sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Duetos




Nesta semana estive deveras muito ocupado. Muito trabalho e ainda as maravilhosas terapias domésticas de arrumar e lavar a casa, e cuidar das crianças e lavar as vasilhas. Minha esposa, a Dani, como alguns sabem, está convalescida de uma cirurgia, e se tornou uma matriarca imperial tendente à impiedade do alto de sua cama em que se encontra refestelada. Nas valiosas horas vagas, eu termino a já muito atrasada leitura da biografia de Tolstói, um livro excelente que eu recomendo a todos. Quero muito voltar à rotina de textos mais densos e melhor planejados para o blog, e estou até com boas ideias guardadas, mas isso demorará talvez para daqui a meio mês, não sei. Falar sobre livros e as cosmicômicas pessoais. Mas sobra tempo para dar pitacos rápidos e raivosos em blogs. Fiz isso em dois blogs nessa semana, o do Ernani Ssó, que com certeza me odeia e deve pensar por que um filho da puta como eu o inferniza tanto assim; e o outro blog é o da Companhia das Letras, que escrevi dois comentários em um texto ótimo do Joca Terron. O post do Ssó tratava, entre outras coisas, de uma hipotética chatice dos clássicos, justificando, com isso, a opção de se pular trechos da leitura para fazer a coisa ficar menos pesada. Isso para mim é um crime imperdoável, pular partes de um livro. Eu sou um leitor fundamentalista e reverencioso, e não acho de forma alguma que os clássicos sejam chatos_ pelo contrário. Clássicos a que me refiro são OS CLÁSSICOS. Acho que ficou claro. O post do Joca trata das misérias eternas do Brasil. Vou reproduzir abaixo os comentários. Primeiro os postados no blog do Ssó, depois os postados no blog do Terron. Quem lê esse blog identificará imediatamente uma redundância de ideias já muito exploradas por aqui. Escrevi às pressas e entre um trabalho e outro, se isso serve como desculpa.

Texto do Ssó:

"Futricando nas páginas do El País, encontrei uma velha conversa (de 20 de abril de 2002, capitaneada pela jornalista Rosa Mora) entre o professor e ensaísta Martín de Riquer, que tem alguns livros muito bons sobre o Dom Quixote, e o romancista Manuel Vásquez Montalbán. Abaixo, tradução caseira de um trechinho. Confesso que ajeitei aqui e ali, porque se nota demais que a transcrição da entrevista foi, digamos com bonomia, hesitante.
Rosa: Então, professor Riquer, tudo bem se a gente pula um trecho de um clássico se encontra algum tropeço?
Riquer: Esse tropeço pode acontecer por vários motivos. Por exemplo, que você não entenda o que se diz e então precisa procurar num dicionário, ou que você se chateie. Se se chateia, deixe de lado. Uma das coisas fundamentais da literatura é que tem que ser divertida.
Montalbán: Mas um professor deve se chatear muito.
Riquer: Então o professor pode avisar: isso é chato.
Montalbán: Nunca se escreveu uma história professoral contra o tédio. Um professor que, em vez de dar uma de Bloom com os cânones, diga que a partir da página tal do livro tal de tal escritor não continue lendo porque é um porre.
Riquer: Bom, na minha Historia de la literatura catalana há um artigo onde digo que depois de ter lido a primeira parte do Memorial del pecador (de Felip de Malla), não tive ânimo pra ler a segunda. Insisto, é muito importante a literatura divertir.
Montalbán: Às vezes é obrigatório ler um livro de que dificilmente você pode gostar e então você faz um exercício de abstração cultural.
Riquer: É que chamamos tudo de literatura. (…)
Rosa: A gente pode ler Crime e castigo como um romance policial?
Riquer: É o que é, e também Guerra e paz. São apaixonantes"
Comentário meu:
Quanto à chatice dos clássicos: eu só não entendo por que tem pessoas que insistem no exercício da leitura. Nunca entendi isso. Por que não vão ocupar seus preciosos tempos com outra coisa? Coisas mais produtivas; futebol, mercado financeiro, danças orientais? Futebol é de um tédio massacrante para mim, e eu sempre mudo de canal ou desligo a televisão, e pronto: não me ofende em nada, nada me obriga a sequer recorrer ao compacto dos melhores momentos da partida para futuros usos socais em conversas de fim de tarde. Será que mais da metade dos cursos universitários de letras é de pessoas que estão ali por alguma imposição inescapável?, algum escravismo profissional que, para a grande desgraça deles, é a única e abrutalhada forma de ganhar a vida? Ou será que é por alguma vestigial, antiquada e provinciana ideia de que ler dá algum tipo de status, é cool, alimenta o fetiche de ser reconhecido como inteligente?
(Já li textos de pessoas destrinchando livros célebres, testados por gerações e gerações de leitores apaixonados, livros como Moby Dick, Os demônios, etc, tratando eles como se fosse uma curiosa culinária matemática, apontando onde a coisa era mais doce e aprazível e onde era desagradável e rude. Sendo seria muito mais produtivo para todos fechar o livro e jamais voltar a abri-lo!)

 Ssó:

Você acha futebol chato e troca de canal, Charlles, exatamente como o leitor que acha determinado escritor chato, ou certo trecho de livro, evita este escritor, ou este trecho. Não há mistério nem drama, me parece. Acho complicado legislar sobre o gosto ou o prazer. Se a literatura fosse só uma questão de conteúdo, não estaríamos aqui discutindo, não?

Eu:


Não se trata de respeitar o gosto alheio, Ssó. O sujeito que pula partes do Quixote não deveria jamais perder tempo lendo Cervantes: esse não tem gosto pela leitura de livros, mas por adaptações cinematográficas, ou resumos ilustrados infantis. (Pense em propor reduzir de 45 minutos para 15, cada tempo de uma partida de futebol, para ver se os caras não grilam.) Há uma ótima definição sobre a diferença entre um leitor genuíno e um leitor medíocre, na autobiografia de Amós Oz, em que Oz aponta a falta de recolhimento e vagar que o segundo sofre, sempre propenso a análises superficiais e distorções paupérrimas sobre o que lê (o tipo que acha que Lolita é pornografia pedófila, que Proust e só madeleines molhadas no chá, e, em contrapartida, acha Paulo Coelho leitura de primeira). A literatura vendida em pequenas porções para solteiros e executivos sem tempo?, áudio-literatura, que se ouve dormindo? Mas vamos retornar aqui àquelas trezentas páginas que você cortaria fora de 2666, e não estou disposto a isso.
Acho que você às vezes esquece que a paixão pela leitura tem a mesma intransigência saudável dos adeptos do futebol e da tabacaria. Se não é do meio, cai fora.
Ssó:
Pelo teu raciocínio, Charlles, temos de ler toda linha de um livro, mesmo que seja idiota, ou desistir do autor. Não concordo. Se fosse assim, eu jamais teria insistido com Machado de Assis, jamais teria chegado ao Machado d’A missa do galo, por exemplo, porque comecei com um livreco bobo, Helena. Me parece que você está confundindo o leitor medíocre, incapaz de se sentir à vontade a não ser com os Paulos Coelhos, com o leitor crítico o suficiente pra reconhecer as fraquezas dos grandes autores e ter a tranquilidade ou bom senso de deixá-las pra lá. Eu gosto muito do Cervantes, não é por nada que apostei dois anos da minha vida na tradução do livro dele, mas nem por isso vou deixar de reconhecer que ele tem seus tropeços, como todo mundo, aliás. Eu sou incapaz de assistir meia partida de futebol, simplesmente não tenho saco, mas nem por isso deixo de ter prazer ao ver um bela jogada. Tem mais: conheço muito fanático por futebol que acha várias partidas um tédio. Quer dizer, eles continuam amando futebol, mas deixam de lado certas partidas. Enfim, duvido que a leitura seja essa paixão intransigente de que você fala. Se fosse, a gente leria tudo, até o Paulo Coelho e daria pulinhos de prazer, simplesmente porque estaríamos lendo. No meu caso a leitura se trata de vício. E como todo viciado, se a droga não me satisfaz, eu procuro uma melhor, mais forte, o que for que eu esteja precisando no momento.
Eu:
Não desistir do autor, mas do livro. Um de meus autores preferidos é William Faulkner, de quem li tudo, menos O som e a fúria, que tentei várias vezes e não consegui. Mas jamais eu iria pular aquela chatíssima primeira parte, narrado por um deficiente mental. Outro autor que eu amo é Saul Bellow, de quem também nunca consegui chegar além do terceiro capítulo de Henderson, o rei da chuva. Pular partes do livro é não respeitar as características pessoais mais profundas do autor, impregnadas na obra. Ninguém falou aqui de perfeição. Não existe perfeição em uma obra literária, talvez a única forma de arte que não comporta isso. Alguns autores são grandes justamente pelas suas imperfeições. Por isso acho de um despropósito completo gente igual a você, que é um escritor e vive e respira literatura, sempre martelar nessa tecla. Se Quixote fosse enxuto, muito provavelmente seria completamente desconhecido hoje. A liberdade de ver um gênio das letras escrever é algo impagável, por isso cada parte aparentemente descalibrada ou excessiva de um livro é valiosa. Vejo isso no Ulisses, cuja força motriz e a beleza e toda a justificativa da obra está em sua absoluta gratuidade. Imagine um Ulisses editado!
Não, a leitura para mim não é um vício. É sim uma paixão intransigente. Vício é algo compulsivo, muitas vezes associada à mecânica. Eu leio pelo esclarecimento. Se fosse um vício para mim, eu teria exaurido o Som e a fúria antes de passar para outra droga. Já que o livro não quis me dizer nada, apesar de sua grandeza, eu passei a Absalão, Absalão! e Desça, Moisés, que me ensinaram muito.
Talvez a idade esteja te dando a tentação inexorável pelo minimalismo, ou talvez seja tudo temas para piadas algumas coisas que escreve aqui (o que acredito). Uns posts passado você requisitava a assepsia de concisão rigorosa na escrita, abolindo mesmo as expressões idiomáticas que são, elas também, componentes naturais da escrita (aquela de agarrar com as duas mãos foi uma forçação de barra sua), e agora vem com essa de clássicos são chatos. Um puta de um lugar comum, um clichê. Sugiro que leia algumas das cartas da Susan Sontag, em que ela define o que é prazer na leitura, e nada tem a ver os esquemas fáceis da rapidez televisiva.
E antes que vc fale que prazer cada um entende de sua maneira, não é assim. O prazer da leitura se adquire, e às vezes é muito difícil se adquirir, e muitas vezes nunca se adquire, mesmo ralando para conseguir. Não é a mesma coisa ouvir o Led Zeppelin, que é maravilhoso, ou assistir a um filme de Kubrick ou um do Tarantino, que também são maravilhosos, e ler, vamos dizer, Anna Kariênina. O Tolstói exige recolhimento, atenção absoluta. Trata-se de prazer nada passivo. Então, não tem a ver de que cada um tem o seu e cada um cuide de sua maneira.
Gostaria de nunca ter que falar isso para um cara igual a você, mas sim, temos de ler toda linha de um livro, uma por uma até chegar no final. Dá um suor só de pensar!

Ssó:

Certamente teu amor pelos livros me impressiona, Charles. Mas eu sou do meio, sei como os livros são feitos, sei como os autores chutam pra chuchu. Posso não ser grande coisa, mas conheço meu eleitorado.
Agora, teu amor pelos livros te leva a afirmações que dificilmente a gente compreende.
“Alguns autores são grandes justamente pelas suas imperfeições.” Acho difícil que os defeitos e não as qualidades façam uma obra-prima. É meio como dizer que a pouca altura do Nelson Ned é o que torna um homem de um metro e oitenta.
“Pular partes do livro é não respeitar as características pessoais mais profundas do autor, impregnadas na obra.” Quem te garante que essas partes são da parte mais profunda do autor? Podem der da sua parte mais vaidosa, mais burra. Esse papo me parece pura superstição, Charlles. Falo sério, não tou aqui pegando o no teu pé.
“Se fosse um vício para mim, eu teria exaurido o Som e a fúria antes de passar para outra droga. Já que o livro não quis me dizer nada, apesar de sua grandeza.” Se fosse vício você não teria lido O som e a fúria justamente porque ele não te deu barato. Se o livro não te diz nada, se você não o leu, como sabe de sua “grandeza”? Isso é fé. Você acredita no que os críticos dizem, você se intimida apenas com o nome do Faulkner, como o matuto com o nome do Deus. Eu li O som e a fúria, não pulei uma linha, e daí? Eu poderia muito bem não ter lido. Não me deu nada. Santuário, sim. Agora, há autores que eu leito tudo, mesmo não gostando, mas não é por respeito à leitura. É porque tenho interesse pela pessoa que escreveu, quero saber mais dela. É outra coisa, como se vê.
“agora vem com essa de clássicos são chatos. Um puta de um lugar comum, um clichê.” Eu não disse que os clássicos são chatos, tanto que leio e releio vários deles. Transcrevi as palavras do Riquer, que também não disse que os clássicos são chatos, apenas recomenda que pule os trechos que te chateiam. Me parece que há uma grande diferença. Agora, cá pra nós, tem muito clássico chato.
“Gostaria de nunca ter que falar isso para um cara igual a você, mas sim, temos de ler toda linha de um livro, uma por uma até chegar no final. ” Você já tentou escrever um romance, Charlles? Você não imagina a quantidade de linhas ou páginas inteiras que a gente fica pensando se corta, se deixa, ou que deixou e depois se arrependeu. Nos meus livros – espero, torço -, você pode ler todas as linhas, porque tento não ser preguiçoso a ponto de deixar qualquer merda que o pobre leitor pensa que faz parte das minhas características profundas.
Não sei se você notou, mas você ou bota o cara lá em cima ou simplesmente o varre do mapa. Dá de barato que a literatura brasileira é um lixo, tirando o G. Rosa. Pra dizer isso, você teria de ter lido toda a literatura brasileira, linha por linha, como você diz que tem de ser. Eu, por exemplo, não acho Clarice Lispector um lixo. Aliás, acho uma das grandes escritoras do século 20. Seu Paixão segundo G. H. está na lista dos cem melhores livros do século 20. Deve ser justo, ou bateu na trave, mas eu prefiro os contos dela, e duvido que os que fizeram essa lista tenham lido toda a literatura do século 20. E duvido que seja possível ser objetivo, cem por cento objetivo, numa avaliação.

Eu:

“Alguns autores são grandes justamente pelas suas imperfeições.” Exemplo máximo disso é Dostoiévski. O russo escrevia mal, era estridente, caótico, seus personagens eram todos neuróticos, e, contudo, está entre os 10 ou 5 maiores escritores de todos os tempos. Cito também Céline, que com seu romance bastante idiossincrático e carregado de defeitos, “De castelo em castelo”, me deu um dos mais duros relatos sobre a condição humana.
Sobre pular partes de um livro: eu nunca fiz isso. Na minha leitura de Ulisses, fiquei tentado a fazer isso no longo capítulo em que é narrado uma divagação lisérgica de Bloom em forma de peça teatral. Felizmente, suportei bem essas tantas páginas e fui recompensado com uma das mais belas estocadas da literatura na página final desta parte, em que o filho morto de Bloom aparece para justificar a leitura. Se eu tivesse lido apenas a página em que o filho surge, jamais teria adquirido essa experiência de extrema singeleza.
Sei que Som e a fúria é um grande livro através de muitos ensaios de gente boa que escreveu sobre ele, de Borges a Coetzee. Como duvidar desses caras?
Eu entendi a primeira parte deste seu post como uma ironia, e meu primeiro comentário foi concordante a você. Mas você o retrucou, daí isso. Não cara, cê vai me desculpar, pois, sem querer bater e assoprar, mas eu estimo muito o tradutor e escritor Ernani Ssó, e para mim é algo incompreensível que um tradutor do Quixote sequer insinue que há partes do Quixote que deveriam ser cortadas ou puladas na leitura. No mínimo é infantil afirmar isso. Há um cânone, não só feito pela empolação acadêmica, mas pelo amor testado de gerações e gerações de bons leitores. Será que Cervantes não usou deste seu mesmo método de não escrever nada que cansasse a que vc se refere? E, outra coisa, tais páginas lhe são chatas sobre quais prismas, sobre quais referências, sobre quais critérios?
O seu último parágrafo eu respondo mostrando a minha coerência argumentativa irretocável: a literatura brasileira me causa um tédio descomunal, daí eu não a leio_ afora o magnífico Rosa. E nisso parece que concordamos: seu comentário no blog da Cia acusa nosso triste determinismo geográfico.
P.S.: talvez eu tenha dito em um desses nossos papos de boteco que a literatura brasileira é um lixo. Mas isso é mentira. Não li a Lispector, mas acredito em você. Mas li o Lavoura Arcaica, que achei muito bom; 5 contos de um escritor goiano, Bernardo Élis, estão entre os melhores contos do mundo; Millõr e Veríssimo filho são humoristas que não perdem para ninguém; gosto muito, claro, de Machado de Assis, alguma ou outra coisa de Jorge Amado, e Graciliano Ramos. Creio que a Piñon mereça o Nobel. E temos o Gullar e o Thiago de Melo. Acho que Paulo Lins não é valorizado na medida certa. Tento puxar mais alguma coisa pela memória mas não me vem nada. Creio que a literatura brasileira não existe, ou existe em frequências com intermitências muito espaçadas.

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Comentários meus sobre o post de Joca Terron:

Joca, vai se fazendo “da natureza” da internet que as opiniões se dividam entre o xingamento raivoso e puro, e o elogio descomedido e efêmero; mas acredite quando eu digo que este seu texto é um dos melhores que já li no site da Cia. Confesso que me passou uma sensação de alívio ao pensar “é sobre ISSO que deve ser a escrita no Brasil”. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo, e os novos escritores (ou escritores da nova geração ou seja qual outro rótulo comercial empregado)deixam passar esse tema. Preferem falar sobre coisas inócuas bastante pessoais, às vezes tiradas de seus caderninhos de idiossincrasias juvenis mais ternas: viagens, dores de cotovelo enormemente dissonantes, sei lá o quê. Assustei com seu texto, pois você parece que tangenciou o limite de uma polidez que eu intuo existir aqui, uma polidez que incomoda ainda mais se tratando de livros. Livros, como é óbvio, é o meio em que se oferecem as ideias, as indignações, os medos, a verdade das dores latentes, aquilo que incomoda, que sugere, que faz pensar, que perturba, que causa asco. E os textos por aqui me parecem muito mais formalizados por um ética de boutique, como se o que se vendesse aqui fosse um desses cosméticos cuja propaganda dispensa qualquer tom sombrio para privilegiar o eufemismo feliz. Mas tá…
Como Bolaño diz em um de seus contos, o cotidiano da América Latina é tentar sofregamente se esquivar o máximo possível da violência e do assassinato. Não sei qual o segredo que explique que alguma providência tenha feito a literatura argentina (e a uruguaia, e a chilena) superior à nossa; talvez porque gente como Cortázar e Borges e Sábato e Onetti tenham se antenado a escrever milimetricamente sobre a atmosfera temática de um imaginário literário nacional, corroborando ao mesmo tempo, pelo exercício contínuo, em criá-lo, enquanto nós, por aqui, tenhamos ouvidos insuficientes (ou narizes incapazes o suficiente) para fazermos o mesmo. Bolaño teve que se exilar para poder sentir essa atmosfera distintiva_ e como seria adequado se Bolaño tivesse desviado um pequeno grau na latitude e nascido no Brasil. A escrita no Brasil necessita de ser política, é inevitável. Não é possível a um escritor moçambicano ou a um escritor albanês escrever sobre amores juvenis, tristes pôres-do-sol sem o bem-amado, ou essas firulas todas, com tantas mazelas, tanta corrupção, tantos crimes enrodando seus países em uma multitude de obrigações que tornam a vida de um escritor um fardo. Onde estão nossos Mias Coutos e nossos Kadarés? Chega de poesia tola ou romances engraçadinhos por aqui. Não nos foi oferecido o meio termo. Talvez por isso, a literatura pátria dos últimos 50 anos seja tão inexpressiva: é uma forma de se pagar ao destino a impunidade de tanto silêncio. (Não te parece que depois daquele dia glorioso em que 150 mil tomaram a Rio Branco, as coisas no Brasil ficaram ainda pior?)
Desculpe a verborragia, mas foi o que seu ótimo post (ainda que você deveria ter escrito mais e mais) me despertou.
Abraços.
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“Falar mal do Brasil” como hobbie? Não vejo muita coisa boa para se falar bem do Brasil. Não me venham com essa morte do discurso em falar que se trata de “complexo de vira-lata”. Samba, futebol, mulata, telenovela? Será que é a esse clichê incorrigível que devemos prestar vênias para se falar bem do país? E a comentarista logo abaixo, que disse que nunca viu escritores alemães, norte-americanos ou de que procedência for falando mal de seus países, é porque não deve conhecer muito de literatura e tours literários. Günter Grass, um dos maiores escritores alemães do pós-guerra, fundamentou toda sua obra em condenar os crimes da Alemanha e dos alemães, inclusive fazendo uma mea-culpa em sua autobiografia assumindo sua juventude nas fileiras do partido nazista; e Thomas Bernhard, o inigualável autor austríaco, é quem mais esculacha com o fenótipo vazio de uma Áustria culta e civilizada_ passou sua curta vida respondendo a processos por difamação promovido pelas altas autoridades de seu país, e o ódio de boa parte de seus conterrâneos; e os grandes romancistas norte-americanos não fazem outra coisa que condenar a falácia do sonho americano e apontar os crimes do império (não há crítica mais devastadora ao suicídio coletivo no qual os EUA se lançaram, levando de roldão boa parte do mundo, como a de livros como Cosmópolis, Submundo, a trilogia da vida americana de Philip Roth, etc.); Garcia Márquez colocara como título a seu segundo romance, “Esse povinho de merda”, para mostrar o quanto lhe agradava a alienação e o atraso espiritual dos povoados coronelistas da Colômbia, título trocado pela editora, naturalmente (passou a se chamar, mais inocentemente, “O veneno da madrugada”); Vargas Llosa escreveu que passar meio ano na Europa e retornar ao seu triste e insofismável Peru natal é como levar uma descompressão espiritual traumática; V. S. Naipaul diz, aonde vai, que a liberdade colonial foi o que de pior poderia ter acontecido com os povos da América Latina, pois se relegaram à própria barbárie e à ultra-corrupção interna.
Os autores e intelectuais relevantes, pois, estão longe de exercerem algum tipo de patriotismo e ufanismo na hora de falarem a verdade, e é isso que precisamos fazer por aqui cada vez mais. Falar mal do Brasil não é atestado de falta de amor por ele, mas justo o contrário. Cada vez mais em que desmistificarmos a miséria moral em que vivemos_ e a mentira estúpida de que somos a sexta ou a nona ou a oitava economia do mundo (como se índices de isenção de impostos para empresas estrangeiras virem para cá para explorarem os sub-empregados fossem atestados de melhorias sociais genuínas)_ mais estaremos aptos para forçarmos os reais avanços os quais o país precisa.

Resposta do comentarista Jean:

Charlles Campos, aparentemente você distorceu o entendimento. Desatou a falar das obras, não trouxe exemplos de turnês difamatórias, em nenhum momento vi o último parágrafo da Cecilia Salgado ser desmentido.
Conheço bem essa virulência apatriótica, já tive meus rompantes. O que se cobra, no entanto, é a sabedoria de não fazê-lo fora de lugar ou de propósito, ou de proporção.
Já que falas das obras, o que não estava em causa até agora, anotei ao menos uma desinformação no seu texto, no sentido de forçar uma interpretação na direção conveniente, o que compromete a honestidade do resto, pois depreendo que você não leu o que está a mencionar. Conheço bem a obra do García Márquez, o livro que você menciona se chamou “La mala hora”, “veneno da madrugada” foi uma licença da editora que publicou primeiro no Brasil (editora Sabiá). O “este pueblo de mierda” faz referência a uma fala do coronel que tenta manter o povoado nas rédeas, não uma alusão do autor ao povo. E o livro não é sobre a alienação e o atraso espiritual da Colômbia, o que ele expõe é o caudilhismo e os desvios do poder, e até nota-se certa afinidade com a insurreição silenciosa decorrente.

Eu:

Jean, eu sei perfeitamente o que eu digo. Li tudo de Garcia Márquez, a maior parte de seus livros tanto em espanhol quanto em português, e mais de duas vezes; fiz um trabalho acadêmico sobre ele que ganhou a nota máxima (mesquinharia da minha parte, reconheço). Essa informação de que o livro La mala hora (todo mundo sabe do título original, meu caro, vem entre parênteses em todas as edições lançadas no Brasil), de que se chamaria esse povo de merda, é o próprio GGM quem diz em sua autobiografia, Viver para contar. Não vou procurar a página, mas está lá claramente. O manuscrito do referido romance estava há anos estocado e quase perdido em uma gaveta do autor, até que, devido a dificuldades financeiras, GGM o enviou para um prêmio internacional de romances inéditos da América espanhola, promovido, se não me engano, pela Shell, e obteve o primeiro prêmio. Quem o desmotivou a trocar o nome foi um padre amigo dele. É uma obra com claras influências de Albert Camus, (o primeiro romance dele, La Hojarasca, já que é importante para vc mencionar o orginal espanhol_embora também venha impresso na capa_, era uma emulação do romance Enquanto agonizo, do Faulkner) e é sim uma grande crítica contra a brutalidade dos povoados coronelistas e da alienação popular, na metáfora das mensagens difamatórias pregadas na porta das residências por um desconhecido, de madrugada. Uma crítica de Alfonso Fuenmayor, que era uma espécie de mestre dos novos escritores colombianos da juventude de Márquez, salientava que a carga de contestação impressa na obra tornaria GGM pessoa non grata entre os poderosos da região, profecia que só não se cumpriu porque o livro não despertou muitos leitores.
Se não fui claro quanto aos exemplos de patriotismo dos referidos autores, bom, fica para outro momento.


Só um complemento: em Cem Anos de Solidão há também uma série de críticas soberbas sobre a alienação popular. Em uma das passagens antológicas, um dos José Arcádio Buendía, que presencia o massacre que o exército de coalizão faz ao disparar tiros de metralhadora por sobre o povo rebelado na praça, e se finge de morto no meio de centenas de corpos conduzidos em trens de ferro para uma região de valas abertas, passa todo o romance questionando às pessoas se elas tinham lembranças do ocorrido. Todo mundo afirmava que nunca tinha ouvido falar do massacre. Arcádio morre desiludido pela gritante estupidez do silêncio que o contornava. Esse povo de merda caía bem como título ao Veneno da Madrugada.

Sério que vc não tem nenhum conhecimento sobre as opiniões ácidas desses autores por mim citados sobre as mazelas de seus países?

“Não tínhamos tido tempo nem mesmo para pensar no assunto, quando recebi uma carta do padre Félix Restrepo, presidente da Academia Colombiana da Língua_ que corresponde às academias de letras_ e homem de bem, que havia presidido o júri do prêmio mas não sabia qual era o título do romance. Só então percebi que na pressa da última hora tinha esquecido de escrevê-la na página inicial: Este pueblo de mierda.

Ao saber disso, o padre Restrepo ficou escandalizado, e através de German Vargas me pediu da maneira mais amável possível que eu o trocasse por outro menos brutal, e mais em harmonia com o clima do livro. Após trocar muitas idéias com ele, me decidi por um título que talvez não dissesse muito do drama, mas que lhe servira de bandeira para navegar pelos mares da carolice: La mala hora” (Garcia Marquez, Viver para contar, pp.225, 226.)


Jean, leia “Meu prêmios”, do Bernhard, publicado pela Cia das letras, e verá pelo menos uma comprovação do que eu disse. Nos eventos públicos em que o austríaco falava, faltavam linchá-lo, em especial pelo seu desacato radical mesmo aos prêmios que recebia.

78 comentários:

  1. Foi por muito pouco que não me intrometi na conversa sua com o Ssó lá na coluna dele. Um pouco de modéstia e o medo de pegar a imagem de tiete do Charlles Campos acabaram vencendo.
    Concordo bastante com as suas palavras. O Ssó é um baita escritor, mas pensa infelizmente como tradutor. Um talento latente da escrita com cabeça de tradutor e pudores bem domesticados da indústria editorial. É claro que não compro por nenhum segundo esse seu Wahabismo de que não se pode pular partes dos clássicos. We have all done it. Até mesmo você, meu amigo.
    Mas assim como você, eu não entendo a insistência do tradutor Ssó em temas como a mundanização do escritor, a defesa do escritor enquanto alguém que quer mudar de endereço (não o mundo!, quanta bobagem! que pretensão!), da vocação primeira da literatura para o divertimento.
    Ssó me parece o típico bom escritor brasileiro. Tem muitas das ferramentas técnicas diante de si. Narra com agilidade e naturalidade. No caso dele, e que me parece ser o caso de muitos talentos da nova geração que surge, possuí inclusive vastíssimos recursos de erudição, domínio do espanhol moderno e barroco, etc. Mas acaba caindo nessa boba repetição do cronista da vida urbana, do bom contador de prosas de botequim, do prosador que prosa as bromas do cotidiano ordinário.
    O escritor moderno brasileiro parece ter acreditado que nunca escreverá para a posteridade. Uma pena. Quem poderá saber se entre nós não andam um Kipling, um Borges, um Mishima? Consegue imaginar o Borges escrevendo uma crônica "divertida" sobre a loiraça do ponto nove do Leblon?
    A la puta que lo pario com a literatura do divertimento. Já basta a porra do Complexo do Prazer Freudiano me atazanando todo o resto da minha mal-formada vida adulta. Esse maldito mandato do Enjoy!, potencializado pela cultura.
    É claro que ler Treasure Island é bom, e diverte! Passei já boas horas de prazer na companhia de despretensiosos noirs policiais, como os da Patricia Highsmith. Mas e a catarse! A catarse na literatura! Que se faz com toda a tradição trágica Grega? Eu não pego um Onetti para me divertir ou por imposição de um Enjoy! uterino. Leio Onetti para me entristecer. Assim como escuto free-jazz para me enfurecer, etc.

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    1. É exatamente isto, Luiz! Raras as vezes eu leio para me tornar feliz, ainda que a alegria seja intensa. A leitura é uma disciplina espiritual, um rigor da atenção, uma musculação de voltar-se a um núcleo puramente humano, inteirar-se com preocupação ativa sobre questões milenares. De forma que o prazer que se tira disso nada, em absoluto, tem a ver com o prazer sensual adquirido pelos vários mecanismos da dissipação. Se o segredo do prazer da leitura fosse tão acessível, países como o nosso facilmente seria campeões da leitura. Leitores por toda parte. Mas acontece que não é assim: a leitura é um shogunato. Não me vejo exagerando ao poder afirmar que nada me traz esse prazer equivalente que eu tenho com a leitura. Compreendo profundamente quando Borges fala que a leitura é a felicidade. E ver o Ssó vir com esses amaneiramentos, logo um cara que deveria abraçar com ardor a alta cultura e ser reacionário em sua defesa, se junta, talvez involuntariamente (a título de gracinhas), ao time oposto. Também gosto muito dele, e o cara tem muito talento. Mas essa birra por ser iconoclasta me tira do sério, esse cacoete em depredar certos setores canônicos da literatura só para mostrar uma empáfia de conhecedor extenuado diante a futilidade das grandes intenções. As grandes intenções e os grandes propósitos existem. Você definiu bem isso com sua frase sobre Borges escrevendo uma crônica divertida sobre a loiraça do Leblon (ri muito aqui). Leitura não é diversão no sentido cotidiano do termo. Exige dor; e, parafraseando o gênesis, essa dor é boa.

      Só não entendi bem sua afirmação sobre pular a leitura. Eu, sinceramente, nunca fiz isso. A não ser que esteja falando de leituras protocolares, universitárias, que, é claro, eu lia sempre pelas beiradas.

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    2. Por isso não entendo qual é a onda do Ssó. Vamos virar o lado desse disco quebrado. Ele fala de se buscar de novo o prazer da leitura como se o mandato do Enjoy! não fosse o artífice de todo o produto cultural moderno. Qual foi a última vez que você viu um escritor brasileiro sisudo? Você enxerga a literatura brasileira refém do regionalismo. Pode até ser. Eu no entanto me chateio mais com a necessidade de se formar cronistas. A cada cinco novelistas potenciais brasileiros, quatro querem escrever crônicas. Como se o cotidiano não fosse o maior dos nossos aborrecimentos. Esse mundo urbano que atrai o romancista petit burguês em potencial brasileiro é um aborrecimento sem fim. Ele é mais falso que a enésima narrativa das Farropilhas.

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    3. Não sei como responder a isso, Luiz. Não acrescentaria nada às suas precisas palavras. O escritor nacional parece nascer com o fôlego medido, e com a auto-estima mantida em uma rasa ortodoxia. Um gênero do qual nunca me aproximei enquanto leitor foi o da crônica. Suspeito até que ele não exista mais em nenhum outro lugar do mundo (eu não conheço um escritor que seja grande por ser cronista), seja um anacronismo brasileiro. Eu lia à série Para Gostar de Ler, com aquelas crônicas todas; mesmo na idade que eu tinha, essas coleções me transmitiam a intuição de que estava se propagandeando apenas o anedotário da literatura brasileira; os professores nos obrigavam a ler aquilo com uma generosidade involuntária à nossa propensão à medianidade; não eram contos; eram tão somente piadas de bar; coisas despretensiosas, levianas. Comparando, é como se a literatura nacional que prima a crônica estivesse eternamente no estágio do nascimento da literatura russa, com a diferença de que naquele país havia a formalização de que se escreviam contos, com várias páginas, com o rigor estético que permitia um demorar maior, algo com princípio, meio e fim suficiente para comportar temas sérios. Vide Puchkin, vide Gogól, vide o estágio seguinte com o maravilhoso Chécov. Essa forma da crônica é o retrato da inércia sem definição em que muitas vezes a literatura pátria se encontra: uma enorme preguiça em ser algo mais que engraçadinho.

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  2. Eu me lembro sempre de um conselho que está em Augie March. Tem que vir com facilidade, com prazer. Se um livro não está dando certo, eu largo e deixo pra outra oportunidade (esses dias enganchei num capítulo de A Cartuxa de Parma, li uns três livros leves, e desenganchei de boa).

    Mas eu sempre pulo se percebo que vão me contar o final de um filme que eu não vi, ou similares. Só li Os Enamoramentos agora, porque não conhecia O Coronel Chabert, que quis ler antes pra não me contarem o final.

    Charlles, temos bons romancistas em atividade. Te indico (mais uma vez) Dois Irmãos, do Hatoum, e Nove Noites. Adorei Páginas sem Glória, do Sérgio Sant'anna, que é um puta narrador, mas a novela principal talvez não interesse a quem não gosta de futebol. Mas os dois contos que estão no volume também são excelentes.

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    1. Concordo em partes. Mas já faz tempo que nenhum livro me desmotiva a leitura. Quando eu tenho muita propaganda positiva sobre ele, ele pode ser o mais hermético possível que eu o leio. Ler filosofia, por exemplo, exige um recolhimento diferente.

      Você é um dos apostam veementemente na literatura brasileira, Paulo, e admiro isso em você. Ainda vou mudar minha visão por sua culpa.

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  3. Sabia sim que a desgraça dos Compson não te fez a cabeça, mas não suspeitava que tinha largado a leitura. Sei também que falar de Faulkner contigo, tentar explicar o processo de escrita desse romanção, explicado nas tantas entrevistas do velho -- e lembro do velho dizendo que amava O Som e a Fúria like a mother loves her crippled child --, é como ensinar o padre a rezar a missa; no seu caso, o padre reza a missa em latim e grego, as vozes satanicamente simultâneas, com um pé pregado na testa e o saco pregado no pé. Mas -- o mesmo But. lá do One out of Many no Naipaul -- Charlles: tu tá perdendo muito não lendo esse livro!

    Aquela primeira parte, que é tão pouco Faulkner, distante demais do que está no Absalom, Absalom! & If I forget thee, Jerusalem, é a mais importante do livro. Suas noventa páginas ecoam todas juntas lá na página duzentos e oitenta e quatro, ou na página cento e setenta e sete, etc., e, estariam até mesmo lá na página novecentos e noventa e nove, se ela existisse; isso porque Benjy é a desonra de Yoknapatawpha moldada com carne, a maldição dos desterrados e dos cadáveres soterrados pelas fazendas dos brancos, e por isso não é à toa ele ter trinta e três anos (como Joe Christmas)

    Chegando na segunda parte do livro, a parte do Quentin, quem escreve já é o Faulkner que conhecemos de todos os outros livros; chegando na quarta, da Dilsey, a única coisa que eu consegui fazer foi chorar maravilhado.

    Já concordei por aqui uma vez com o fato de que a primeira parte é quase um empecilho. Eu tava errado. Faulkner é ainda mais Faulkner na segunda, na terceira, na quarta leitura, quando a consciência da água que flui devagar pela planície (meu pitaco porco no water flows slow through flat land, a tradução do nome Yoknapatawpha) está em nós da mesma maneira que a consciência da própria sina está magicamente em cada personagem de Faulkner. Eu precisei de muitas releituras pra admitir que O Som e a Fúria é dos grandes do velho... ainda que não bata Absalom, Absalom! (E, cara, dá uma dorzinha saber que ele não gostava tanto de Absalom, Absalom!)

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    1. João, é por esse tipo de comentário excelente que é um prazer ter esse blog. Me pesou na consciência. Vou ler o Som e a fúria.

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  4. Porra, João. Até eu quero ler Sound and Fury agora!!
    Não sei explicar bem a minha a falta de atração por Faulkner. É gratuita. Nunca peguei num conto dele.

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    1. Se fosse você, daria-se um presente. Leia Light in August. Você que é um entusiasta da literatura latino-americana, é literatura latino-americana em seu estado mais puro. Tenho absoluta certeza que vai amar.

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  5. Charlles, um filho da puta do inferno; a la puta que lo pario com a literatura do divertimento!; João Antônio INTIMANDO a ler o restante de Faulkner (voltarei direto pro S&AF depois dessa). Saudade disso. Amo vocês (hétero). Maior blog.

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  6. Sobre crônicas: temos as de Rubem Braga, Machado e Nelson Rodrigues. Esses chegaram lá. (Mas só o Braga era essencialmente cronista).

    Também fiquei com vontade de ler Faulkner agora, mas acabei de iniciar a leitura de um romance viciante (Kavalier & Clay). Luiz, recomendo começar por A Rose for Emily, um dos melhore contos já escritos. http://xroads.virginia.edu/~drbr/wf_rose.html

    Charlles, nem aposto com tanta veemência na literatura brasileira. Sai mais bobagem que qualquer outra coisa. Mas não posso negar que aqui e ali estão saindo grandes livros, instigantes e bem escritos, que não devem em nada aos que gostamos de importar. O próprio Franzen colocou o Nove Noites em sua lista de indicações do ano passado.

    Por sinal, acabou de chegar o meu Em Breve Tudo Será Mistério e Cinza, uma aposta cega que fiz com base no preview do site da Companhia, e pelo que folheei, me parece ser uma maravilha.

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    1. Kavalier & Clay, digo sem pompas, é o maior, o mais divertido, o mais estupendamente bem escrito romance norte-americano dos últimos 20 anos. Aliás, Chabon é o ATUAL GRANDE ESCRITOR daquelas pradarias, bem acima de Franzen. Só um cara consegue ombreá-lo, embora com menor magia: Richard Ford.

      Me diga depois sobre Em breve tudo será mistério e cinza.

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    2. (Fizemos uma promessa aqui em casa, Paulo, de mãos dadas e na hora do almoço, de reduzirmos consideravelmente os gastos até fevereiro, e essa eu vou cumprir. De forma que Nove Noites e Em breve estão na lista. Antes da promessa, comprei apenas o Homem Duplicado, do Saramago, que não me sai da cabeça.)

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    3. Acabei a primeira parte. É tão divertido quanto Dumas. E parece que o Chabon escreveu uns roteiros de HQs, você sabia? Vou voltar pra ele logo que terminar o comentário :)

      Li um Richard Ford chamado Rock Springs, há quase dez anos, quando eu não sabia comentar meus gostos direito. Mas me lembro ter adorado.

      Nem pretendo ler por agora o Em Breve, mas comprei logo porque achei muito barato na EV (pra um lançamento).

      Não conhecia o blog do Ssó, mas fui lá e gostei. E parece que você realmente inferniza o coitado, hehehehe. As discussões nos comentários são muito boas.

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    4. Esses dias encontrei exemplares lançados no Brasil de O Escapista, com argumentos assinados pelo Chabon. Ele também foi co-autor do roteiro de Spider-man 2 e 3, se não me engano.

      Li há muito tempo, de Ford, o Vida Selvagem, que é uma das melhores novelas que já li; e li Independência, um romanção de quase 500 páginas espetacular sobre a classe média americana. Em um texto recente do autor de festa no covil, no blog da cia, fala sobre o novo romance do Ford....peraí, é o post em que vc fala sobre sua leitura do Cheever na noite da Flip, não?

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  7. No melhor estilo em cima do muro, eu meio que concordo com suas observações, mas não desprezo o que trouxe o Ernani Ssó.

    Eu sou leitor bem meia-boca. Já falei isso, mas não me custa repetir. Li e leio pouca ficção, uma aqui outro acolá. Foi inevitável a identificação que tive com o leitor medíocre, aquele que acha que Proust é mergulhar biscoito no chá. Ri muito mesmo com esse comentário.

    Foi esse um trecho realmente marcante, a coisa mais linda que eu já li na vida. Antes disso, No Caminho de Swan é um passa página, passa página, passa página em que nada acontece. Mas é, neste caso, impossível ver o gozo do biscoito molhado sem passar pelas páginas tantas. Eu já havia tentado Proust uma vez e desistido. Ele exige recolhimento, sim. Não é ruim em nenhum momento, nada é sem sentido, há várias pequenas marolas antes do tsunami engolidor do biscoito. Neste caso, eu jamais diria que o escritor teve um mau início. Mas eu me lembro de ter ficado bastante aflito com a possibilidade de estar passando por todas aquelas páginas apenas para dizer, no boteco, que li um tomo do Proust.

    É, sim, impossível editar aquilo. O recolhimento exigido é, enfim, um real privilégio. Aliás, fiquei sabendo que tem Proust em quadrinhos. Adoraria ver o resultado de quem tentou fazer isso - seguramente, não conseguiu. Deve ter ficado pior que o Fantástico elaborando um texto da Clarice Lispector na semana passada.

    Por outro lado, não acho que o Ernani Ssó recorreu a um clichê ao falar de chatice, ou de pular partes que ele julga serem desnecessárias. Como leitor experimentado e escritor, ele se permite uma dose de iconoclastia, coisa que jamais eu poderia tentar. Bem, ele também pode ter tido um mau momento, segundo sua (dele) métrica.

    Mas é importante ser sincero, e não apenas engraçadinho, até para poder colher comentários de um Charlles ortodoxo, que reverencia cânones no recolhimento, comme il faut, e não no boteco.

    O prazer é, sim, fundamental. Nisso estou com Ssó e não abro. O prazer não se dá só com o que é divertido e frugal, ora. Para o leitor, pode haver prazer no drama, no choro (sabia que tem gente que sente prazer até com pequi?). Os segmentos herméticos, difíceis, intencionalmente (ou não) entediantes? Pode haver prazer em simplesmente vencê-los - o que é o caso do leitor medíocre. Mas não só. O prazer também pode advir apenas em... sofrer com aquela chatice que integra o todo. Numa rasa metáfora sexual, um leitor masoquista tem mais é que agradecer um escritor sádico. Porque, enfim, aquilo lhe toca em pontos de prazer dificilmente explorados no papai-e-mamãe - ainda que um bom ou ótimo papai-e-mamãe.

    Você está errado com "Para Gostar de Ler". Aquilo é para despertar o prazer de leitura EM CRIANÇAS. Pode não ter te ajudado, mas também não te brochou. Não é lixo, embora não seja Andersen. E nós, seres desejantes que somos, tendemos a iniciar a compreensão do mundo com o que é mais elementar: saber que o que vai (objeto, atenção, esforço), volta (recompensa).

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    1. Fábio,

      Há muitas outras partes sublimes em No caminho de Swan. As minhas partes inesquecíveis são a da Sonata de Vinteuil e da filha de Vinteuil após o enterro do pai (já escrevi sobre isso em dois posts). Proust é magnífico, e é o exemplo máximo da adaptação que se tem que fazer para ter o prazer da leitura (a Atwood propõe uma palavra mais em conta_delight). Parece que ele está escrevendo um monte de abobrinhas, mas não se pode se enganar: aquilo e o mais alto ponto a que pode chegar a verdade da vida e a sublimidade espiritual na leitura.

      Proust em quadrinhos é do gênero das adaptações despirocadas, como Homem-Aranha em musical da Broadway, ou Ulisses no cinema, e sua citação do Fantástico com a Lispector. Proust em quadrinhos é o pragmatismo extremo da proposta de deschatificar os clássicos: tem-se outra coisa rasa, sem o mínimo conteúdo e totalmente alheio da substância original.

      O prazer é FUNDAMENTAL. Claro que é. E o prazer conseguido com o recolhimento da leitura é a forma mais destilada do deleite: é o papai e mamãe com as preliminares com vinho e comida leve, o boquete ousado por debaixo da mesa sem que ninguém entre os garçons e os frequentadores do restaurante percebam, e a noite feérica numa cobertura de ampla janela por sobre a cidade onde o Kama Sutra é transformado em cartilha de devoção minuciosa. Chega ser melhor que pequi e guariroba.

      Eu adorava o Para Gostar de Ler. Só que não devemos descartar o óbvio de que aquilo era a melhor produção literária de autores adultos, cujo emissário, sem que talvez fosse a intenção dos autores, eram crianças de nove anos.

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    2. Fábio, (parte dois),

      a coisa que mais me dói no Brasil (digo com absoluta sinceridade, pois já fui professor e ativista nessa área) é a mutilação da leitura. O quanto a leitura é modificante, revolucionária, transformadora e, de quebra, o melhor passatempo já inventado. E legiões e legiões de jovens são treinados desde o útero das mães a ficarem cegos e avessos a isso. Treinados a acharem que diversão é a tv Globo, e tantas e tantas derivações criminosas e assassinas (assassinas sem dúvida: nada me tira da cabeça que muito da mídia de entretenimento ligeiro é um dos principais impulsionadores do homicídio e crimes brutais de todos os tipos pelo país), que não precisa citar seus elementos aqui. É tristíssimo ver isso, e isso que me fez abandonar para sempre a profissão de professor. Ver tantos zumbis de frente ao quadro é algo que funde os fusíveis: e hoje ainda, com celulares, tablets e demais brinquedinhos de alienação, ficou muito pior. Uma amiga minha, professora, teve que ser afastado pois desenvolveu a síndrome do pânico; e um de meus melhores amigos tem que tomar remédio controlado contra a depressão (ele um leitor voraz).

      Sempre me passa pela cabeça, quando eu leio coisas maravilhosas em livros: "o que esses caras estão perdendo!".

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  8. Fábio,
    Bela réplica. Mas me parece que a sua definição de prazer é tão abrangente que ela é quase Socrática. Sem querer transformar essa discussão num diálogo de Platão, sei lá, num Philebus, acho que o que você chama de prazer é na verdade o conceito Socrático do "bom."
    Os Estóicos diriam que existem "bons" e "maus" prazeres. Não iria tão longe assim a ponto de moralizar o prazer da leitura. Mas penso que o sujeito que lê Onetti ou trechos mais melancólicos de La Recherche pensando em se achegar mais perto do sentimento de tristeza que lhe acomete, não é e nem será necessariamente um masoquista que acha prazer na melancolia.

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  9. Só mais uma coisa. Entendo que o que o Charlles defendeu é a contrapartida da idéia de que a recompensa da leitura (na literatura) é uma puta fácil, que se insinua e se oferece na primeira vista.
    Essa contrapartida é bem mais velha que a do Ssó e possui um pedigree irrefutável. A recompensa da leitura é também fruto de uma askesis (ascese, ou do Grego exercício), e não se constitui necessariamente em renúncia (o ideal Cristão de ascese). Daí dizer que todos os que se iniciam nesse treinamento, nesse boot camp intelectual por assim dizer, são masocas da dor, acho equivocado.

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    1. Não entendi bem, Luiz. Não sei se você está afirmando que eu disse que o deleite da leitura é uma forma de masoquismo. Talvez eu tenha me expressado mal. A dor da leitura é aquela que te desvincula do mundo da distração infinita que nos turbina por todos os lados. Várias vezes vejo pessoas reclamando da falta de tempo para a leitura, mas sempre essas pessoas estão inteiradas sobre o que rola na net e na tv, bobeiras as mais triviais. Isso indica que é muito mais fácil ficar diante a tela. E cada vez mais vejo a defesa de livros de menor páginas, de leitura rápida. Direto vejo uma blogueira incensar determinado livro por ser "fácil" e "ligeiro" de se ler, em oposição a livros como Moby Dick, que a mesma blogueira teve a desfaçatez de criticar como livro intragável se não fosse editado o mais urgente possível_ evidenciando que ela não passou da página 30 para traçar tal opinião.

      Meu antagonismo a Ssó veio com a leitura da filosofia e da história em mente. Gente que se nega a uma atenção maior para ler grande romances ou clássicos, vira as costas terminantemente para livros que requer outros canais de envolvimento. Pelo que eu penso, livros como Dialética do Esclarecimento deve ser o próprio inferno para Ssó, deve ser como ser amarrado pelo saco a uma parede de concreto e açoitado por chicote nas costas a cada 5 minutos. E Adorno é puro deleite, como você sabe.

      Não é masoquismo. A dor que depreende disso é a dor da adaptação física_ nesse quesito, passa depois do treinamento espiritual.

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    2. Charlles,
      Mas era justo isso o que eu dizia. Que você defendia lá no Ssó uma tradição da leitura como disciplina, de ascese que era muito antiga, mas que nada tem da ascese cristã, do silício, e portanto da dor, do masoquismo.
      Essa idéia de leitura enquanto exercício, uma coisa um pouco Espartana, já estava lá em Sêneca e em Marco Aurélio. Santo Agostinho se apoderou dessa temática também depois, sem os contornos da ascese masoquista dos monges do deserto, Cassiano, Evagrius, etc.

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    3. O Qu'est-ce que la philosophie antique do filósofo francês Pierre Hadot, catedrático do College de France fala sobre isso. Bem antes da leitura se tornar esse medidor do nosso Complexo do Prazer, ela era, no momento em que deixava de ser uma experiência auditiva e coletiva e passava a ser uma experiência também solitária e de recolhimento, um exercício de si consigo mesmo, uma disciplina (e portanto askesis) de descobrimento da alma. É preciso temperar hoje essas definições com citações diretas de um Sêneca por exemplo, porque essas idéias podem soar ao ouvido destreinado como filosofia de auto-ajuda. Uma pena não ter o exemplar de Hadot aqui na minha frente.
      Mas a leitura enquanto disciplina nessa tradição era vista mais ou menos como um "cotidie meditare." Sêneca lia em voz alta a si mesmo, todo dia antes de dormir. Era um treinamento, um boot camp intelectual, cujo prazer, ele sabia, viria bem mais adiante, uma recompensa bem maior comparada à puta fácil dessa literatura que sempre se oferece na primeira passada de olho.
      Acho que é Hadot quem diz também que os diálogos de Platão foram escritos nessa direção. Não seria especificamente o conteúdo filosófico dos diálogos que seria o cerne do gênero diálogo Platônico - portanto a comparação da alma tripartida do homem com o governo ideal na Républica, a imagem da carruagem e dos dois cavalos para explicar a psiquê em Fedro, ou Eros no Simpósio. O legado dos diálogos de Platão teriam a próprio leitura dos mesmos como exercício e disciplina filosóficos. O ato da leitura dos diálogos Socráticos como exercício de si consigo mesmo, independente da temática dos mesmos.

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    4. Muito bom ler isso, Luiz. Hoje tenho que esbanjar elogios por aqui, só comentários excelentes.

      Desculpe não ter entendido antes o que estava a dizer.

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  10. Se terapeuta sexual eu fosse, possivelmente eu não me enganaria com a felação por debaixo da mesa sem que ninguém percebesse. Há um quê exibicionista nisso ainda que, no plano consciente, não se vislumbre o desejo pelo olhar do garçom. O óbvio superficial é só o prazer do risco de ser visto, ou de burlar da regra. Mas não sou terapeuta e eu mesmo havia recorrido a uma metáfora SM, né?

    Interessa aqui o prazer e é sobre isso que o vício do Ernani Ssó, eu acho, refere-se com força, mas você ficou de mimimi com ele (ironia mode on; você argumentou). Acho que ele está certo. O emissor, o autor do texto, tem muitos desafios, mas também muito poder. É justo que o leitor julgue se aquilo é bom ou não. A crítica, o público especializado, o leitor eventual, o leigo, todos os receptores ESTÃO no mesmo balaio.

    Alguns acreditam que nunca vão estar no mesmo balaio do outro, seja por reconhecida incompetência, seja por confiança na diferenciação trazida pelo esforço e conhecimento. Fato: estão, sim. O emissor tem poder zero quando seu texto se torna público e, por conseguinte, deve lidar com isso. Porque, em princípio, eu entendo que a "chatice" tem atenuante quando é dolosa. Duro é o "chato" culposo, aquele que não pretendeu sê-lo.

    Eu também já li coisas para, em seguida, lamentar por todas as pessoas que não leram por razões diversas. Esse gozo é aprendido, concordo contigo, assim como a performance sexual de todos nós tende a ser melhor que a tão esperada primeira vez.

    Mas não tenho o mesmo conceito de cultura do Vargas Llosa (embora ele seja instigador), porque, simplesmente, não "creio" que eu seja culto. Aprecio o embaralhamento e a confusão cultural que o Llosa tanto critica. Eu prefiro a intelectualidade que transita em diversos saberes - tal como Llosa, aliás, consegue fazer.

    Não estou seguro que o Para Gostar de Ler seja a melhor produção da Cecília Meireles, ou do Rubem Braga, ou do Drummond. Nem mesmo que eles não pretendessem o destinatário infanto-juvenil. A menina que quer ser bailarina é para criança. A história da menina que esnoba os camarões do pai e exige lasanha, seguramente, foi escrita para os pequenos. "Continho", do Paulo Mendes Campos, também. "O Recalcitrante" idem. Tem outro conto com passarinhos que é obviamente voltado à criança.

    Compreendo o drama do teu amigo com os alunos dele. Já lecionei língua portuguesa e inglês em escola pública. Depois, redação para alunos carentes num "pré-vestibular". Eu me exauri, irritei-me, encontrei pouco ou nenhum eco. Mas tinha a G., que de vez em quando formulava uma pergunta maiúscula (daquelas que vão muito além do "eu não entendi, repete"). Eu me agarrava a ela. Exigi muito dela e só lhe fiz um imenso elogio no último dia de aula, porque eu não podia entregar a fonte de minha recarga para a turma. Ela era uma excelente aluna em todas as disciplinas, embora declarasse predileção pelas letras e dificuldade em física. A G., e não o meu maior domínio, era minha luz para tentar, desesperadamente, atrair a atenção de muitos outros. Posso afirmar que eu teria conseguido muito menos sem ela.

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    1. Talvez seja tudo muito exagerado mesmo, até a vontade inconsciente de que o garçom seja o voyeur de uma felação por debaixo da mesa (um de nós dois é doente, Fábio).

      Nunca mais li Para gostar de ler, depois da infância. Mas recordo que os textos do Sabino eram o retirados de seus volumes de crônicas que sempre ficavam nas listas de mais vendidos, destinados a adultos. Mas acho que você está certo nisso. Haviam crônicas maravilhosas e inesquecíveis, como o Macacos me Mordam, que já não sei de quem era. Porém, sempre houve uma juvenilização da literatura brasileira, como acontece agora com os "novos romancistas".

      Quando eu dava aulas, principalmente nos primeiros anos, eu corrigia as provas e sempre escrevia observações imensas atrás. Uma vez dei nota seis a uma aluna, e escrevi uma longa análise sobre as possíveis capacidades dela, e como ela poderia explorá-las. Ela ficou muito emocionada e me disse, de forma que me tocou, que ninguém nunca havia elogiado ela antes. E não era um elogio. Isso me ensinou muito e é um dos momentos capitais de minha experiência como professor. Disso que vc diz, da G., eu guardo imensa saudade. Pena que é o desvio padrão, a exceção, não suficiente para manter o professor na profissão.

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  11. Luiz,

    Eu não havia visto tua réplica antes de postar meu último comentário. Fiz uma metáfora sexual rápida e rasa, donde tenho que me penitenciar. Concordo com tuas observações. Pretendi duas coisas, mas não fui claro. 1) Ao falar do drama, tentei demonstrar que o prazer por esse tipo de texto não decorre do império do lúdico, do divertimento, do "circus". 2) O prazer que chamei de masoquista é outro. Exemplifico. À medida que li 100 Anos de Solidão, perdi-me na sucessão de Jose Arcadio Buendia. Voltei para páginas já lidas na tentativa de estabelecer ordem. Em vão. Falhava a cada chicotada geracional que meu limite lógico levava no lombo, embora já desconfiado, lá pelas tantas, que aquela "chatice" sem cronologia era dolosa, intencional e incrível. E continuei apanhando até o final do livro, gozando com minha própria miséria. Gabo me deu uma surra e eu me tornei praticamente a protagonista de 50 Tons de Cinza (que eu não li, que isso fique bem claro, risos).

    Charlles,

    Não sei quanto a você, mas eu finjo ter a doença que me acomete, se é que o Pessoa permite esse empréstimo baixaria que fiz dele. Na minha experiência, acho que nada supera o clássico sexual. Praia deserta (tem areia), relva (coça), mesa da sala (é dura)... nada supera cama. As fantasias que já tive pendurado no lustre, e que realizei, foram muito, mas muito decepcionantes.

    Eu também escrevia muito mais que meus alunos em suas (deles) provas. Eu me lembro da cara de desespero da G. quando recebia uma redação com mais palavras minhas que as que ela havia escrito. Porque ela sabia, é claro, que era boa de redação, mas eu mandava caneta vermelha por todos os lados e no verso. Sei que ela era exceção e que sua capacidade de contaminar a turma "para o bem" era muito limitada. Mas sei também que o professor que pretende ter uma turma só de Gês idealiza não apenas a sala de aula, mas também o mundo e talvez a si mesmo. Não é fácil. Não é minha profissão. Mas hoje, olhando retrospectivamente, lecionar me proporcionou um imenso prazer. Eu adorava dar aula.

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    1. Fábio,
      Muito interessante essa sua experiência Masoca com o Cem Anos de Solidão. Não posso dizer que já experimentei algo parecido com a literatura.
      Já fui no entanto "fustigado" e "disciplinado" por várias leituras do grande cânone. Algumas dessas "surras" me fizeram aprender que não estava pronto ainda para alguns livros, foi o caso do Doctor Faustus do Mann (acho inclusive que o Ssó já disse em algum lugar, talvez no Blog do Milton, que ele detesta o Mann de Faustus).
      O que eu queria dizer mesmo era que o seu comentário parecia esvaziar um pouco a gama de experiências emocionais diversas que se pode depreender da literatura à idéia de que essas nada mais são que outras versões do prazer.

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    2. Uma coisa interessante é essa dicotomia que existe quanto ao 100 anos, do GGM. Não há ninguém que o tenha lido que o ache mediano, mas conheço muita gente boa que o detesta, o acha chatíssimo. Ou ama ou odeia, é isso.

      Quanto ao Fausto de Mann, é um grande livro, mas o acho menor que os outros grandes títulos de Mann. Neste livro, as páginas iniciais, escritas com um tom bem oitocentista, são mesmo duras de suportar, mas o restante é muitíssimo bom, em especial as tantas informações sobre música que Mann distribui generosamente. Mas, como disse, o prazer que eu tive em José e seus irmãos (os dois primeiros livros da tetralogia), o Montanha Mágica e os Buddenbrooks foi bem maior.

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    3. Minha impressão inicial era a de que Ssó se referia justamente a esse oitocentismo quando falava de chatice nos clássicos. Mas daí ele chega a comentar depois sobre partes inteiras do Quixote que seriam prontamente editadas nos nosso dias...
      Fico pensando qual não seria o futuro de Homero ou de um Apolônio de Rodes sem essa dimensão da leitura que exige a ascese.

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    4. E note: Doutor Fausto é um exemplo de romance moderno do século XX. Mann empregou esse tom retrógrado, oitocentista, com nítidos fins estéticos. O narrador, como ele bem diz nestas primeiras páginas, é um homem culto, sem arroubos de imaginação, pacífico e bom vizinho, cuja vida passou sem nenhum momento de perturbação íntima que não fosse a parte distintiva de ter sido amigo de um gênio a seu biógrafo. Ou seja, Mann se aproxima aqui de muitos significados com essa voz plácida, anti-dionisíaca, talvez da Arendt da banalidade do mal, talvez para mostrar o quanto os eventos espirituais da segunda-guerra e seu incrível morticínio tornaram o humanismo démodé, obsoleto. E aqui eu volto à antiga discussão minha com o Ssó em que eu defendo o livro também como objeto de arte-física (se existe algo incontestável em Finnegan´s Wake é que a tipografia é linda, ver todas aquelas palavras metamorfoseadas; Blake já sabia disso, ao fazer aquelas iluminuras belíssimas para seus provérbios do inferno, assim como o genial Sterne ao imprimir vários e moderníssimos choques visuais ao leitor com aquela página em negro após descrever o interior do nariz de um dos personagens; ou o Diálogo de Adão e Eva, do Machado de Assis, que por sua vez foi inspirado em Sterne), de arte material, naquelas 345 páginas de 2666, em que Bolaño "chateia" o leitor com matérias jornalísticas rasas sobre os homicídios de mulheres na fronteira do México. Manns sabia o que fazia, interligando todos os pontos. Nota: eu amo o Fausto do Mann, apenas coloquei em proporção que há outros títulos mannianos que me impressionaram mais.

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    5. Ainda pretendo voltar ao Faustus. A surra que tomei de Mann foi da sua erudição musical. Eu saí daquela derrota convencido de que o meu opositor falava de um registro incomparavelmente mais alto que o meu. Às vezes eu me sinto assim. Que é preciso equilibrar o nivelamento antes de retomar a leitura.
      Mas sem sombra de dúvidas é uma grande obra de Mann. Assim como o Morte em Veneza. Guardo o Montanha Mágica para um período de recolhimento espiritual de solitude e atenção completas. De repente depois do doutorado eu me encerro numa cabana no grande outdoors Canadense com nada mais que a Montanha e um farto estoque de comidas de lata e cerveja.
      O poeta piamontês Cesare Pavese foi outro sujeito que me aplicou uma boa surra. Ainda pretendo voltar a ele.

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    6. Adorno foi o consultor musical de Mann na gestação desse livro, o que o torna mais atraente ainda, a despeito dessa linguagem inaugural do livro um tanto rebuscada. Nos bastidores teve toda uma problemática pois Schoenberg, com sua música serial, não gostou nem um pouco de ser retratado sem ser citado.

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    7. Muito obrigado, por essa do Adorno, Ricardo!!!
      Não tinha a mais puta idéia que Mann e Adorno quiçá tinham se conhecido.
      Dá até uma certa ternura agora pensar em voltar ao Faustus na companhia daquele ensaio famoso do Adorno sobre música erudita.

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    8. A briga entre Adorno e Schoenberg era antiga, mas teve seu clímax nesse período em que o primeiro prestou consulta a Mann.

      O clima era pesado e Mann chegou a confessar: ele tanto me seduzia que às escondidas de Adorno cheguei a buscar conselhos com Schoenberg.

      A sedução a que se refere Mann aconteceu quando Adorno tocou a sonata Opus 111 de Beethoven e comentou-a detalhadamente ao escritor em sua casa na Califórnia.

      Disse Mann: Adorno nada opôs ao aspecto musical, mas demonstrou preocupação com as 40 linhas finais, que falavam de esperança e misericórdia após as trevas.

      Só lembrando, Adorno é aquele mesmo que, em 68, quando da invasão da sala de aula por uma garota de seios baloiçantes à vista, chamou a polícia e ainda pousou para foto com o comandante policial da repressão aos estudantes que haviam tomado a escola. Eu no lugar dele... hehehe...

      Ah, ele nasceu num 11 de setembro.

      Fonte: Revista Bravo, fevereiro de 2003.

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    9. Outro motivo para ler Mann: sua mãe era brasileira.

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  12. Sobre o prazer da leitura:
    Ler o blog do Charlles e seus impagáveis (no sentido de não ter preço) comentaristas.

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    1. Obrigado, Ricardo. E o "Arco-Íris da Gravidade" da terrinha, como está a leitura, meu caro?

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  13. Completei minha "coleção" de Pynchon com essa aquisição, mas até o momento me limitei a ler apenas algumas 50 páginas. Confesso que estranhei um pouco a tradução, mas nada de anormal. Li Vício Inerente e reli o Leilão. Em seguida, chegaram alguns do Faulkner e o fascínio foi imediato. Ontem à noite terminei Sartoris. Que narrativa deleitosa! Agora aguardo Absalão. Guardo o Arco-íris para as minhas férias, em janeiro próximo. Aliás, no EV apareceu novamente a edição brasileira: pela modesta quantia de 299 pratas. Passei a vez. Curiosa foi essa história: cadastrei a obra na busca offline do site. Passados alguns bons dias, recebi um e-mail avisando que o livro fora encontrado. Engraçado que recebi a mensagem no exato momento que estava logado na minha caixa de entrada. Imediatamente corri ao EV com o intuito de adquiri-lo pelo preço cadastrado (58,00). Para minha surpresa, quando cliquei no link indicado, apareceu a mensagem dizendo que o livro não estava mais disponível. Mandei uma mensagem para o EV cujo texto, na parte final, fazia uma "profecia fácil" (poucos dias depois cumprida): que o livro em breve estaria novamente à venda por uns 250/300 reais. É o comércio que prevaleceu. A esse preço extorsivo, sinceramente, espero que encalhe com o vendedor.

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    1. Até hoje não recebi resposta do EV. Minha mensagem era no sentido de que se aprimorasse esse mecanismo de busca, funcionando como uma espécie de reserva, prioridade de compra a quem deflagrou a busca primeiramente. Aconteceu o mesmo episódio anteriormente quando havia cadastrado Árvores Abatidas. Dias depois estava sendo vendido com ágio de 300%.

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    2. Rapaz, esse lado de especulação instantânea (uma quase extorsão) da EV eu não conhecia. Uma vez, quando procurava o também, naquela época, caríssimo e raro O teatro de sabbath, havia aparecido um exemplar num sebo, mas, assim que eu o pedi, disseram educadamente que foi uma falha não terem atualizado a informação do estoque, e pediram desculpa por já terem vendido o livro. Uma hora depois, o sebo me manda um e-mail dos mais toscos e seriamente mal escrito, dizendo, guturalmente, sem vírgulas e pontos, que havia um exemplar e que era para eu depositar a quantia em uma outra conta. Identifiquei que talvez fosse uma tentativa de golpe de um dos funcionários, respondo que havia depositado, e esqueci o assunto. O cara de lá não respondeu.

      Desisti de encontrar o Árvores Abatidas. O que acontece com as editoras nacionais? Sabe que há uma grande procura, e não reeditam.

      Fico curiosíssimo para saber como os portugueses arranjaram para traduzir aquelas façanhas pynchonianas todas.

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  14. Ocorreu isso comigo essa semana com Absalão. Só que foi no livronauta. O preço somava, com o frete, 16 reais. O mais barato depois era na casa dos 35. E o vendedor veio com essa desculpa também do estoque desatualizado.

    Se quiser, posso escanear as páginas iniciais e lhe enviar por e-mail, só pra ter uma ideia de como se comportaram os tradutores lusitanos. Confesso que ainda não desisti de ter a edição brasileira, mas só topo pagar, no máximo, o valor da época em que foi lançado. Tive esse comportamento em relação a Árvores e acabei conseguindo comprá-lo por 45 pila. O problema desse livro e o do Sobrinho e também Perturbação é que os direitos pertencem à Rocco, e meu palpite é que tão cedo não teremos novas edições. Ainda bem que consegui todos eles e os outros da Cia por preços acessíveis.

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    1. Se não te for incômodo, Ricardo, desejaria muito que me enviasse pelo menos a primeira página.

      Isso da Rocco me passou pela cabeça. Mas a cia comprou os direitos de algumas das publicações dessa editora, espero que o Bernhard também.

      Tenho tudo do Pynchon, menos o Sobrinho e o Árvores.

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    2. Farei isso amanhã pela tarde, pois o livro está no trabalho.

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  15. Bom, Pynchon continua na ativa...ah, se eu dominasse o inglês...

    http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/11/1365456-salinger-pynchon-e-outros-eremitas-literarios.shtml

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  16. Oi Charlles/Ricardo, posso entrar na conversa para dizer duas coisinhas?
    1 - Ricardo, partilho do seu desejo de que o livro fique encalhado com o vendedor. Em contrapartida, o que há com a Companhia das Letras que não reedita o Arco-íris?
    2 - Charlles, sobre a sua dúvida de como os portugueses se viraram com as loucuras do Pynchon, a edição deles é uma das coisas mais bizarras que li na vida, sério. Estou lutando com ela, por volta da página setecentos (ela tem mais de mil), e sinto que estou traindo o inigualável Paulo H. Britto, de quem li as traduções de Mason & Dixon e Contra o dia... nas minhas pesquisas para ver se encarava mesmo essa edição, me deparei com alguns artigos exaltando o tradutor, Jorge Pereirinha Pires, todo o seu amor por Pynchon, todos os anos que levou para executar a tradução, etc, etc. Pelo jeito, ele é um cara respeitado lá. Pena que perto do Paulo, parece amador.
    Ou vai ver, é frescura mesmo...
    mas cara, olha só:

    Pynchon:
    ''A screaming comes across the sky. It has happened before, but there is nothing to compare it to now.
    It is too late. The Evacuation still proceeds, but it's all theatre. There are no lights inside the cars. No light anywhere. Above him lift girders old as an iron queen, and glass somewhere far above that would let the light of day through. But it's night. He's afraid of the way the glass will fall - soon - it will be a spectacle: the fall of a crystal palace. But coming down in total blackout, without one glint of light, only great invisible crashing.''


    Pynchon por Jorge:
    ''Uma berraria vem através do céu. Já aconteceu antes, mas nada há que a compare com agora.
    É tarde demais. A Evacuação continua a decorrer, mas é tudo teatro. Não há luzes dentro dos vagões. Não há luz em lado algum. Acima dele vigas de elevador tão velhas quanto uma rainha de ferro, e vidro algures muito no alto que deixaria passar a luz do dia. Mas é de noite. Ele receia o modo como o vidro cairá - dentro em pouco - será um espetáculo: a queda de um palácio de cristal. Mas caindo em escuridão total, sem uma centelha de luz, somente grande derrocada invisível.''


    Abraço.

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    1. Renato, o Ricardo me mandou as primeiras páginas do livro por e-mail hoje (ainda não tive tempo de te agradecer, Ricardo; obrigado), e eu ri muito ao ler. Realmente, perto do Paulo Britto, soa de uma cacofonia pra lá de exótica. Tive o desejo de comprar a edição portuguesa para ver como o Pereirinha saiu nas minhas partes preferidas (como a parte de rolar de rir em que Slothrop entra privada adentro, e a cena antológica do polvo, etc) Nestas páginas lidas, a coisa me pareceu muito travada, mal costurada. "Uma berraria vem através do céu" é um crime contra Pynchon, convenhamos_ uma das frase mais belas da literatura em inglês, avacalhada desse jeito (Britto foi de um refinamento em traduzir em uma frase concisa, incisiva, ligeira, como a aceitar dessa maneira digna a impossibilidade de manter a musicalidade da original).

      Vi em um site português pessoas lamentando ser proibido a venda da edição da Cia das letras por lá.

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    2. Não sei se "berraria" tem o mesmo significado que no Brasil, de estridência continuada, de birra, de barraco, de bebê que não para de chorar. Se tiver, o Pereirinha não se saiu tão bem assim, pois a referência à queda da bomba que perpassa toda a obra, até na elipse sugerida no título, é, pelo contrário, de uma sutileza apavorante. A queda da bomba é um silvo, um quase não-som, uma percepção tegumentar, uma onda invisível que se espalha em um micro-segundo e desaparece (levando consigo uma multidão de vidas e destruição). A bomba de Pynchon está sempre relacionada com a impavidez impiedosa de um anjo. Nada a ver com "berraria".

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    3. "Um grito atravessa o céu", foi a solução do Britto para a terceira mais bela frase inicial de um romance, na opinião do American Book Review.

      http://www.viscerasliterarias.com/2009/02/100-melhores-primeiras-frases-de.html

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    4. Só você teria capacidade para colocar a coisa tão bem (trocadilho não intencional).

      Vou tentar escanear as páginas referentes às cenas que citou e poderá comparar com a tradução do Paulo Henriques. Assim que conseguir escaneá-las, te mando por e-mail.

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  17. Pelo jeito vou ter de me sujeitar aos 299,00! Puxa Vida! Algo me "soava" estranho, mas não sabia mensurar...Era a berraria!

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    1. É uma quantia e tanto. Vai vendo no site da Companhia das Letras, na parte de futuros lançamentos, se não há previsão de relançamento da obra. Há alguns meses eles relançaram, após anos de insistência de leitores, o Origens do Totalitarismo, uma obra capital da Arendt que vendeu igual água a primeira edição, mas que eles só foram lançar em edição de bolso anos depois.

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    2. Não, não vou comprar, nesse caso os meus "tostões serão regateados com acrimônia"... com essa quantia compro todos os que me faltam de Faulkner e ainda me sobra algum.

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  18. Tentei, mas não resisti. Eu tinha uns 19 anos quando li "Sobre Música Popular" (e não sobre "Sobre Música Erudita" na minha tradução) do Adorno. Detestei de cara. Talvez seja a hora de reler, mas não vai rolar. Eu acho Adorno péssimo nesse texto, ainda que seja referência.

    Saber do lance dos peitos boiçolantes... confirma o que eu acho dele. Adorno não presta como ser humano. Que tire fotos ao lado dos policiais e com uma partitura clássica de fundo. Eu não quereria ela como professor a ligar pra polícia em nome de, sei lá, como devemos nos comportar.

    Primeiro, devo dizer, detestei aquele texto porque eu o entendi. Para além de eventual análise, aquilo é o cúmulo do preconceito. Não estou me apegando ao supostos cânones da MPB (rysos), que eu adoro, mas ao suposto lixo. Charlles não quereria saber o que aquilo diz ao Sex Pistols ou à Elis. Ou ficaria horas tratando sobre o prazer que, infelizmente, teve. Eu lido com lixo numa boa. Só acho chato quando está alto na minha janela. Eu detestaria Mozart nessa circunstância também.

    Adorno é uma chatice pretensiosa. E eu não sou um especialista para ousar a iconoclastia de detestá-lo.

    Antes de "Sobre Música...", eu havia lido "Conceito de Iluminismo", que ele assina junto com o Horkheimer. Foi um texto impossível para mim. Foda-se o leitor. Prazer? Sorry, o objetivo ali foi impedir o gozo. Li cinco vezes, fiz a prova e não me lembro de nada. Nada. Não sei nem do que se trata.

    Para citar outro frankfurtiano, Bejamin é o cara. Porque ele escreve bem, muito bem. Eu me lembro dos textos dele.

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    1. Fabio, nunca li os textos sobre música do Adorno. Já ouvi dizerem que o cara era extremamente radical sobre música. Eu não teria problema em ler tais textos e manter minhas predileções sobre o Sex Pistols e Coltrane: também Allan Bloom massacra a música pop mas é beleza lê-lo. Só que não vejo Adorno como teórico musical, ou nunca procurei por essa vertente de seu pensamento.

      Li de Adorno apenas Minima Moralia e Dialética do Esclarecimento, que serviram a sedimentar o cara como um de meus autores fundamentais. A escrita dele é intransigentemente hermética e difícil, mas nada a ver com os códigos secretos para poucos entendidos de Lacan. Meus volumes de Adorno estão sublinhados de alto a baixo, e nestes livros há um grau de lucidez e de verdade que pouco vi em outros livros. O Dialética, tenho que dizer, mudou substancialmente meu modo de ver o mundo. Adorno criou uma linguagem que transcende a filosofia, e, melhor e mais coerente com sua afirmação sobre a impossibilidade de se escrever poesia depois de Auschwitz, vai muito além da poesia. Há uma parte em Minima Moralia em que ele fala do bullying que sofreu quando era criança, com o fortões da escola, e como isso era uma previsão imediata da violência nazista, e é um dos textos mais tocantes que eu já li. Não é de admirar que ele tenha repudiado a rebelião fácil dos seios à mostra da sua aluna, e ficado do lado da polícia. Ele via talvez do lado certo o quanto de gratuidade havia nesses estopins da astúcia da História, em que estudantes descerebrados e hedonistas que, limitados a protestarem sobre as triviais condições de seus alojamentos estudantis, acaba por desencadear o rebuliço de 1968. Adorno e ultra-sensível e muitíssimo humano nesses dois livros. É capaz de traçar sentenças bombásticas a cada página, de resumir anos de pensamento em frases lapidares, perfeitas e enlevadas de uma absurdamente devastadora ambiguidade_ como os textos sobre matadouros do Dialética, ou quando fala que toda fera é infinitamente delicada (que frase belíssima).

      Já Benjamin é um escritor que é uma unanimidade. É um cara profundamente querido, profundamente desprotegido. O grande pecado de Adorno, indesculpável, foi não ter-lhe dado guarita na universidade, o que, muito provavelmente, teria impedido seu suicídio. Já escrevi sobre isso aqui, não me lembro onde. Arendt, em Homens em tempos sombrios, no magnífico ensaio sobre Benjamin, sugere que Adorno estaria adiando o dia em que aceitaria Benjamin com glória, após testá-lo e enrijecer sua musculatura, mas aí veio Hitler, veio a diáspora, e veio a fronteira espanhola com a frágil cabela morta por sobre a mochila, do autor dos melhores retratos sobre Kafka e Proust já escritos.

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    2. Diz a lenda que no projeto inicial quem escreveria a Dialética do Esclarecimento seria Marcuse e Horkheimer, mas aí Adorno, pela sua proximidade com o último, entrou em campo e mudou os rumos. Isso tudo porque recebia maior cota (ajuda financeira) do Instituto quem produzisse mais...mas isso é apenas uma mera lenda...

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  19. Dialética do Esclarecimento foi também minha grande iniciação a Adorno. A incursão nesse Adorno não foi assim uma experiência de libido puro (para aproveitar a longa discussão desse thread), mas tampouco foi ela um sessão de tortura ou um exercício de paciência. O regalo com esse Adorno se deu mais pra mim na constatação de que se está diante de um evento singular nessa grande narrativa do pensamento Europeu.
    O ensaio de Adorno e Horkheimer nesse livrinho sobre o Julliete de Sade é uma leitura de calistenia que vale todo o suor. Sade como o emblema da moral burguesa do Iluminismo. A tese originalíssima de que o Iluminismo estabelece a burguesia Européia livre de qualquer tutelagem moral.
    Daí tem também o belíssimo ensaio deles sobre o Holocausto, citado pelo Charlles.
    Meu autor de Frankfurt preferido no entanto é Herbert Marcuse. Apesar de demode em vários aspectos, tem alguma coisa naquele Marxismo Freudiano dos cinquenta que me cativa. Bom, acho que é o j'accuse contra os sistemas de repressão modernos.

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    1. E a mim não me incomoda nem um pouco tanto o formalismo quanto o esnobismo do Adorno no seu ensaio sobre música erudita.
      Acho bem superficial a sua posição sobre o jazz americano (também no Dialética do Esclarecimento, não é mesmo?), de que o jazz seria um subproduto da indústria cultural, a expressão da burguesia moderna por excelência. Mas, justiça seja feita, penso que o Adorno tinha o fenômeno das big bands e dos grandes dance halls em mente quando escreveu isso sobre o Jazz. Um jazz portanto menos negro e domesticado para o largo consumo.

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    2. Curiosa essa sua última observação... Uma oportunidade válida para revalidar Adorno nesse ponto.

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  20. Consegui convencer dois (Charlles e Matheus) e converter um (Luiz) - a semana está ganha.

    Luiz, recomendo Light in August também; pode ser o Go down, Moses, caso queira contos.

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    1. Tenho adoração pelo Paulo Henriques Britto; todo domingo realizo sacrifícios humanos para minha santa trindade pessoal da tradução brasileira, Paulo & Galindo & Rubens Figueiredo. Mas meu primeiro contato com Pynchon foi no original do The Crying of Lot 49, e à essa experiência, a troco de algumas (muitas) cabeçadas na parede, eu devo quase que todo o meu domínio do inglês. É melhor ler logo o original do que ficar dependendo do calendário das editoras, e esquecer essa necessidade de já ter a língua previamente domada. Mais tarde encarei o Gravity's Rainbow; mesmo nos momentos mais complexos, a dificuldade não entrincheira o texto, e sim o põe como pura possibilidade de descoberta - é aquilo que achei em Rosa, e que procurei em Joyce sem sucesso mas sabendo que está lá em algum lugar.

      Não possuo nem o The Crying of Lot 49 da Cia. (inclusive não sei se foi o Paulo Henriques Britto quem traduziu) nem a do Gravity's Rainbow. Quero muito ter essas edições, principalmente a do Arco-íris, porque o Britto é um poeta de mão cheia e conseguiu um jogo de sons magistral nessa primeira frase, não devendo à original (aliás, muito se fala dessa primeira frase, mas aquele desfecho também é dos melhores já feitos, e eu não entendo o porquê de quase não ser comentado.)

      Estranhamente, meu favorito do Pynchon não é a unanimidade do Gravity's Rainbow, mas o Mason & Dixon - que é o único que não li no original, e sim na tradução brazuca do mestre.

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    2. Eu leio sem muitos problemas em inglês e espanhol, mas não troco nenhuma obra original por uma boa tradução. O prazer de ler Pynchon nas excelentes traduções do Britto e do Galindo (quero muito saber de quem vai ser o recente livro do autor), é impagável. Acho que nisso, estamos um pouco atrás dos leitores de países mais desenvolvidos que o nosso: por lá há traduções canônicas, que equivalem em fama às obras originais (leia a maravilhosa reflexão sobre o quanto uma tradução pode ser superiora à escrita original nas primeiras páginas de Extinção). Amo demasiadamente a música da língua portuguesa em alto nível. Claro que fica um tanto melhor quando contrapomos a matéria genuína à transliteração original. A literatura deve muito às traduções.

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  21. Quando comprei meu Arco-Íris da Gravidade por R$36 num sebo em Salvador, antes de existir a EV, me arrependi por ter gastado tanto. Fiquei ainda mais arrependido quando descobri que um amigo meu, que só conheci bem depois, o vendera ao sebo quase de graça. Jamais poderia imaginar que ficaria tão caro. Comprei pra ler algum dia - tá lá intocado até hoje.

    Li o Lot 49 em inglês, porque não aguentei esperar, e O Anão, de Par Lagerkvist, em espanhol, numa xérox de uma edição argentina que encontrei no meu último dia de faculdade. Comprei Uma Confraria de Tolos por R$3, quando estava por R$150 na EV, mas ESSE, só porque eu já tinha, fizeram questão de relançar.

    Meu Livro Impossível, no entanto, era O Homem que Ri.
    http://raviere.wordpress.com/2013/03/13/o-livro-impossivel-parte-i/

    P.S. Kavalier & Clay está ótimo!!

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    1. Eu economizei uns quatro meses espartanos para chegar de frente às vendedoras da clássica (e hoje finada) livraria Cultura Goiana, e comprar meu exemplar rescendendo de novo de Arco-Íris da gravidade, uns meses após ser lançado. Eu nunca tinha ouvido falar de Pynchon, mas ao ver o suculento volume em um shopping, e ler atrás que se tratava de tudo que se fala do livro, fiquei esse tempo todo em estado de ânsia. Lembro perfeitamente que duas vendedoras embrulhavam o livro, e me perguntaram, absolutamente incrédulas: "você vai ler MESMO esse livro tão grosso?".

      A EV é cheia de surpresas. Tive um briga arretada com uma livreira de 80 anos que não conseguia ver que eu havia depositado os míseros 10 reais para uma biografia do Ghandi, e que teimava em não me mandar o livro; tive que desembolsar uma fortuna (acho que foi 120 reais) por esse que foi meu maior fetiche de leitor. Extinção, do Bernhard (que a Cia não reedita nem à custa de macumba); e, o que já contei aqui mil vezes sem o menor pudor: comprei por 8 reais, mais 7 de frete, a primeira edição americana de Augie March, que vale, conforme consultei, no mínimo 2.500 dólares em um site de livros raros.

      Chabon...

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    2. 120 pilas é demais pra mim. Meus fetiches são quase sempre adiados. Só dei algo assim na coleção O Visconde de Bragelonne, na "versão econômica" (preço justo) do Guerra e Paz da Cosac,e na de Em Busca do Tempo Perdido em capa dura da Globo. Mesmo meus Dumas e Hugos da Zahar foram mais baratos. Salvador tem esse veneno remédio que são as livrarias falidas - tinha Extinção e Origem com desconto respeitável (uns 40%), mas só tive grana pra levar o último, pois, coincidentemente, levei também o Augie March da cia nesse dia.

      Meu grande triunfo foi levar a obra completa de João Cabral, da Nova Aguilar, aqui no interior da Bahia, por inacreditáveis R$6, mas não chega aos pés de seu Bellow. Que sorte da porra. Quando você comprou já sabia que era a primeira edição?

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    3. Nem imaginava. Claro que o livreiro não sabia também, senão não seria esse preço. Quando o livro chegou, todo amarelo e antigo, fui conferir o ano da edição e tive que re-conferir várias vezes para acreditar.

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    4. Terminei Kavalier & Clay. Que puta livro. Dá vontade de começar a desenhar uma história assim do nada. Me impressiona o tamanho da pesquisa que Chabon fez pra escrever o romance, já que flui como se ele tivesse de fato vivido naquela época. (Tem até uma farmácia do Spielgelman, hahahaha).

      Vou passar essa semana inteira lendo HQs!

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    5. Chabon é um baita escritor. Li Garotos Incríveis e gostei muito do estilo. Daí foi uma corrida em busca dos outros livros já publicados. Chegaram Kavalier e a Solução Final, mas estou curioso mesmo é pra ver a Associação Judaica.

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    6. Na expectativa: comprei ontem de madrugada O Arco Íris da Gravidade "nacional" no EV; preço: R$ 55 + 12 de frete; eu disse bem, comprei, porque nos casos dos sebos, a entrega, nem sempre, é o corolário da compra.
      Vinha acompanhando (todo santo dia) a evolução das vendas (entrada e saída) do bendito no EV, eis o relatório: logo em seguida ao meu desejo /praga de encalhe da obra, ocorreu justamente ao contrário e o execrável Sebo " O Lucro ou as Pessoas?" faturou 299,90; dias depois foi cadastrado outro pelo modesto preço de 169,00; vendeu logo em seguida, creio que no mesmo dia; então fez-se o milagre e surgiu a oferta que me levou aos prantos , de felicidade.
      A pilhéria que há nisso...
      Na expectativa....

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    7. Só pra constar: foram ofertados 3 exemplares do Leilão, ao preço médio de 150,00. Uau, o preço por página praticamente atingiu a impressionante cifra de R$ 1,00!

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  22. TÁ QUENTE OU FRIO?
    by Ramiro Conceição
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    “Jamais haverá ano novo, se continuar a copiar os erros dos anos velhos” (Camões). “Tão bom morrer de amor e continuar vivendo” (Quintana). Creio que tais aforismos são uma síntese, no sentido de Hegel, do viver e conviver - humanos, quer dizer, a nossa sabedoria – se efetivamente existir! – é um processo contraditório, por que não dizer paradoxal? Nunca temos perguntas redondas e, consequentemente, nunca respostas acabadas… Ao contrário, nunca saberemos exatamente o que perguntamos e, principalmente, nunca responderemos precisamente…
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    As perguntas são tendências dum dado tempo histórico e a respostas, tendências adquiridas; ou seja, não existe livre arbítrio, apenas as melhores respostas possíveis dentro de um dado e limitado contexto.
    Dito isso: ler por completo os ditos clássicos ou não, isto é, dar pulinhos na leitura dum dado texto dito clássico ou viver a sofreguidão do insuportável - é humano! O que importa é a história dos pulinhos ou o caminho completo percorrido… O tempo coletivo (quer dizer: a vida real dos seres humanos) é e será a síntese a demonstrar se uma obra é ou não é fundamental…
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    O prazer, aí, é uma reta reversa ao plano da realidade dos leitores: quer dizer, aqueles que num dado momento procuram respostas, certamente encontraram algumas perguntas; por outro lado, aqueles que só têm perguntas encontraram algumas respostas certamente insatisfatórias; portanto, se uma obra for efetivamente uma obra de arte tais discussões bastam, pois já cumpriu o seu papel, já deixou de ser mesmice, já mudou a história em antes e após ela…
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    Será revolucionária? Creio que não… tudo muda muito lentamente em nosso referencial de tempo… Quer um exemplo? Quando se submete o gás hidrogênio (H2) à uma grande diferença de potencial, os elétrons adquirem temperaturas na ordem de 11000oC!!!!, todavia como eles são poucos e, principalmente, muito pequenininhos, quando comparados às outras espécies existentes sob tal processo, isto é, as moléculas de H2, os íons H+, as moléculas excitadas de H2 e etc (para não complicar o texto), a temperatura do plasma a frio da mistura pode estar numa temperatura muito baixa, por exemplo, a 200oC.
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    Daí vem a pergunta: o sistema tá quente ou tá frio? Depende da referência! Para os elétrons está quente, porém em relação à totalidade de seus vizinhos está frio. Quem está com a razão: ambos!
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    Resumo da ópera: um clássico poderá ser um elétron a 11000oC, mas poderá ser também uma reles leitura a 200oC. Deixará de ser clássico? Claro que não! Justamente por possibilitar ambas as leituras!... Uma obra escrota está condenada à leituras, simplesmente, escrota a favor ou contra…
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    A grande arte, se é que existe, seria uma constelação que gerasse outras constelações… O restante são buracos negros importantes…, mas, contudo, buracos negros…


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    1. Errata: a frase "Uma obra escrota está condenada à leituras, simplesmente, escrota a favor ou contra… " . Tal construção, além de errada, éimprecisa.

      Creio que melhor talvez fosse isso:

      "Uma obra escrota está condenada a uma leitura escrota - simplesmente a favor ou contra, mas nunca à problematização do seu conteúdo a ser superado". Quer dizer, uma obra escrota nunca passará da esfera do entretenimento, sobre o qual Lhosa escreveu brilhantemente (isso no ponto de vista do meu elétron a 11000oC...).

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  23. errata: catralhos me mordam: não é "encontraram", mas "encontrarão", parece-me no momento o mais razoável...

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    1. Certa feita,
      diante da humana
      incerteza, escrevi
      isso:
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      CATASSOL
      by Ramiro Conceição
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      O poeta fora prometido ao deus da vida;
      porém, sem saber, engravidou de poesias
      por ação do espírito humano.
      E o deus da vida, seu marido prometido,
      que era justo, não o denunciou
      porque sabia que o artista trazia frutos
      ao seu passado-presente-futuro.

      O poeta concebeu em sua língua
      para ensinar, em muitas línguas,
      sua linguagem estética, política
      e ética.
      E a lira não se quebrou.
      E um catassol cantou:

      “Sou um ruminante cérebro mutante,
      um lento catassol sobre a leitura
      que sabe: ler é conceber com ternura.

      “Sou uma repetição, uma aliteração,
      uma especiaria para condimentar iguarias,
      uma hortaliça que plantei em nossa horta.
      Sou homenagem póstuma à estrelas mortas.

      “Perdi a hora de tudo.
      Meu relógio marcou todos os fusos.
      Sou a maçaroca no fuso do mundo.

      “Cada vez mais, torna-se claro
      que sou feito de outra história.
      Não desta, mentirosa e sem memória.

      “Cada vez mais, tenho a certeza
      de que pertenço ao mar bravio,
      pois sou um peixe que não pertence
      a este aquário vil.”

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