sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Azulejos




Não tenho a inteligência funcional que fez ricos alguns integrantes da minha família. Sou um completo estúpido em relações publicas, a ponto de não transmitir muito entusiasmo no cumprimento aos vizinhos. Não sei parar de frente ao portão e ficar alguns minutos na troca de conversa funcional cujo propósito não é o conteúdo do que se diz em si, mas o som da fala preenchendo um tempo contábil de cordialidade para que no natal se tenha o nome lembrado na oração junto à mesa da ceia, ou para ser avisado para prender o cachorro e recolher as crianças no quarto porque um ouriço-cacheiro fora visto passando pela rua, ou para dar o número do telefone à moça de voz anasalada do crediário e ela possa ouvir pelo outro lado que somos gente de boa índole e polidos de qualquer extravagância, nunca tendo sido flagrados andando ao lado do muro olhando os pássaros ou contando as nuvens, ou parando no meio dos gestos marciais vespertinos para falarmos em como Albenondes fez mal em não levar Lucinda para um passeio na carruagem do conde de Wallenberg; enfim tão normais quanto esse homem dócil que certo dia a polícia resolve cavar a terra dos fundos de sua casa e encontra enterrados 37 cadáveres de mulheres que outrora todas tinham os cabelos curtos, na faixa de 27 anos, ascensoristas por temperamento e adeptas do uso de maquiagem facial indelével. Nunca ficarei rico por esses meios e tampouco me elegerei para a Câmara Municipal.

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A impressão de que estava ficando louco me tomava conta quando era mais jovem. Era algo perturbador: eu achava que fosse implodir e uma apreensão da verdade não permitiria mais que eu continuasse vivo. Aos 17 tive uma crise. Dizem que a coisa não vem de uma vez, mas vai se criando. De súbito o tecido estendido ao máximo se parte e tudo nos cai em cima. O cérebro não apaga a coisa com a tarja de Censurado por Questões de Sanidade, como faz com acidentes físicos ( minha mãe nunca se lembra das 17 horas entre o traumatismo craniano e a primeira fase da recuperação); é como se o cérebro quisesse um porta-retrato de sua maturação radical por inteiro, e o cérebro é o cérebro fazer o quê. Estava sentado no banco de uma praça, à noite, o avião que estacionaram no lugar da fonte, em memória a um general esquecido ou a alguma virtude de derrota de guerra, pressagiando a vertigem das superposições significativas, e me veio uma imensa lucidez, um instante em que todos os ornamentos sumiram e só ficara eu e um infinito vazio contra o qual não se erguia nada, dentro do qual nenhuma sombra ou luz se enunciava, uma espécie de plenipotência do átomo que não se deixava questionar ou transcender. Uma iluminação do avesso de que eu era matéria orgânica perecível, e só. Durou, creio, uns cinco minutos, mais eu não aguentaria. Quando foi embora o foi por inteiro, um ruflar de asas em que não sobrara uma pena para mostrar como prova. Só a marca em baixo relevo da lembrança, como a impressão que a radiação extrema desenha no chão, contornando a forma do corpo evaporado.

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Conheci depois uma moça que viveu 7 meses nesse inferno. Era amarrada na cama pelos pais, nos primeiros meses, e monitorada sem trégua obedecendo-se a regra severa de não se deixar nenhum objeto perfurante por perto, nenhum cadarço, comprimidos, trancando-a durante o dia e se sentando ao lado da cama à noite, ouvindo seu respirar de animal ferrenhamente obcecado  pela fuga, seus olhos atentos que apareciam vagarosamente no escuro por sobre o travesseiro, solenemente planejadores. Os pais não aceitavam visitas; a casa, naquele descuido em que se deixa levar pelo desvelo, foi ficando cheia de sombras e silêncio, de forma que as pessoas de fora se questionavam se isso não agravava a situação da enferma, mas os pais sabiam que a depressão dela atingira um nível de auto-gerência tão profundo, que aspectos de fora não lhe significavam nada. Era uma colega de faculdade e uma noite os pais permitiram que nós entrássemos para vê-la, talvez isso lhe fizesse bem, ver os antigos amigos.  Era uma moça realmente linda, com traços exóticos indianos, apesar de não ter nenhum ascendente oriental conhecido. Eu brincara cortejá-la certa vez, mas tornamo-nos mesmo era amigos. Ela estava de camisola, sentada atravessada na cama, com as costas apoiadas contra a parede. Tinha um ar coloquial demais para ser alvo de um experimento psicológico, de maneiras que caímos na leviandade de que nosso humor despudorado conseguiria fazer o que os médico falharam. Ela não era receptiva a nenhuma de nossas brincadeiras, estava além de qualquer contato, não se zangava e não tinha auto-crítica. Utilizando o espaço da fala destinado aos atos sociais de como vai e como foi o seu dia, nos comunicou que iria cortar os pulsos. Isso para ela não tinha nenhuma importância. Ela se recuperou. Casou-se com um fazendeiro. Tem hoje, o que se chama de uma vida normal. Na verdade me pareceu que ela nunca se curara, mas atingira um estágio adaptativo de encenação persistente mas pouco talentoso. Percebia-se a tendência de seus olhos para a dispersão. Seu marido era obtuso o suficiente para achar que uma mulher colada à megalomania financeira era assim mesmo, uma boneca de carne da qual não é cavalheiresco exigir participação efetiva na realidade. Como naquele pesadelo em que o sonhador vai saindo de um quarto para outros infinitos quartos exteriores até chegar ao último que lhe possibilitará acordar incólume, ela parecia ter sido desperta antes de completada a jornada, e ficado confinada numa zona intermediária para sempre.

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A foto mais memorável de Robert Capa, entre as tantas que fez em sua incursão com John Steinbeck à União Soviética, foi apreendida pelos guardas do partido. Mostrava a menina louca de menos de 8 anos que morava sozinha nos escombros de uma rua bombardeada. Acostumara-se a viver como um animal, e em determinadas horas podia ser vista saindo do meio das lajes destruídas, com seu único vestido esfarrapado, seus pés descalços imundos, para pegar o pouco de comida que as pessoas sacrificavam de seus já minguados orçamentos para alimentá-la. Na verdade não era fácil vê-la. Mas a câmera paciente de Capa conseguiu flagrá-la em sua pressa arredia, em suas feições consonantais. A foto se perdeu para sempre. Consigo imaginar seus prováveis ângulos, a luz na qual foi tirada, a plasticidade do cenário em preto-e-branco ao fundo, mas  nunca consegui imaginar a menina. Quando tento, me vem apenas os modelos de Sebastião Salgado, ou uma criança feliz, com ambos os pais, selecionada num teste de estúdio. Uma representação de uma grandiosidade dramática falsa e previsível que sei que ela jamais teve.

11 comentários:

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    1. Isso aqui eu postei há dois anos, e já havia me esquecido dele. Aqueeelas redações? Puxavam por uma outra ingenuidade, afinal eu tinha 17 anos.

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  2. Sabia que não me era estranho, achei que eu estava ficando louco. Continua muito bom.

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    1. Grato, Matheus.

      Uma perguntinha: qual Houellebecq (trabalheira copiar esse nome do Google!)você recomenda dos que leu? Estou propenso a comprar Submundo, do DeLilo, e Cavalos de Salamina do Javier Cercas, e levar de quebra o francês.

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    2. Começa pelo Extensão do Domínio da Luta mesmo. É curtinho, mas de uma levada cheia de ironia e tristeza impressionantes.

      Tô ainda pensando aqui se tu vais odiar ou amar Houellebecq (pode ser trabalhoso escrever, mas eu o invejo: inventou um sobrenome do caralho), pois ninguém fica indiferente. Já tenho uma ideia, pelo que escreveste aqui e ali.

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    3. - Tu és visto como um niilista nos teus livros.
      - Não, eu não acho.
      - Os teus personagens são errantes, meio perdidos, fracassados.
      - Ah, bom!?
      - Tu não achas?
      - Enfim...Isso não quer dizer que eu não sou romântico. Sem dúvida, eu descrevo, em geral, fracassados. Sempre existe algo em relação a que eles fracassem. Não se pode dizer que lhes falte uma ideia da felicidade. Nos meus livros não há personagens sem um objetivo aceitável.
      (...)
      - Eu já li que tu és o escritor mais niilista a literatura francesa contemporânea.
      - É um pouco irritante isso, pois se dá a essa palavra um sentido exagerado. No começo, os niilistas colocavam bombas, na Rússia, provocavam o caos...
      - Tu colocas bombas e provocas o caos...
      - Não.
      - Sim.
      - Não acho.
      - Os teus livros são bombas e tu semeaste a confusão na cultura francesa...como um terremoto.
      - Sim, mas tenho um efeito positivo, construtor.
      - Qual?
      - Sei lá. fiz discípulos, desempenhei o papel de um reconstrutor. Eu nada destruí daquilo que já não tivesse deixado de existir. É chocante que me digam isso, pois em muitos países eu sou visto como um fator de renascimento da literatura francesa, alguém que fez surgir algo novo, nada a ver com niilista.
      - Concordo, tu és o renascimento da literatura francesa, que estava morta e enterrada. Estás sozinho.
      - Bem, talvez, mas não posso ser rotulado de niilista.
      - Isso te irrita?
      - Sim, pois, francamente, isso não se aplica a mim.


      - Eu nunca gostei muito de Céline. Acho que como romancista ele regrediu sempre depois de "Viagem ao fim da noite" e que o seu estilo, do qual se orgulhava tanto, transformou-se aos poucos em tiques irritantes. Nesse sentido, ele só se recuperou nos panfletos antissemitas, o que não surpreende, pois o estilo panfletário era o mais adequado para sua alma maldosa e ressentida. (...) Céline, na realidade, criou uma espécie de música, mas uma música qualquer, alguma coisa entre o jazz e a canção popular francesa do começo do século.

      Trechos do livro "Um escritor no fim do mundo (viagem com Michel Houellebecq à Patagônia)", do Juremir Machado da Silva, quem traduziu os dois primeiros livros dele. Tem partes muito boas, sobre literatura, música, e até teses sobre pinguins e lobos marinhos. Ah, adivinha qual o livro favorito do francês? É de um alemão...

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    4. Na verdade são poucos os escritores de que não gosto, Matheus. Há tempos estou pretendendo ler o Houellebecq, e seus comentários e excertos aqui me instigaram mais. Até porque quero ver em que grau esse niilismo tão propalado do francês se assenta com a literatura atual, o que ele pode oferecer de novo em um campo já tão excepcionalmente explorado por gente como Céline e Bernhard_ e mesmo, em nível menor, por Sartre.

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  3. QUANDO FOR
    by Ramiro Conceição
    .
    .
    Quando cego, surdo e mudo.
    Quando for…definitivamente.

    Quando sem qualquer perfume.
    Quando tocar…sequer se pode.

    Que fique a semeadura deixada
    à beira de uma estrada do nada…

    Sempre o verde ramo nasce cedo
    sob uma lamparina…: sem medo!

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  4. Charlles, li recentemente o Soldados de Salamina, e realmente é interessante, mas recomendo muito mais o Nove Noites, de Bernardo Carvalho, que segue um caminho parecido (ao menos para mim), porém com mais vigor narrativo. Na verdade, recomendo que leia ambos e tire suas próprias conclusões. Ah, se for folhear o livro por aí, não se deixe enganar pelo início um tanto duvidoso do Carvalho.

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