quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Estratagemas mentais




  O sr. Flibas pôde ver o céu por sobre a cidade. Era um despropósito assuntos pessoais serem tratados àquela altura. Não pareciam levados em conta. A jornada do homem havia degringolado para um grande acidente. Um ser solitário, brutalizado pela sobrevivência básica. Novamente ele pensava o quão privilegiado era Vergue. Partiria na hora certa em que as forças se convergiam para subtrai-los do planeta. Não imaginava que o fim fosse na explosão nuclear. No relógio das eras, décadas se resumiriam a segundos. Com a abolição do homem, o tempo seria extinto. Encontros de líderes políticos haviam sido feitos, Davos, Egito, Rio. Cantores de música pop haviam aparecido, a linearidade das sobrancelhas representando para os fãs que a situação era séria. Mesmo estes careciam da lucidez por não terem se isolado em cabanas na floresta, se eximido da carne vermelha, do lítio e do trabalho escravo. Tudo se enovelava numa mesma razão temática, a política, a ecologia, a luta de classes, a estupidez, a mentira midiática. Seriam dizimados por cânceres lentos e ensandecimentos que tornavam o cérebro tão gelatinoso como medusas marinhas. Vergue sentia essa manifestação do poder jurídico da potestade em sua garganta, com o tumor expandido-se por sua coluna vertebral, e ele mesmo, o sr. Flibas, estava com o sinete condenatório em seu encefalograma. Não havia chance de um adiamento. Os 32 homens justos da fábula judaica estavam mortos. Deus deveria sentir engulhos diante tamanha isenção, no projeto de criar um símile de si mesmo. Se Deus criara o homem à sua semelhança, contudo, deveria ter o mesmo gosto pela violência. Não seria mais que um macaco insaciável diante a bajulação de seus bonequinhos sem alma. O sr. Flibas vasculhava entre as tantas personalidades, e era com grande alívio (pois assim eximia-se de novos adiamentos), que não encontrasse ninguém. Em seu esforço para ter fé, somente via não haver como ser diferente. Os melhores haviam criado a bomba atômica, o sistema de castas, a bolsa de valores, os bancos, as ideologias religiosas. Mesmo a arte era limitada ao assassino dissipassivo instalado no núcleo genético da espécie. O militarismo triunfante de Beethoven. As peças de Shakespeare, que disciplinavam sua neta. Contendas de sexo e regicídios. Só assim para cativar a atenção desse símio ocupado com o ódio suicida. No andar que estávamos indo, seria preciso bilhões de anos para que algo realmente tomasse espaço naquele coração cheio de reminiscências do caçador faminto. Com apenas duzentos anos de capitalismo industrial toda a planilha havia se afundado na derrota. A superpopulação se integrara ao comércio de futilidades global. A não ser que houvesse a opção retirada do fundo da gaveta, uma lição em negativo esperando que tudo fosse feito da maneira correta. Eram muitos estratagemas mentais para fomentar um tanto só de fé em todo o absurdo. O deus da História emanando calor para aqueles abençoados melancólicos. Agora sobrara apenas a afasia. Havia apenas a consumação da falta de charme como valor absoluto.  O sr. Flibas pensava nos que acreditavam na transmigração da alma, e ele não desejaria que, após os anos finais que teria que cumprir nessa prisão, ele viesse a acordar reencarnado num corpo humano. Mesmos os mais profundos crentes sentiam que a mais doce esperança estava em não haver nada depois desse martírio, embora a própria palavra que ele usava, no refúgio do seu  cérebro, martírio, fosse um remanescente teísta. O que aquela  neutralização sensorial vinda dos celulares trazia era a aceitação de que não era lógico que a eternidade fosse algo destinado a nós. O sr. Flibas achava que muitos nos lugares de poder já sabiam disso, e estes usavam os esqueletos da fé para explorar os que estavam embaixo. Se houvesse um panteão de existências eternas baseado no retorno didático, a prova em sentido contrário era que não havia, em milênios, nenhum sinal de revolta, o menor indício de que algum inconformado dissera “Já basta!”. Aqui seria justificável que só de séculos em séculos uma revolução acontecesse, cedendo ao acúmulo de ofensas, mas diante almas que tinham o conhecimento de serem eternas, naquele domo contendo nossas instâncias superiores, ninguém se indignar era algo inconcebível. Um trabalhador da linha de produção da Apple, se soubesse ser imortal, se prontificaria a ceder seu trajeto de aprendizado pelo medo da finitude numa galera escrava moderna?

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