sábado, 26 de janeiro de 2013

Lendo Submundo, de Don Delillo


Submundo, de Don Delillo, sempre me pareceu um desses livros misteriosos, cobertos de grandeza, cultuado por muitas pessoas, e quando chegou até minhas mãos e iniciei a leitura, o estranhamento continuou até bem além da página 200. Via-o em sebos, lia sobre ele em sites e revistas, e ficava a impressão de um totem meio sagrado e talvez um tanto excessivamente sério que inadvertidamente mais cedo ou mais tarde eu teria que enfrentar. Encontrei-o barato em um sebo, um terço do preço da livraria, mas não o comprei; namorei-o por dois dias em que estava na capital, e o deixei lá. Conheci a prosa do autor lendo Cosmópolis e me convenci que o que diziam dele era coisa séria. O cara tem um domínio da narrativa e uma aptidão em criar frases antológicas que me recorda a definição sobre Elis Regina que um dia ouvi de um amigo: "ela é genial pois canta soberbamente e sem fazer esforço como se estivesse costurando um xale". Esse amigo me apontava as partes mais dramáticas de Como Nossos Pais, em que qualquer outro cantor avermelharia a tez e lacrimejaria os olhos, e dizia: "Vê? Ela não muda uma vírgula de sua tranquilidade interior. Corresponde a fazer um movimento dos mais prosaicos com a agulha". E isso parece acontecer com Delillo, estando ele escondendo ou não horas exaustivas de boa lapidação: sua escrita transmite um imediatismo oral, uma reação instantânea altamente concentrada diante todas as emanações sensoriais que o mundo desperta em seus personagens, de modo que consegue criar algo que ainda seja novo no universo da escrita, uma voz cinestésica que registra aflitivamente a parte mais aterrorizante de um subconsciente da espécie e da história, soando como se alcançasse essas zonas etéreas com muita facilidade. 

As primeiras páginas de Submundo, por exemplo, são de tirar o fôlego. O leitor acostumado à literatura americana espera ler uma continuidade da prosa de Philip Roth e Thomas Pynchon, no que equivale a uma identificação da tradição dos romances caudalosos e suas fontes clássicas imediatamente reconhecíveis nas influências recicladas nas letras daquele país ao longo de todo o século passado, mas se depara com algo desconcertantemente diferente. Li sobre a aproximação de Submundo com O Arco-Íris da Gravidade, mas no meu manejo do romance de Delillo não achei muitos pontos substanciais que justifique tal comparação. Se Bellow pegava o romance de ideias da tradição de Mann e o recriava com um ânimo urbano ágil, que avizinhava-se brilhantemente das vertentes contemporâneas das novas expressões das letras (lembro de Coetzee comparando Augie March a histórias em quadrinhos), Delillo dispensa a filosofia e a erudição como são usadas pelos seus conterrâneos para compor um espécie de romance neurológico, como se ligasse o leitor, assim que este abre a página, à máquina de arreganhamento das pálpebras a que submetem Alexander DeLarge no filme Laranja Mecânica. Por isso o romance chega à página 200 ainda cheio de espanto e estranhamento, ainda sem que se saiba em qual momento se levará a estocada que fará que toda a compreensão da mensagem de Delillo surja na mente surpreendida do leitor; o leitor espera e sabe que isso vai acontecer a qualquer momento, de modos que mantêm uma relação de desconfiança e de passos cautelosos à medida que avança na leitura. Sabe que assim que isso acontecer, as chances de total apaixonamento pelo livro se farão inevitáveis. 

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