quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O Sonho de Thomas Mann



As fotos e ilustrações dos livros de Sebald são um misto de quietos documentos sobre familiaridades alheias e um lirismo necrológico nostálgico. As fotos em seus livros, desde a tríade de ficção ao ensaio sobre guerra aérea e literatura, são aproximações confortáveis e opressivas de um reino dos mortos particular, que provocam a mesma sensação de proibição a segredos dos álbuns de família vistos sem permissão. É como se esses livros, no que tem de prosa intimista, oferecessem também algo da casa assombrada à noite em que o leitor transformado em ladrão de memórias folheia os antigos registros da genealogia de seus proprietários. Os editores futuros de Sebald devem ter a preocupação de manter o objeto físico de seus livros com um acentuado tom de coisa velha empoeirada, para condizer o fenótipo estético à quase indevassável solidão que se transmite do interior das páginas, uma aquisição distraída da estante de sebos em antigas cidades estrangeiras nas quais se está lá de passagem e sempre na condição de forasteiro, mesmo que as capas coloridas do mercado editorial moderno desvirtuem sua falta de ambição em não ser outra coisa que o recolhedor e tradicional livro para o qual apraz ter apenas as negras, silenciosas e mornas capas duras. Afinal, quem se prontificará a ler Sebald senão o Leitor ancestral para quem qualquer artifício que não o da leitura pura é um adendo dispensável?

Os livros ilustrados de Sebald causam essa impressão de visitante não convidado, de caderno rascunhado com memórias achado no espólio de um morto a quem ninguém conhece e os vizinhos simulam recordar difusamente, cada desvão formado pelas folhas amarelecidas ocupado por fotografias de generais com espadas em prumo de frente ao espelho, atores mambembes flagrados na atuação de desconhecidas adaptações de Shakespeare, coisas desvanecidas pelo preto e branco fantasmagórico do tempo, triviais mastros de embarcações, ruas comerciais de vilas indeterminadas, bilhetes de trem, embalagens de fumo, mapas de terras que parecem não ser da geografia desse mundo, páginas retiradas de agendas onde se rabiscou uma data, fotos de cemitérios aldeões, manchetes de jornais do início do século passado. Quem lê Sebald é assaltado pela impressão fantástica de que sua morte foi o que mais caiu bem para perpetuar o assombro de sua linguagem vesuvial que tem tanto de prosaica na descrição de saletas de hotéis embebidos pelo sol desmaiado da tarde, quanto de uma apreensão atemporal da passagem efêmera do homem pela existência que tem uma paradoxal característica de permanência. Isso tudo forma o relicário de intensa idiossincrasia do autor que não precisa ser compreendido por mais ninguém, mas que uma vez oferecido à prensa a aos olhos intrusos, passa a ter uma insuspeita força de expressão, assim como o caderno de rascunho quando confrontado com a pesquisa da vida do autor incógnito passa a elucidar sobre seus refúgios de verdadeira sensibilidade e humanidade desnuda.

Vila-Matas dedica uma página de O Mal de Montano à notícia impactante da morte de Sebald. Diante a cavalgada vertiginosa dos que vão desaparecendo deste mundo, Vila-Matas se mostra desamparado por essa ruptura súbita, esse acréscimo ao exército de mortos que deixaram de herança uma visão multitudinária e rica da história, longe dos subterfúgios do entretenimento descerebrado e sem compromisso dos tantos que ficam e proliferam a morte da alta literatura e da arte superior. Vila-Matas lamenta a pobreza cada vez mais expansiva que o desaparecimento de Sebald promove, o que espontaneamente casa com harmonia ao seu tema da afasia voluntária da escrita. Sebald, assim como a classe de célebres septuagenários cujo fechamento assolará o mundo de uma orfandade de criação transcendente afundando tudo na burrice e dislexia do pensamento (Nooteboom, Kertézs, Roth, Pynchon, Magris), foi um dos que realizou o sonho de Thomas Mann, Marx lendo Hölderlin (como escreveu Magris), a conciliação entre a prosa do mundo e a poesia do coração.

3 comentários:

  1. MEIO DE VIDA
    by Hölderlin
    .
    .
    Com peras amarelas
    E repleta de rosas silvestres
    A terra estende-se por cima do lago,
    Vós graciosos cisnes!
    E embriagados de beijos
    Molhais a cabeça
    Na sagrada e sóbria água.

    Pobre de mim! onde irei buscar
    Quando for Inverno, as flores e
    Onde o brilho do Sol
    E as sombras da terra?

    Frios e mudos,
    os muros erguem-se
    ao vento:
    as bandeiras tilintam.

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  2. Estou lendo Enquanto Agonizo e, devo dizer, estava achando tudo meio chato, irritante, aquele troca-troca de personagens, pensamentos e falas. Porém, por volta da página 70, não sei exatamente em qual frase ou parágrafo, meu humor e minha expectativa mudaram subitamente, passei a agarrar o livreto com mais força, a ansiar pelo cortejo da velha encaixotada. Não sei se deveria ter seguido teu conselho, Charlles, em começar Faulkner com Luz em Agosto, mas já que comecei com esse (só agora!) vou até o fim. Acho que senti as diferenças de estilos depois de O Náufrago, do Bernhard (como se fala? Eu falo Bernard, como em inglês, mas já ouvi gente mandando um Bérnhd) e Os Duelistas, do Conrad.

    Hoje, 3 de janeiro de 2013, proibi-me de comprar livros até o ano que vem. Ano passado abusei² e ainda achei algumas horas atrás Arquipélago Gulag inteirinho por preço camarada, com uma pilha aguardando a leitura. Chega. Isso é uma doença...

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  3. Matheus, isso é típico de Faulkner. Quando o romance nos aceita, (pode demorar), mas aí é tiro e queda.

    Eu me fiz essa promessa e a quebrei inúmeras vezes.

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