoas tinham muito medo de se enquadrarem às estatísticas. Uma educação
vestigial à prova de tudo as mantinham longe das colunas policiais dos jornais.
Anselm sabia disso pois trabalhava de dia em um jornal de imprensa marrom, como
se dizia nos bons tempos. E era o responsável por dourar a pílula dos
incidentes de crimes e morticínios da cidade. Tinha um “infiltrado” na polícia,
que lhe passava com a voz ensonada o material colhido nos boletins de
ocorrência. Quando Anselm entrava no serviço, às cinco da madrugada, o
informante se preparava para sair. Quanto mais sua voz era extenuada, mais
tinha coisas picantes para contar. Maridos bêbados, delinquentes juvenis,
arrombadores de panificadoras. Uma vez ou outra um tema real, que ele tinha que
digitalizar às pressas antes que a imprensa cibernética dos grandes portais de
notícias as lançassem.
Eram sete e meia da manhã e
o movimento de pedestres era moroso ainda. A cidade estava representada por
homens de semblantes sorumbáticos carregando garrafas térmicas e mulheres
magras de uniforme. Só Anselm, em sua roupa de flaneur, com a gola levantada
como fazia nos tempos da universidade, era um ponto desviante da curva. Não
recebia olhares averiguadores. Havia um exército de gente como ele,
subempregados sem definição certa, com sinais inarredáveis de uma juventude
tardia.
Misturando-se a elas ele desceu pela
rua que levava ao apartamento de sua irmã. Ela lhe telefonara às seis e meia.
Disse que o filho dela, Marcus, de seis meses, ardia em febre. Não havia muito
o que fazer do que deixar tudo em suspenso e ir socorrê-la. Não havia ninguém
menos preparado para isso do que Anselm, mas o fato é que não havia mais
ninguém... O pai do garoto era o que se definia nos anais jurídicos como pai ausente.
_ E onde está Edgar, Tina?_ ele
perguntou à irmã pelo telefone.
_ Ele está em uma tarefa do escritório
na cidade de L. Por favor, venha rápido.
Tina, Esvertina, sua irmã, sempre poupava
Edgar. Ela tinha muita pena que o marido fosse o único provedor da casa, e o
escritório de advocacia onde trabalhava o sugasse tanto. Era parte do arranjo
que ela teve que aceitar para não virar uma solteirona. Tinha sido uma mulher
linda até os trinta anos, e aos trinta e sete a hidrostática corporal era uma realidade
incontornável. Fizera três namorados arrastarem a seus pés, mas agora tudo o
que lhe restara para uma promessa conjugal moderada era Edgar, e ela não podia
mais se dar ao luxo. Anselm se distraía imaginando a cara de desforra dos
namorados desprezados ao saber que ela se rendera a um sujeito divorciado, com
dois filhos. Ele nunca tinha suportado a prepotência aristocrática de sua irmã,
mas aquele terror da solidão clássica o deixava compungido. Era como ver um ovo
Fabergé consertado com peças de segunda mão por um artífice farsante. Ser um
estepe insuficiente era o máximo que podia fazer pela irmã para atenuar a ação
daquela sorte inadequada, francamente injusta.
_ Por que você não levou Marcus para o
hospital, Tina?
_ Eu o estava medicando com dipirona e
amoxilina, que foi o que o médico passou a última vez. É tudo muito difícil,
Anselm. Estamos em um regime de contenção de despesas e sair à noite com o
Marcus seria um custo que não tenho como arcar.
Ele pensou em quanto teria no bolso e
não lhe pareceu ser muito. Aqueles choques entre sua vivência com a da sua irmã
lhe entregava aspectos desconcertantes de seu pouco caso com o dinheiro.
Sacolejou algumas moedas que pelo peso indicavam dar pelo valor de uma passagem
de ônibus e pegou seu casaco. Miguel, seu chefe, o olhou aturdido. Estava com a
cara inchada, demonstrando que havia passado a noite em claro em seu artigo
sobre as formas globais de dominação. Abaixo do olho esquerdo uma mancha
líquida, que parecia se segurar imobilizada para não escorrer.
_ É a Tina. Volto depois do almoço.
Ele não disse nada. Quando colocou sua pasta abaixo
de sua mesa, ao lado da cesta de lixo, ouviu ele conversando com Januário, o
responsável pelas colunas sobre movimentos emancipacionistas.
_ A falta de compromisso está cada vez mais
marcante. Para um jornal progressista isso é uma falta de fé tremenda.
Anselm fingiu que não tinha
ouvido, embora a acústica da pequena sala ventilada amarelecida pelo sol
recortado da manhã espalhasse o som de maneira nítida. No corredor ele fechou a
porta com o ar absorto, pensando nessas intermediações menores da realidade.
Era quase um trabalho voluntário, que só lhe dava para pagar o aluguel e as
despesas com a luz. Em plena época que estavam, falar sobre antigas ideias abortadas
mantinha a mente afiada. Ele sabia que Miguel estava certo, a baixa expectativa
de que aquele jornal aumentasse sua circularidade fazia a permanência ali um
ato de fé. Mas o que ele poderia fazer diante um inconveniente de saúde? Ele se
condoía de que um bom homem pensasse assim, e mesmo sabendo que havia muito de
mimo nisso ele descera as escadas com pesar.
Do lado de fora ele estacou de
súbito diante aquele céu. Vagas de nuvens de chumbo. Tinha algo de segunda
guerra mundial, de operações militares sobre cidades devastadas. E o frio
corria num movimento contínuo cuja aplicação fanatizada tentava entrar pelas
abas dos casacos dos transeuntes. Ele teve a impressão de que flagrava uma ação
orquestrada por alguma força maléfica, como uma organização sideral de ladrões
de carteira.
Faria o possível para voltar antes do
almoço, talvez convencendo Tina a chamar uma ambulância. Tinha que ver com
cuidado a situação do menino, que justificasse uma ambulância. Pensando assim,
parecia um milagre preservado que numa cidade tão grande houvesse possibilidade
de que um assistencialismo hospitalar tomasse conta de uma simples criança.
Viver longe da região visível fazia Anselm pensar na grandiosidade que eram os
poderes da instituição social. Se ele ficasse doente, o que raramente
acontecia, ele nunca cogitava no recolhimento dessa ortodoxia. Da última vez
que teve um ataque estomacal, ingeriu dois comprimidos e se encolheu em posição
fetal, até que a fagulha dourada de dor sumisse. Talvez essa ideia tomasse
conta de Tina, e ela achasse que um aparato não poderia ser tão intrincado a
ponto de seu filho merecer atenção.
O prédio de Tina tinha cinco
andares e ela morava no terceiro. Era um bairro popular, de renda média.
Usualmente acolhidos por casais jovens que acreditavam ainda que tudo era
positivamente transitável. Tinham uma autocritica estética de não colocarem
roupas em varais e serem adeptos do silêncio. As forças se estabeleciam na
capacidade de contratarem serviços de limpeza doméstica, o que muito servia para
darem uma dimensão das coisas. Anselm achava que o advento da revolução virtual
havia trazido um grande alívio para aqueles casais, pois as distrações ficaram
mais baratas do que irem a museus, ou jantarem fora, ou em parques com as
crianças. E enquanto tivessem aquele pequeno arremedo de feudo particular com
seus serviçais pagos por hora, o próximo passo necessário ficaria sempre
protelado. Mas era interessante, pois nunca ficara sabendo de permanências
exageradas nesse estágio. O que ele pensava que só poderia se resolver mesmo
pela ascensão. Era um dos efeitos da persistência intuitiva ao senso comum que
desbaratava todas as críticas filosóficas sofisticadas.
A porta estava entreaberta, deixando
ver o amarelo do corredor estreito das escadas. A tranca estava quebrada, e
Anselm olhou para o painel de chamada afixado à parede. Leu o nome do terceiro
andar, Edgar, o que o fez soltar um muxoxo de ironia. A placa de metal estava
enferrujada, o que denotava ter décadas de idade. Subiu os degraus procurando
não se segurar nas paredes. Do alto veio um eco vazio de significados, como se
fosse um ar represado que ele liberara com a descompressão da porta. Uma luz
automática acendia a cada andar. No terceiro, ele empurrou a porta de metal
pesada. Entrando no corredor que dava acesso aos quatro apartamentos, ele se
posicionou diante a porta da irmã. Apurou os ouvidos, na expectativa de que os
dramas espirituais condensados lá dentro fossem ouvidos, talvez algum sinal de
melhora. Mas o silêncio era total, como se fosse uma das ilustrações típicas
dos romances russos clássicos. Tocou a campainha. Ela funcionou, com uma
limpeza que mudava por um curto segundo as apreensões metais.
O filho mais velho de Edgar abriu
a porta. Anselm nunca sabia qual era o nome dele, se ele era o Victor ou o
Tomas. Eram uma espécie peculiar de gêmeos de idades diferentes para ele, sendo
muito parecidos. Apenas que o mais velho não tinha o vestígio de doçura
infantil do outro, tendo as feições irritantemente pragmáticas para um menino de
12 anos. Era como se ele já estivesse se acondicionando para sua vida ativa,
como se antecipasse a cara do burocrata que estava destinado a ser. Anselm
procurava não nutrir nenhuma tipo de sentimento crítico em relação a ele. Não
era seu problema.
_ Posso entrar..._ ele perguntou, se
lembrando de súbito que ele se chamava Victor_ ...Victor?
_ O, é você! Entre.
Ele deu um passo cauteloso, olhando para o interior
escuro. Fechou a porta atrás de si, pensando se não era pouco preventivo não
girar a chave, e ficou parado. O menino o olhou de volta, com um ar
interrogativo, mas não disse nada. Estava entranhado o suficiente no ambiente
para achar todas as formas de desconexão lógicas corriqueiras.
_ Chame sua mãe, Victor._ ele disse.
Falara baixinho sem entender
muito bem por quê. O apartamento era tão minúsculo que mesmo esse tom deveria
ter sido apreendido por sua irmã lá de dentro. Só poderia estar no quarto, com
Marcos. O menino entrou pelo corredor escuro e tudo voltou ao silêncio tirânico
e aflitivo que aliás não chegara a ser interrompido.
Havia uma poltrona velha ao lado
da janela, e um saco de imitação de couro que ele não sabia o nome, mas que
servia para se sentar. Em uma cesta no chão, haviam muitas revistas sobre
assuntos triviais. Os assuntos triviais que o horizonte espiritual sempre
limitado de sua irmã comportava. Moda, conselhos adolescentes, a vida das
subcelebridades da internet e da música. Olhando por aquela perspectiva da
doença, eram temas francamente encerrados, afasicamente obsoletos. Provocava
certo constrangimento nele por a irmã conservar aquelas coisas. Qual o
propósito? Apostava em algum tipo de esperança nelas? Como se algo pudesse ser
reavido através daquelas folhas amarfanhadas e sebosas?
Esvertina apareceu. Viera a passo
comedido, como se devesse aquela mínima polidez a ele. No meio do corredor ela
tropeçou em algum objeto que estava no chão, talvez um brinquedo de Marcos.
_ Oi, Anselm. A febre dele passou e ele está
finalmente dormindo. Eu dei um banho em água fria nele, na bacia de metal.
Ela tinha marcas profundas no rosto. Seu
cabelo era um misto de cores baças das tantas tinturas que se sobrepunham, um
filete ralo dele caindo-lhe para a frente por sobre a testa. Usava uma camisola
branca encardida, e seus pés grandes e protuberantes mal haviam se ajustados a
uma chinela. Estava dormindo também, o que deveria ter conseguido em uma
batalha conjunta com o menino. Vai ver aquele comedimento era para disfarçar
sua má escolha precipitada de trazê-lo ali justo quando enfim poderia
descansar. A comunicação entre os dois sempre tivera esse mérito irritante de
se fazer de forma imediata, sem subterfúgios, deixando os dois perdidos na
impossibilidade seguinte de perpetrarem outra palavra. Seria impossível para os
dois desfazerem o engano, com ele se retirando do apartamento. Iria se
desenvolver para um problema inóspito e imprevisível, e por isso eles sabiam
que teriam que tolerar.
_ Que bom! Lembro da mamãe me dando
banhos gelados quando eu tinha febre. Uma vez ela me estendeu na banheira e eu
achava espetacular não sentir o frio dos tantos cubos de gelo que ela havia
colocado sobre mim _ ele disse.
Ela saiu de sua imobilidade e foi até uma
cômoda pequena ao lado da estante onde estava a tv e alguns livros de
autoajuda. Anselm imaginou que ela iria pegar um cigarro, mas se lembrou que
ela tinha dito ter parado de fumar já fazia dois anos. Mas a coreografia do
movimento era o mesmo e ele apostaria que se a abstinência não estivesse de
todo resolvida havia acendido alguns sinais na cabeça dela. Ela vasculhou em um
pequeno pote de cerâmica barato, que servia para guardar moedas e chaves, e
retirou uma nota de dez. Entregou para Victor, que estava um pouco atrás, e
mandou que ele descesse e fosse até a padaria trazer uma cerveja.
_ Vá e volte rápido, Victor.
Daí retirou um livro didático infantil de
sobre a poltrona e mandou que ele se sentasse. Ele enfiou a mão por um momento
no bolso traseiro do jeans e avançou. Em sua mente surgiu de forma repentina o
texto que teria de escrever sobre os efeitos climáticos provocados pelo
capitalismo que acometiam as regiões do nordeste do país. Sentiu uma vontade
louca de ir para o escritório.
_ Ainda acho que deveria levar Marcos
ao médico, Tina. Essa febre pode voltar, as febres sempre voltam se a causa
delas não for tratadas.
_ Eu vou leva-lo hoje. Eu não consigo falar com o
Edgar. Ele esta em uma cidade interiorana e o sinal é péssimo. Vive caíndo. E
dessa vez não há sinal algum.
Anselm não queria entrar nessa parte da
história. A situação da irmã era terrível, ele sabia. Os dois filhos de Edgar
passando aqueles dias sozinho com ela e o Marcos deveria tornar tudo mais
difícil. Era até um prodígio de autocontrole que ela aceitasse eles ali, o
Edgar não estando. A mãe deles, a primeira mulher de Edgar, era um assunto
proibido. Ninguém nunca falava o nome dela, quando os dois oficializaram o
namoro ninguém nunca poderia fazer perguntas sobre o passado. Mas havia o
arranjo dos dois meninos ficarem com eles aos finais de semana, e isso deveria
ter sido uma das abdicações que Esvertina tivera que fazer. Era impensável
tamanha paciência quando estava no completo controle dos seus poderes. Crianças
para ela eram animais perturbadores que para suas seguranças deveriam manter a
distância dela. Ele sempre tinha o receio de que ela falasse algo além da
legalidade em restaurantes com meninos turbulentos, e uma vez viu uma mãe em um
parque envergar a nuca em uma posição florestal de ataque e retroagir diante a
razão restabelecida. E ele não sabia onde estaria o outro menino, o gêmeo cindo
anos mais novo.
_ Se precisar eu tiro o resto do dia de
folga. Eu prometi finalizar algumas pautas para o Osmar hoje, mas eu poderia
dar um jeito.
Ela o olhou com antigas arestas de cogitações
misantrópicas e então seu olhar desanuviou. Ele entendia bem o que queria dizer
aquilo. No momento ele sentiu uma aversão pálida, desinflada, pela irmã, que
antes era poderosa a ponto de manter a distância recíproca entre os dois. Ela
nunca aceitara o que ele fazia como uma profissão, como um trabalho digno.
Escrever abobrinhas para um jornal sobre anacrônicas causas perdidas não era
nem de longe algo que justificava o martírio da sobrevivência cotidiana como
eram suas sessões de fisioterapia. Mas isso ficara no passado, antes do
fracasso, quando ela pesava dez quilos a menos e tomava banho todos os dias. O
cheiro que ela expelia agora, junto com as profundas rugas que lhe apareceram
no rosto, não lhe davam mais a segurança dos preconceitos de pertencer a um
nicho. O repúdio ainda estava lá, como uma reação pavloviana. Bastava ele
invocar as mesas palavras e a ridicularia se manifestava em um grau bem menor
dentro dela Equilibrado pelo que o senso comum adepto a desforras morais dizia
ser a lucidez do sofrimento, mas havia apenas a desistência. Para ela agora
tudo se nivelava por baixo, nada tinha ganho uma natureza redentora de
admiração. O máximo que se poderia dizer sobre um caráter de justiça era que
ela fora trazida para a mesma zona rebaixada dele, aceitava com a mesma
resignação o que achava que cabia como distinção de baixa classe a todos nesse
estágio da derrota.
_ Não é preciso, Anselm. Eu não quero
prejudicar você. E a Marta veio aqui e disse que me ajuda a levar o Marcos. O
hospital fica perto daqui.
Ela disse isso olhando para baixo,
compungida. Essas facilitações todas lhe davam a consciência de que seu atraso
em levar Marcos ao médico era cada vez mais injustificável. Ela ergueu os olhos
e neles havia um pedido claro para que ele não a julgasse por isso.
_ A vida anda muito difícil, Anselm. Eu não
pensava que seria desse jeito. O dinheiro parece não entrar, o tempo parece
parar e tudo ficar enrolado em um âmbar_ ela não sorria. Sua boca tremera
nitidamente, como se a expressão de todo esse pensamento em palavras lhe
revelasse uma dor inconveniente.
Ela sempre se limitou confortavelmente
às áreas pragmáticas do discurso. Ao contrário dele, ela nunca fora dado aos
livros. Via a propensão do irmão à leitura como uma espécie de aberração que
explicava algumas coisas. Essa pobreza metafísica voluntária a salvava de uma
interpretação mais sofisticada do sofrimento. Os homens cultos poderiam achar
bonito dizer que essa imolação lhes causam inveja, mas para ele era
aterrorizante purgar todo aquele inferno ainda mais subdimensionando-o. Havia
um grau de conforto em reconhecer a extensão da desesperança que sua irmã
sempre seria mutilada para perceber.
_ Onde você disse que está Edgar mesmo?_ ele
perguntou.
_ Ele está viajando para recolher assinaturas
em alguns processos de aposentadoria. Tem que cobrir várias aldeias que não
chegam a ter cinco mil habitantes. Você sabe como é, todos aqueles doces casais
de senhorzinhos dependendo da ação do escritório o mais imediatamente possível
para terem do que viver.
Aquela era a diferença entre os dois.
Se ele tivesse gasto seu tutano de devorador de livros com aquela frase o tom
seria outro, cheio de sarcasmo e crítica à extorsão da advocacia. Mas tendo
sido dito por Tina, representava um retrato absolutamente oposto, com um humor
fremindo de uma leve tensão que no final se resolvia pela descrição carinhosa
de “senhorzinhos”. Havia o reflexo da rançosa ternura filistina das revistas
adolescentes da cesta no chão.
_ Bom..._ ele espaçou as mãos como se fosse
brincar de cama de gato, sem ter o que dizer. Se fosse falar as cansativas
coisas que lhe vinham à mente seria uma vaidade fútil, mostrar acidez para uma
mulher que já estava derrotada.
A porta se abriu e Victor entrou,
empurrando-a com o corpo como se a garrafa de cerveja média que levava lhe
reduzisse a automaticidade. Entregou a cerveja à Esvertina, que a pegou sem
agradecer. Havia uma certa intimidade entre os dois, dura, sem necessidade de
carinho, que dispensava esses atos sociais. O menino deveria ter algum senso de
obrigação que lhe garantia a permanência ali. Não se podia mais chamá-lo de
criança, tendo a infância sido excisada dele minuciosamente como uma unha
encravada retirada de um organismo que agora tinha a liberdade de exercer sua
plena eficiência. Tina passou a cerveja para Anselm, com a naturalidade concisa
de algo essencial, como se estivesse lhe entregando um guardanapo para limpar o
sangue do nariz. Um dos indicativos do quanto eram irmãos mutuamente desatentos
era ela não saber que ele odiava cervejas. Em um programa de perguntas intimas
entre candidatos eles fariam uma dupla destinada a uma derrota fatal, quando o
apresentador lhes passasse a questionar sobre suas comidas preferidas e seus
hobbies favoritos. O que sua irmã gostava mais de fazer nos tempos livres? Ele
só conseguiria responder que ficava parada esperando o tempo passar. Mesmo que
ela atravessasse dez quilômetros a pé, o fundamento de sua vida era apenas o de
esperar o tempo passar.
Ele não levou a garrafa à boca.
Talvez ela assistisse demais a séries da tv patrocinadas por marcas de cerveja,
que fazia os personagens tomarem aquela agua choça a cada virada de cena. Quem
na vida real tomava aquilo àquela hora? Num gradiente menos responsável pela
digestão de tanta sinestesia acumulada, aquilo seria de uma comicidade terna.
Mas só havia o cansaço e a desesperança.
_ Victor, volte para o quarto e fique com
Marcos_ ela disse.
O menino demorou alguns segundos, talvez de
propósito para marcar que só ia quando lhe desse vontade, e fez o que ela
mandou. As coisas talvez fossem bem mais fluídas do que ele imaginava, e tudo
não passasse de impressões de sua mente extenuada.
_ Quando você volta à rotina normal na clínica,
Tina?_ ele perguntou sem nenhum interesse.
_ Talvez nunca. Venho fazendo o possível para
manter a clínica, mas a taxa de aluguel me parece agora muito grande. Eu venho
realugando para uma outra fisioterapeuta e quase não me sobra nada. E olhe para
mim.
Ela estendeu os braços e por um momento
algo na linha do corpo dela a fez semelhante à adolescente de outrora, uma
certa graça e leveza que se dissipou rapidamente. Anselm acentuou sua
curiosidade a olhando detidamente para tentar apreender aquilo, mas os
contornos oblongos suscitados pelo excesso de peso destituiu de uma vez a
insinuação. Havia um descompasso que não oferecia muita esperança de um dia vir
a ser consertado entre aquele corpo carregado de morosidade e o rosto de Tina,
que estava chupado, cadavérico. Era como se ele, o rosto, tentasse afirmar algo
à marra, de forma violentamente maníaca. Como a presciência de uma verdade que
era um ato absurdo atestar nas condições materiais que o apreendiam à frente
daquele organismo.
_ Eu estou dez quilos mais gorda. O Marcos
não para de mamar em meu peito, que está deteriorado. Um peito caído e murcho.
Meu peito se estendeu de maneira brutal, como se minha pele tivesse virado uma
borracha extremamente flexível. Ele não vai voltar para o que era antes, nunca
mais. E o mais ridículo é que esse inchaço todo é em vão, pois não produzo
leite nem a metade do requerido. Se Marcos fosse um bebê normal a metade já
seria muito baixo, mas ele sendo um mastodonte insaciável, a metade é um estado
de fome perpétuo. Daí que eu tenho de comprar um leite em pó rico em proteínas
e vitaminas, destinado a esses casos, mas cada lata custa o olho da cara. A que
eu comprei há três dias está por duas colheres.
Ela parou de simular o riso que a fazia
supor ser um atenuante para a revolta daquelas deliberações todas. À medida que
falava, sua voz ia ficando pastosa, seu rosto ia se desfazendo. Ela encolheu os
braços e olhava em uma parte do círculo de meia luz que constelava aquele
cosmos caseiro que era a escura sala de estar, como se a falta de um alívio
cômico àquela prisão fosse de uma crueldade pesada demais.
Anselm conteve um suspiro, mas foi
movido por uma inconformidade insuportável a se inclinar para a frente. Colocou
a garrafa por sobre a mesinha de centro, sobre a qual estava um brinquedo de
montar pueril_ um campo de férias com árvores de plástico e bonecos de
pinguins, algo que se eviscerava de um atestado de bugiganga barata. Olhou
aquele brinquedo por um momento, julgando que os significados foram organizados
ali com uma feroz intenção de desmotivar, algo que a aleatoriedade se mostrava
soberanamente virtuosa em fazer em ambientes como aqueles. Ele teve um daqueles
pensamentos incapazes de se verbalizar, fulminantes de realidade, de que a
cerveja era a única tentativa de transcendência que Estertina fazia quanto a
ele, a única maneira sem sucesso dela em trazer algo de dignidade alheia para
aquele seu mundo hermético.
_ Tina, o que Edgar diz disso tudo?
Digo, eu tento não interferir em nada em seus projetos familiares, e quem seria
eu para fazer isso. Eu não sou casado e tão pouco tenho filhos. Mas como irmão,
como tio, eu talvez tenha a liberdade de perguntar isso. O que Edgar acha disso
tudo?
Ela o olhava fixamente, com uma atenção intensa.
Ele associava aquele olhar a digressões que ela usava antigamente, quando eram
jovens, para ou fugir de um assunto espinhoso ou para contra-atacá-lo. Quando
ele executou o primeiro laboratório de suas experiências de opiniões que
poderiam dizer a ela, sobre a nova roupagem adulta que ela usava na
adolescência, essas palavras eram sempre ásperas. Ásperas a um ponto que
chegavam a ser ingênuas, mostrando que ela superdimensionava sua capacidade
solitária de lidar com seus namorados. Ela nunca aceitou que ele desse um
pitaco sequer, e a primeira frase tinha sido que ele não era pai dela. Isso o
abalou, sem saber como se comportar diante pequenos crimes sexuais contra uma
moral fantasmagórica que ele mesmo tinha cumprido seu papel biológico etário em
cometer, e depois se calou, aliviado. Foi muito fácil. Ele vinha levando os
anos que a via crescer, deixando as bonecas e passando para as maquiagens,
eliminando automaticamente todo o vestígio de cumplicidade que eles tiveram um
dia, pensando como lidaria com isso. Se teria o grau de severidade
deslocadamente paterna para usar com aquela menina desassistida na hora certa.
E a hora certa chegara e ela resolvera tudo dizendo que ele não tinha nada para
se intrometer na vida dela. Ele seguiu seu caminho, prenhe de uma plenitude
rara da isenção consentida, da indiferença requisitada. E lá estava aquele
olhar de novo, renascido depois de tantas modificações em que ele nunca mais
fora reclamado, colocado no rosto dela como uma peça de quebra cabeça indevida,
não encaixável. Suspenso num aparato temático já escoado de toda autenticidade,
ele paradoxalmente parecia mendigar o contrário do que havia exigido de
liberdade e não intromissão, cheio do saudosismo de um direcionamento afrontoso
que agora considerava como uma perda valiosa. Naquele apartamento frio,
rescendendo a odores de exsudações corporais de todos os tipos, de roupas não
lavadas, da poltrona que tudo indicava aquelas manchas eram de vômito e urina,
com as almofadas marrons rasgadas e afundadas em formas eternas de posições de
glúteos avolumados e engordurados, naquele silêncio tumular irredimível e
absoluto, havia acontecido tudo o que um irmão zeloso da concepção clássica
tivera o dever de alertar e empurrá-la mesmo contra sua vontade para o caminho
oposto.
_ Ele trabalha demais, Anselm, e é para
nosso bem, o meu e do Marcos e dos dois outros meninos.
Aí ela desabou. Levou as mãos para o
rosto e, na posição em pé em que estava, se pôs a chorar. Por um instante ele
ficou imóvel, averiguando se aquilo consistia no que estava evidente que era,
se não era uma tramoia não da irmã mas de outros movimentos condicionados que
haviam vicejado naquele lugar vicioso como fungos. Alguma sistemática contração
do corpo que só se parecia ao choro mas era algo mais solene no sentido de uma
segurança postural de não recair em maneirismos sentimentais. O choro foi se
alteando, até que o fiapo que era a nascente calma se tornou em uma explosão
mucal no centro dos braços dela. Foi aumentando ainda mais até que Esvertina
deu um grito e seu corpo tremeu, como se fosse desabar para o lado.
_ Por favor..., por favor... Anselm...
Ele se levantou com um movimento lento,
comedido. Não saberia como abordar uma figura emblemática como sua irmã naquele
estágio em que a via desalojada de tudo que a fazia peculiar. Naquele vão em
que se suspendia por um momento todas as compulsões de sua personalidade. Se
aproximou dela e colocou uma mão em seu ombro. Isso pareceu explicitamente
insuficiente para os dois, a ponto de se não fizesse nada mais veemente, mais
caloroso e humano, iria agravar a coisa. Então ele a abraçou e ela deitou a
cabeça no ombro dele. Eram ambos altos, a estatura sendo uma característica
estética que sempre favorecera ela em seu domínio feminil sobre as
circunstâncias do cotidiano, mas ele era dez centímetros mais alto. O topo dos
cabelos dela ficaram rente à sua boca e ele sentiu fragmentos brancos das
células mortas do couro cabeludo nos lábios. Tinha um cheiro amorfo, em
negativo, o nível mais elevado da decantação natural a que podia chegar aquela
minuciosa química fisiológica, algo próximo à assepsia. Ele se lembrou das
cascas de ferida do joelho dela, quando os dois ainda eram ligados um ao outro,
antes que a mãe os tivessem distanciados pelo medo doentio do incesto. De como
elas surgiam em decorrência das quedas que a exultação diante a fluidez sem
limites da infância e sua pouca apetência técnica com a vida lhe causava.
Anselm sentiu no fundo de si algo, não chegava a ser amor, uma condolência de
uma ternura em estado primitivo pela irmã. Havia uma quantidade perniciosa de
registros memorialísticos sobre ela em sua mente para que ele pudesse
considerar apenas aquela garota imaculadamente sem erros que ela fora. No fim
daquelas lágrimas, ele sabia que ela voltaria a ser a mesma mulher cheia de
reservas e compulsões peculiares com a qual dividia muitas reservas.
Ele nunca culpara a
mãe por essa desconfiança fanatizada, aceitava as ações retaliativas que vinham
dela sem cerimônia, como as leis da natureza aceitam sem drama o repúdio e o
morticínio. A mãe tinha sofrido muito mais do que qualquer um dos dois, e
Estertina estava em um segundo lugar vantajoso. De certa forma elas tinham uma
recriminação rancorosa incrustrada numa região oclusa de suas feminilidades por
ele ter tido a sorte de nascer homem. Ele cogitara em segredo que essa inveja,
essa consciência resignada de que fora deixada em um plano inferior de
benefícios pela potestade embriogênica que lhe fizera ter uma fenda entre as
pernas e uma porção de hormônios que especificavam o crescimento de glândulas
com o pueril objetivo de atrair o macho incubador ególatra, tinha revertido
nela em uma condição homossexual. O excesso de ódio que ela sentira por aqueles
dois namorados, a exultação que ela sentia ao ver que tinha o poder de fazê-los
rastejar e se sujeitarem, que aquelas efusivas protuberâncias, ridículas
curvaturas, abjetas umidades atrativas que expediam daquele corpo que ela
habitava, poderia ser usadas como armas, evidenciava que ela assumira um
projeto esotérico vingativo.
_ Lembra da mamãe dizendo que a
infância é o laboratório de todas as doenças, e que é por causa disso que as
crianças passam tanto tempo febris? É o corpo depurando as mazelas, incubando
em si mesmo os vírus e bactérias para criar uma memória imunológica. É bom
olharmos a doença de Marcos com calma_ ele disse.
_ É que é tudo muito difícil. Se pelo menos
Marcos voltasse a ser o monstrinho sugador que costumava ser. Ele não está se
alimentando desde dois dias atrás.
_ Talvez seja a economia natural do corpo, Tina.
_ Eu fico pensando nisso. Ele treme de febre mas há
algo nele que não é de todo debilitante. Me vem à cabeça exemplos extremos, que
são inconvenientes usar. Como de prisioneiros. Um homem famélico em um campo de
concentração. E observo se Marcos está adquirindo aquela aparência mumificada.
_ E o que você acha?
_ Talvez seja minha visão de mãe, mas ele não está
de todo mal.
_ Quando Marta virá para te ajudar a leva-lo ao
hospital?
_ Ela veio aqui em casa mais cedo. Está de licença
desemprego e marcamos de ir após o almoço. Ela já trabalhou na faxina do pronto
socorro e sabe que a parta da tarde é menos movimentada. Ela diz que as pessoas
não imaginam o quanto que existem doentes sofrendo nas madrugadas, o que
resulta em internações urgentes pela manhã.
Ela já tinha se afastado dele à medida
que falava, de modo que pareceu a ambos natural. Por estranho que parecesse,
não ficara nenhuma sensação de embaraço neles, como se o gesto abrupto de
carinho fosse sublimado pela manifestação maior do choro. O rosto dela ficou
iluminado pela lâmina das lágrimas. À medida que ia se evaporando ou sendo
reabsorvida pela pele, um rubor se firmava junto à sombra da sala e as marcas
da idade retornavam com uma fidelidade tranquila. Ela era dessas pessoas que
não choram sozinhas, que o choro é associado em suas convicções a uma explosão
catártica que necessitada a ter alguém como testemunha. Tinha servido para
deixa-la inequivocamente mais tranquila.
_ Você quer vê-lo?
Se deixou levar pela repentina surpresa
de que poderia muito bem prescindir de ver o sobrinho, que fazia parte da sua
tenaz economia de sentimentos não se submeter a isso. Concordou em silêncio e
ela se virou e seguiu pelo corredor. Como ela havia se desabafado_ aquela pobre
consumação de dias e noites de desespero, que se agrupava também à sua política
de baixas expectativas_, até o seu andar era novo, podendo ser definido como
mais centrado. Com um movimento do pé, ela afastou para o canto o brinquedo no
qual havia tropeçado. Andava de seu jeito largado, que a Anselm sempre era um
traço marcante de sua personalidade, um tanto masculino. Um jeito de andar que
nunca trabalhava no realçamento de seus glúteos bem torneados e sua cintura
fina na juventude.
Ela abriu a porta com delicadeza,
para não acordar o menino. Ele entrou, com a sensação herdada de um senso comum
inercial de que um quarto de criança, no mais vestigial e distante que seja,
sempre exala uma áurea de pureza, de exclusividade indômita. Por mais que os
objetos de cena sejam pobres, a pintura desgastada do berço, a pequenez
opressiva das dimensões, a impressão de obsolescência dos brinquedos resgatados
do baú de antigas infâncias, sempre havia uma afirmação incognoscível,
impossível de exprimir, de soberania. Como se a criança ocupando o centro dessa
terrenidade pesadamente intrascendente tivesse sempre o sinal distintivo do
poder emanante do reino de onde provinha.
Viu Marcos deitado de bruços, a cabeça voltada
por sobre o travesseiro fino. Uma chupeta que pareceu de tamanho
desproporcional estava bem fixa à boca, insinuando que fora parte do exercício
de certa forma violento empregado para fazê-lo de abstrair-se da vigília. Usava
um macacão todo fechado, que envolvia os pés como se fosse uma espécie de
inteiriça armadura de algodão típica, que veio à cabeça de Anselm
automaticamente o nome estranho, body. Uma dessas peças do vestiário infantil
que para alguém estranho ao meio soavam como os nomes que os torturados
medievais davam para seus utensílios artesanais. No silêncio do quarto, se
notava aos poucos, como uma leve deflação de luz que exige que as vistas se
acondicionem para ser perceptível, o rumorejar da respiração dele, um contínuo
índice tonal de uma curta nota espichada de exploração a regiões profundas, um
sonar trabalhando em volume baixo.
Um traço de preocupação passou por
Esvertina, que saiu de sua imobilidade contemplativa para tocar o bebê na
testa. Por um instante de pausa que tinha tanta intensidade quanto um pássaro
avaliando as contrainformações invocadas pelo seu pio, ela estudou a
temperatura do filho, passando por estágios de ponderação progressivos. Retirou
a mão com um alívio confiante, ainda com a cabeça inclinada para a frente como
uma especialista.
_ Ele está crescendo!_ ele falou,
apostando que dentro de qualquer lógica não era uma observação que lhe
desmentia.
_ Foi uma noite terrível, das piores que
passei.
Ela alisou os antebraços com as
mãos cruzadas e pareceu se criticar por ter recaído naquela lamúria. Era mais
uma acusação por isso se voltar contra uma obrigação de agradecimento
supersticioso de sua parte do que a consciência de não se mostrar tão
pessimista a Anselm.
_ Mas graças a Deus ele está melhorando_ se corrigiu.
Anselm pensou que poderia aceitar
aquela técnica da mente tão comum à formação católica da irmã em se amparar a
escapes esotéricos. Viver naquele apartamento desculpava qualquer amortecimento
racional como aquele, e tornava até uma exigência sanitária.
_ Pode me chamar quando quiser, pode ligar
para o jornal à tarde, eu estarei lá.
Ela o acompanhou até a porta. Passando em
frente ao outro quarto, ele viu Victor sentado em uma poltrona diante um
abajur, mexendo no celular. Estava jogando, num momento raro de flagra dos
restos de sua infância. Na cama de casal ao lado, envolto em cobertores, estava
o outro filho de Edgar, o mais novo, Filipe. Anselm não pode ver seu rosto, mas
distinguiu o peito envolto em uma camisa que mesmo as sombras se percebia ser
de um time de futebol. Edgar tinha o sintoma clássico do pai ausente em querer
ludibriar a falta de experiências reais da paternidade com seus rituais
fetichistas mais comuns. O máximo que deveria dividir com os filhos daquela
exultação falangista da batalha contra o time adversário no campo seria os
comentários pós-jogo, cada um tendo assistido em separado. Lembrou que
Esvertina lhe contara certa vez que ele tinha comprado varas de pescas que
nunca tinha usado realmente com os meninos. Anselm se perguntava se de alguma
maneira isso se revertia positivamente como um dos atributos de caráter que
fazia um bom advogado, o que então a situação teria suas compensações.
_ O Filipe está doente também?_ ele
perguntou.
Ela ficou surpresa com a pergunta. O
tom mais claro, um grau acima, que usara para responder, mostrava que aquilo,
os outros meninos, eram apenas o mobiliário inevitável de uma zona menor de sua
atenção.
_ Ah, sim. Eu pedi que eles arranjassem o que
fazer no térreo do prédio, para não se envolverem tanto com o clima carregado
que estava, e eles voltaram muito cansados. Eles tem grupos de futebol ou o que
seja com os outros garotos do bairro.
Era o tom que usava para desfazer-se
rapidamente de alguma pergunta retórica, o que se percebia nuances de uma
irritação sublimada ao fundo.
Ele se virou no corredor para ela, para
se despedir. Esses momentos sempre eram desconcertantes, por mais que os dois
tivessem crescido e com isso estarem aptos a desconsiderarem o constrangimento
reminiscente desses atos. Anselm se sentia em desvantagem, pois a irmã tinha o
tino prático que a fazia bem sucedida em comunicados simpáticos com empregados
da limpeza e bilhetes de geladeira. Já ele ou era insuficiente ou tendente a uma
exagero autodenunciador. Não iriam voltar a se abraçarem, se aquilo havia mesmo
sido um abraço, e então ele ergueu a mão e deu um tchau deslocado. Era o mínimo
ridículo que sua contenção poderia fazer, e ela respondeu com um balançar de
cabeça.
_ Volte a dormir.
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
Catástase
domingo, 18 de agosto de 2024
Um livrinho só
É muito perigosa essa veneração inconsciente que o brasileiro sente pela televisão. O Brasil por décadas teve um único e restrito ambiente midiático, construído por duas ou três emissoras de tv que moldaram o imaginário nacional. Foram décadas em que as oligarquias fizeram o que queriam com a gente, através da grande arma de imbecilização dominadora da tv. Digo isso pois vivi os anos 70, 80, 90 e 2000, e ela, a tv brasileira, sempre esteve presente, alerta, ditatorial, zelosa pelo grande capital de ignorância coletiva que ela criou. Nós somos o único país do mundo que teve um velho vestido de palhaço jogando bacalhau na cara da plateia. O único país do mundo que uma loira seminua apresentava um programa para crianças. A TV mudava o regime político, decidia quando reinstauraria uma democracia frágil na medida de seus interesses, escolhia presidentes, escolhia corte de cabelo e posturas estéticas. A TV dominava tudo, tudo. Como nunca aconteceu antes em nenhum outro país, não com a perversão de mostrar coisas como simulações de cenas pornôs na hora do almoço para toda a família, como na Banheira do Gugu. Então, quando vejo pessoas que se dizem leitoras, esclarecidas, cantando loas para Silvio Santos, eu me pergunto para que serve um livro para essas pessoas. Não é gosto. Não é respeito à liberdade de consumir a besteira que quiser. Mas sim constatar como o efeito dessa doença imposta no país é grave e difícil de se erradicar. É graças a essa exposição tão radical e massiva a esse vazio programado que foi possivel um Collor e um Bolsonaro chegarem à presidência. A idolatria por palhaços fascistas como Bolsonaro surge com a idolatria a pessoas como Silvio Santos, a ponto de criar a falácia incontestável de que Sílvio é "o maior comunicador do mundo", um homem bom, de bom coração, etc, etc. Se um livro não serve para enriquecer a consciência e ampliar os poderes mentais para enxergar a obviedade de que esse Sílvio nunca passou de um instrumento para essas oligarquias, ou se está lendo os livros errados ou então se está lendo muito mal. Eu nem digo ler livros de história, mas, eu imagino, ler autores como Thomas Mann, Olga Tokarczuk, ou uma gama de outros de mesmo nível independente de qual país venham. Um livro bem lido, escrito por alguém com uma real elevação de pensamento, não permite jamais que alguém veja em Sílvio Santos ou em atores e jornalistas da tv próceres da grandeza cultural de um país. Pelo contrário, um livrinho, um livrinho só, desses que tem a nobreza intelectual de poder colocar os pés na mesa, lido com o devido envolvimento, já dá as bases para se saber os canalhas que esses "heróis" na verdade são.
sexta-feira, 5 de abril de 2024
Cafarnaum
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024
Uma distante rua em Omsk
Minha vida em busca do esclarecimento me mantém fora das formas pré fabricadas de pensamento, e eu sempre segui no sentido contrário do senso comum e do padrão instituído, seja da sociedade, da ciência, da filosofia, etc. Eu não digo que creio e nem que não creio. Eu posso afirmar apenas que me foi dado o sistema sensorial mais sofisticado do universo, com meu cérebro humano e toda a mágica intuitiva que ele me proporciona. Esses dias eu falava a uma amiga que ela, que tem 41 anos, é ainda muito jovem, pois não perdeu ninguém. Eu, quando tinha essa idade, era cercado por todos que ainda estavam vivos. Hoje, meus principais amigos já morreram, e eu sinto o estranho epíteto tardio de ser órfão. Era algo inimaginável essa solidão. Minha cunhada passou mal ontem em seu trabalho, e quando estava sendo socorrida viu entre seus colegas o seu pai, parado a observando. Seu pai que morreu faz dez anos. Meu melhor amigo, Galeb, que era um profundo espiritualista de enorme cultura, me disse, duas semanas antes de morrer: "você aciona o gravador em sua biblioteca silenciosa e pergunta por mim. Eu virei te dar a prova". Minha mãe morreu, eu visitei pela última vez seu apartamento desolado, um local que me trazia tantas e tantas lembranças. No quarto escuro, com aquele vazio duplamente profundo dos ambientes deserdados, eu forcei para ver o vulto dela sentado. Lembrei de Houldini, que procurou em vão pela mãe morta em invocações rituais. Tirei fotos, para ver mais tarde. Quem sabe algo pudesse ser flagrado, nebulosidades sutis, luminescências evasivas. Uma manhã, semana passada, eu acordei com a certeza de ter sonhado a noite inteira com o Galeb. Não me lembrava de nada, só de que fora uma das nossas conversas iluminadas e arrebatadoras. Será que é assim? Será que o espírito é mais sutil? De minha mãe eu sonhei não com ela, mas com sua ausência. Uma viagem que ela demorava por voltar. Uma tarde, estando sozinho em casa, ainda inconsolável, eu peguei enfim o gravador do celular. "Galeb, você está aí?". Deixei gravar cinco minutos. Ouvi e reouvi, no computador e na tv. Chiados, a estática que lembra o som residual da criação do universo e o som das nebulosas. Mas isso não quer dizer nada. Se ele respondesse prontamente, esse sacana inveterado, aí sim eu não iria acreditar. Iria achar que era uma distorção do meu anseio por ouví-lo.
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Estratagemas mentais
O sr. Flibas pôde ver o céu por sobre a cidade. Era um despropósito assuntos pessoais serem tratados àquela altura. Não pareciam levados em conta. A jornada do homem havia degringolado para um grande acidente. Um ser solitário, brutalizado pela sobrevivência básica. Novamente ele pensava o quão privilegiado era Vergue. Partiria na hora certa em que as forças se convergiam para subtrai-los do planeta. Não imaginava que o fim fosse na explosão nuclear. No relógio das eras, décadas se resumiriam a segundos. Com a abolição do homem, o tempo seria extinto. Encontros de líderes políticos haviam sido feitos, Davos, Egito, Rio. Cantores de música pop haviam aparecido, a linearidade das sobrancelhas representando para os fãs que a situação era séria. Mesmo estes careciam da lucidez por não terem se isolado em cabanas na floresta, se eximido da carne vermelha, do lítio e do trabalho escravo. Tudo se enovelava numa mesma razão temática, a política, a ecologia, a luta de classes, a estupidez, a mentira midiática. Seriam dizimados por cânceres lentos e ensandecimentos que tornavam o cérebro tão gelatinoso como medusas marinhas. Vergue sentia essa manifestação do poder jurídico da potestade em sua garganta, com o tumor expandido-se por sua coluna vertebral, e ele mesmo, o sr. Flibas, estava com o sinete condenatório em seu encefalograma. Não havia chance de um adiamento. Os 32 homens justos da fábula judaica estavam mortos. Deus deveria sentir engulhos diante tamanha isenção, no projeto de criar um símile de si mesmo. Se Deus criara o homem à sua semelhança, contudo, deveria ter o mesmo gosto pela violência. Não seria mais que um macaco insaciável diante a bajulação de seus bonequinhos sem alma. O sr. Flibas vasculhava entre as tantas personalidades, e era com grande alívio (pois assim eximia-se de novos adiamentos), que não encontrasse ninguém. Em seu esforço para ter fé, somente via não haver como ser diferente. Os melhores haviam criado a bomba atômica, o sistema de castas, a bolsa de valores, os bancos, as ideologias religiosas. Mesmo a arte era limitada ao assassino dissipassivo instalado no núcleo genético da espécie. O militarismo triunfante de Beethoven. As peças de Shakespeare, que disciplinavam sua neta. Contendas de sexo e regicídios. Só assim para cativar a atenção desse símio ocupado com o ódio suicida. No andar que estávamos indo, seria preciso bilhões de anos para que algo realmente tomasse espaço naquele coração cheio de reminiscências do caçador faminto. Com apenas duzentos anos de capitalismo industrial toda a planilha havia se afundado na derrota. A superpopulação se integrara ao comércio de futilidades global. A não ser que houvesse a opção retirada do fundo da gaveta, uma lição em negativo esperando que tudo fosse feito da maneira correta. Eram muitos estratagemas mentais para fomentar um tanto só de fé em todo o absurdo. O deus da História emanando calor para aqueles abençoados melancólicos. Agora sobrara apenas a afasia. Havia apenas a consumação da falta de charme como valor absoluto. O sr. Flibas pensava nos que acreditavam na transmigração da alma, e ele não desejaria que, após os anos finais que teria que cumprir nessa prisão, ele viesse a acordar reencarnado num corpo humano. Mesmos os mais profundos crentes sentiam que a mais doce esperança estava em não haver nada depois desse martírio, embora a própria palavra que ele usava, no refúgio do seu cérebro, martírio, fosse um remanescente teísta. O que aquela neutralização sensorial vinda dos celulares trazia era a aceitação de que não era lógico que a eternidade fosse algo destinado a nós. O sr. Flibas achava que muitos nos lugares de poder já sabiam disso, e estes usavam os esqueletos da fé para explorar os que estavam embaixo. Se houvesse um panteão de existências eternas baseado no retorno didático, a prova em sentido contrário era que não havia, em milênios, nenhum sinal de revolta, o menor indício de que algum inconformado dissera “Já basta!”. Aqui seria justificável que só de séculos em séculos uma revolução acontecesse, cedendo ao acúmulo de ofensas, mas diante almas que tinham o conhecimento de serem eternas, naquele domo contendo nossas instâncias superiores, ninguém se indignar era algo inconcebível. Um trabalhador da linha de produção da Apple, se soubesse ser imortal, se prontificaria a ceder seu trajeto de aprendizado pelo medo da finitude numa galera escrava moderna?
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