Emmanuel Carrère é ótimo. Mas quando fala o quanto é o fodão, com suas mulheres que transou, e com a grana que tem, que é rico e inteligentíssimo, a gente percebe o quanto a futilidade moderna impregnou a literatura. Não se vê isso, seria um absurdo inenarrável, nos russos pré-revolução, nem nos norte-americanos do século XX (nestes últimos eles não alardeavam seu classemediaaltismo, mas a usavam para a crítica profunda da perda da alma). Carrère faz como Seinfeld e outros alicerces da anedota elevada (porque, por mais que seja brilhante, o que ele escreve não passa disso): o culto da discriminação elegante, da condolência burguesa pelos desassistidos, desde que se mantenha sempre à vista o fato deles estarem por cima, com suas preocupações espirituais cosméticas e suas angústias metafísicas de vitrine. Mas há nisso uma grandeza. Não quero renegar o imenso deleite e aprendizado que um livro como O Reino me provocou. E o poder de Carrère está em reconhecer isso, de que ele é um escritor que atende à metamorfose do que hoje pode ser conceituado como "um grande escritor". Alguém que escreve algo que exorbita o cânone, que traz para o proscênio a tralha que antes era repudiada e hoje se adequa aos novos interesses de uma classe abastada de leitores: a auto ajuda refinada, temperada com filosofia e conhecimento social, o anseio pela redenção, pelo esclarecimento. Os russos o faziam se retirando para mosteiros, no exílio, ou de dentro de prisões, ou abraçando o campesinato; eles não, Carrère não. Carrère diz que não tem a amplitude moral de uma montanha, mas a mornidão dos que só tangenciam os grandes temas. Ele mesmo se define como "morno". Ele é uma "colina". Ele escreve em sua casa luxuosa na ilha de Patmos, a mesma onde o suposto evangelista escreveu o Apocalipse. É esse fetiche da coisa autêntica vendável que motiva Carrère, estar onde aconteceu o milagre, mas não se imiscuir nele. A aquisição do gostinho espiritual apenas, e não do Espírito. Sem sofrimento, tomando seu café com nome chique em um barzinho cool numa cidade de altíssimo custo de vida num lugar idílico na Europa. Mas ele é um escritor honesto e verdadeiro, não escondendo esses detalhes significativos de sua mornidão, de ser reflexo firmado no fetiche da sua impressão de profundidade. Seinfeld em um episódio pergunta ao George o que pode ter na América do Sul. Carrère, assim como todos os intelectuais franceses, deixa transparecer nitidamente seu prazer em ser europeu, intocável, em volta com suas marcas empresariais poderosas, suas grifes (em Ioga ele fala da maciez de seus sapatos finos), sua cultura restrita a seu direito de sangue. Em O reino ele abruptamente interrompe o tema do livro para falar sobre um vídeo pornô chamado "Brunette mourant de plaisir et jouissant deux fois", que ele achou pelo Google, e descreve a tristeza contemplativa da morena do título com todo o potencial de suas tintas superiormente reflexivas, pintando-a de maneira rembrandtiana, descrevendo sua entrega às duas explosões de orgasmos com a máxima sutileza insinuante à imolação interior dos primeiros cristãos, ou algo assim que ecoe elegantes dissociações perceptivas. Ele, Carrère, chega a mandar esse seu texto sobre o vídeo para sua esposa, pedindo que ela lhe traga mais informações sobre a morena. E a esposa dele, com o sorriso descolado da cônjuge culta, pergunta se ele entende as possibilidades terríveis que se escondem nesse vídeo, que pode muito bem ter sido postado de forma não autorizada por um ex-namorado vingativo, ou a própria mulher o publicou por uma situação de necessidade econômica, etc. E a única coisa que o morno Carrère escreve, em conclusão a essa aula sobre as torpes motivações políticas por detrás da mídia pornográfica, é como ele tem sorte em ter uma esposa assim. O que não impediu que Carrère fizesse a mesma coisa que o ex-namorado do vídeo, falando em seu livro Ioga sobre detalhes depreciativos não consentidos sobre seu casamento que levou essa sua ex-esposa a lhe processar. Mas essa cena não é um deslize autodepreciativo de Carrère, ele a descreve para, como Montagne (muito citado por ele), ressaltar que o assunto de seus livros é pura e simplesmente ele mesmo, com todos seus pecados, suas indiferenças, seus filistinismos, hipocrisia, carnalidade, preconceitos. Essa alfinetada gentil que sua esposa lhe dá para que ele se cientize um pouco ao menos sobre sua leviandade é um fato corrente de tantas outras partes em que a verdade lhe é mostrada por quem está de fora, dando pequenas marteladas em sua casca de proteção. Talvez toda obra de Carrère consista em suas respostas a essas marteladas. Seu amigo Hervé Clerc, como outro exemplo, é o homem espiritual, despojado, que vê a existência como uma luta da alma por sair das sombras e alcançar a consciência libertadora, enquanto ele mesmo se regala satisfeito de ser sua oposição, o homem feliz com sua riqueza, com suas bebedeiras diárias, sua sexualidade, sua agradecida limitação hedonista na carne. E Carrère se descreve como uma repaginação moderna de Sêneca, esse filósofo best-seller mesmo em sua época que pregava o estoicismo da simplicidade mas que era um bilionário banqueiro enfunado em seus palácios de prazer. E Carrère é ardiloso: ele conhece como ninguém seus leitores e o mercado do que sobrou do livro. Para uma geração de símiles globais dele, Carrère é uma amostra ainda bastante elevada do que a literatura vestigial pode oferecer.
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