terça-feira, 3 de setembro de 2013

Meus ouvidos devocionais



Estado de afasia cibernético é quando se procura canto para ir no universo digital e não se encontra, se sente então um tanto deslocado, incomodado, entediado. Uns vinte anos atrás eu tinha um vídeo de uma apresentação do Yes. Não era bem o Yes, mas uma reunião de seus integrantes da formação clássica e soberba de seus melhores álbuns; era o Wakeman, o Howe, o Brufford, o Squire e o Anderson. Um milagre que eu flagrei na tv aberta (acho que era um dos shows de rock que aconteciam sempre com um espanto de gratidão na Bandeirantes, de madrugada, que se alguém vier me dizer que eram frutos de um delírio pessoal eu não estranharia), e, de pronto, com as mãos trêmulas de reverência, enfiei um VHS no vídeo-cassete e gravei. Assisti a esse vídeo infinitas vezes. Começa com solos de cada um dos integrantes: Wakeman faz um improviso belíssimo que me relegou a anos de procura por toda a sua discografia e, mesmo no regalo da época do download, nunca fui capaz de achar; depois entra esse ser humano fantástico pelo qual eu tenho amor absoluto, chamado Steve Howe, improvisando e tocando a medieval Mood for a day; depois vem Anderson cantando à capela e o culto se prolonga por estágios progressivos de arrebatamento. Daí que passei bom tempo atrás dos álbuns solos de Steve Howe. Havia uma loja de cds importados, cujos preços eram os olhos da cara, na capital onde eu morava, na qual encomendei boa parte de minha coleção do Tull, mais uns Vangelis e Van der Graaf e Coltrane. Tal loja se chamava Woodstock e hoje é uma lenda saudosista, em que direto encontro com ex-clientes em pubs ou eventos culturais que se lembram plenamente do dono, um cara antipático de cara amarrada que era uma versão menos bexiguenta do Fausto Fawcett, e seu serviçal gordinho, meio calvo e de óculos de nerd que não vingou, que vivia às turras silenciosas com o chefe e adorava The Carpenters. Pois lá, nos catálogos impressos buscados de uma incipiente internet, não havia nenhum Howe solo para a venda. Passei anos sonhando como seriam maravilhosos os discos solos do Howe, ouvir um trabalho independente em que ele poderia tocar sua guitarra medieval sem qualquer limite. Daí veio o download e essa coisa toda, eu baixei tudo que havia para baixar, em todos os sentidos e contra-sentidos, e só neste fim de semana, como num estalo, me recordei do desejo pelo Howe. Já uso a net apenas por um costume inercial, pois nela não há nada que me motive mais. Acendo a tela e só vejo um tédio descomunal com o qual tenho que me haver para queimar as horas de sobra de tudo aquilo que eu realmente gosto e me ocupa. Foi um duplo entusiasmo ir atrás do Howe. O tempo parece ter fechado para meus amigos cibernéticos, ou conhecidos, ou colegas distantes de solidão, ou seja o que for. Vejo reações de tristeza e distanciamento, deixando a alegria em suspenso, uma alegria que parece ser de outra época. Parece que também para as amizades virtuais o tempo escoa e tudo vira uma saudade metafísica, da qual não prestamos muita atenção para ela não nos devastar. Assim como na infância, na juventude, a internet tem seus fantasmas, e o que era frescor e leveza se tornam sombras da velhice, definhamento. Me lembro que há três anos haviam discussões febris no site do Milton Ribeiro; lembro que passei um dia inteiro esperando a resposta do Marcos Nunes a uma das minhas provocações que iria tirá-lo do sério, e de noite, na faculdade de história, eu estava bêbado igual a uma mula (é como se costuma dizer, apesar de nunca ter visto uma mula bêbada), tendo bebido 4 doses de vodka, e acessei o computador da faculdade e vi lá o extenso e enraivecido texto de resposta do Nunes, que me fazia rir alto e atrair olhares dos ocupantes dos computadores laterais, e eu o respondi algo longo e despropositado, trôpego e tolo. Não sei o que estou a dizer. Mas, nessas próximas duas semanas, vamos aqui, eu e as pessoas que eu amo, passarmos por momentos delicados, não muito confortáveis. Sei que tem um amigo que está a passar por problema parecido, conforme me comunicou por e-mail_ um amigo do qual me sinto próximo, mas que nunca vi, que modernidade de afabilidade sintética a nossa. O Milton, que me desculpe dizer isso aqui, passa por mais um divórcio, conforme o "solteiro" escrito lá no facebook dele. A Rachel e o Marcos puseram um fim em seu blog. Será que a parte mais insuspeita de humanidade das redes sociais é essa de que, apesar dos murais de sorrisos eternos e de um cotidiano de pretensa perfeição estética, os mesmos sofrimentos continuam a acontecer, imoláveis, marciais, sem pompas ou considerações se você "compartilhou" a foto, o mesmo destino segue seu curso, indiferente às tentativas de eufemização das telinhas coloridas? E nós aqui, no mesmo desamparo, no mesmo primarismo desesperado para achar um atenuante: não agora, não hoje, que dure mais a impressão de juventude, de não-importância, de leviandade.

E como diz determinado escritor, a música tocada por Howe aqui me alivia e me priva, por um momento, dessas considerações.

2 comentários:

  1. Já escutei um álbum de Howe há muito tempo. Não gostei. Esse aí eu não conheço. Gosto muito do Yes. Está entre minhas dez preferidas do gênero. Para mim, eles possuem pelo menos quatro obras impecáveis: Close to the Edge, Fragile, Relayer e The Yes Album.

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    1. Meu preferido do Yes é o mais instável deles, o Tales from topographic oceans, que neste álbum o Howe faz um espécie de medley com os melhores momentos. Ainda não ouvi os outros dele (há um em homenagem ao Dylan!!), mas este aqui é incrível.

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