Eu sou um desses leitores que acreditam existirem traduções tão boas e que não devem nada às obras em seus idiomas originais. Acredito que uma tradução exemplar faz mais bem ao leitor, no que tem de fluidez das nuances da língua para a qual foi convertida e à percepção da riqueza de pensamento e estilo sem as obstruções de ritmo de uma língua alheia, do que a obra em seu idioma original. Em países da língua inglesa há mesmo um respeito tão grande pelas traduções que as melhores delas são apontadas pelo nome do tradutor, o que torna uma espécie de grife em que não estabelece a traição da co-autoria, mas a excelência reconhecida do tradutor ter sido um canalizador fiel para o obra legítima. Assim temos o Quixote de Edith Grossman, o Proust de Lydia Davis, o A Montanha Mágica de John Woods. Há um ensaio primoroso de Borges sobre as três traduções inglesas clássicas de As Mil e Um Noites, e aqui o argentino faz uma ponte sobre as gritantes diferenças entre elas, assinalando que mesmo a corrupção da norma, em casos célebres e esparsos, acaba por conduzir espontaneamente ao cânone; afinal de contas_ o leitor é levado a concluir_, Borges, assim como a grande maioria dos que foram mudados para sempre com as narrativas de Sherazade e que desconhecem por completo os idiomas árabes, só as leu através de traduções.
Há também casos em que escritores notáveis reafirmam suas predileções pelas obras traduzidas. Numa famosa passagem de Extinção, Thomas Bernhard faz seu alter-ego ousadamente defender traduções de vários exemplares da grande literatura, dizendo que o inglês, ou o francês, deram uma vida insuspeita e um frescor adstringente ao que o idioma alemão obstruía com seu peso e sua seriedade. É fato também que Garcia Marquez em certa entrevista reportou que a versão em inglês de Cem Anos de Solidão transmite uma beleza clássica e uma presciência de perenidade que não é imediatamente tão visível no romance em espanhol. Há coisa de um ano, trocando emails com um amigo que eu só conheço pelas plagas virtuais, tal amigo me deixou espantado ao me dizer que um de seus professores do curso de letras rechaçou duramente sua iniciativa de escrever uma tese sobre Thomas Mann. Ou ele se prontificava a aprender a língua alemã, disse-lhe esse professor, situação difícil para as suas condições financeiras e a distância que estava de uma escola de idiomas eficiente, ou ele se restringia à sua insignificância técnica e se calava. O tipo de estupidez da qual só se pode adotar uma reação histriônica pelo pedantismo ególatra e ignorância de tal professor. Se seguíssemos essa premissa, não teríamos um dos maiores e mais extraordinários estudos sobre Tolstói e Dostoiévski publicado no século passado, pois George Steiner, assumidamente, disse nunca ter lido esses autores no original para cair sobre a obra deles, já que desconhecia o idioma russo. Não teríamos, simplesmente, parte considerável da ensaística e da ficção que hoje amamos e consideramos indispensável, pois seus promotores escreveram, foram influenciados, divagaram, sobre pessoas que conheciam profundamente, mas que se as encontrassem pela frente mal saberiam lhes dizer bom dia em sua língua.
Aliás, os russos foram um dilema de cem anos para os leitores brasileiros, em especial Dostoiévski. Os tradutores nacionais tem tratado criminosamente Dostoiévski. Antes da verdadeira revolução do universo da leitura acontecido no início desse século, com as aprimoradas e excelentes traduções feitas diretamente do russo da obra de Dostoiévski pela Editora 34 (que contratou, principalmente, Paulo Bezerra para tal missão), o que se via nas edições de Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, Noites Brancas e A Casa dos Mortos, é de fazer tremer qualquer leitor aficionado e desmontar por completo a tese sobre o veículo produtivo da tradução exposta acima. Ninguém nunca leu Dostoiévski no Brasil antes do lançamento de Crime e Castigo da Editora 34, em 2001, pode-se afirmar radicalmente. Parece que o idioma russo era uma espécie de código marciano inexpugnavelmente intrincado para os tradutores nacionais, que nunca chegaram a se importar em aprendê-lo ou a buscar sequer uma aproximação mais intimista das cercanias dele. Eles escolheram percorrer pelo caminho mais fácil e sociologicamente revelador, através das traduções francesas, que mesmo naquela época pregressa eram já consideradas péssimas e cheias de maneirismos pomposos; mas mesmo assim optaram pelo francês por ser o idioma das elites (!). Depois que li Crime e Castigo traduzido do russo, comparei o texto de Bezerra com um Crime e Castigo antigo que tenho aqui. Cheguei à conclusão que é por isso que muita gente acha Dostoiévski um escritor de estilo medíocre, pois os dois livros são absurdamente diferentes. O francês mostra um escritor quadrado, cheio de adverbiações, com uma linguagem que pretende não chegar a seu objetivo mas ficar dando voltas em torno de um núcleo escritorial. Nada parecido há na tradução do russo, em que mostra um Dostoiévski que solta chispas elétricas em cada instante, cheio de coloquialismos e com ouvido maravilhosamente apurado para o registro urbano. A versão do francês comete o adulteramento inimaginável de cortar o que Dostoiévski tem de mais revolucionário: o caos e a fluidez de sua escrita.
Nestes últimos meses fui pego em uma de minhas ocasionais paranóias de leitor. Li três versões diferentes de um dos maiores livros de Dostoiévski. Trata-se daquele que fala sobre o período em que o autor esteve preso em Omsk, na Sibéria. Não falo o título de imediato não por preciosismos, mas porque já na capa aparece o problema: qual o título verdadeiro do romance? Os três que tenho oferecem títulos diferentes: Recordações da Casa dos Mortos, Memórias da Casa dos Mortos, e A Casa dos Mortos. Li, primeiro, o da Ediouro, um voluminho sem capa e sem a folha que cita o nome do tradutor. Insatisfeito com a suspeita gritante de que se tratava de uma das traduções adulteradas, procurei pela net se havia um trabalho do Bezerra pela Editora 34. Ainda não. Lembrei que a L&PM também se lançou à tradução do russo, publicando algumas das ficções menores de Dostoiévski e Tolstói (ainda que o Crime e Castigo deles seja a reedição de uma das velhas recópias francesas). Comprei um e me pus a ler. Só que o binômio dos tradutores não me deixou seguro, já que um deles é o Oscar Mendes. (Parece coisa de larápio, mas nenhuma dessas edições cita a fonte da tradução.) Mas o estilo escorregadio, o empacamento, e mesmo as absurdas diferenças na história entre as duas versões me deixou desconsolado. Um exemplo: há uma sopa de couve servida para os detentos, em que no livro da Ediouro o autor diz ser maravilhosa e, junto com os pãezinhos, um reconhecimento popular da cozinha do presídio; já na versão da L&PM, o autor diz que a sopa era horrível, de cheiro pútrido e cheio de baratas. Isso é só um exemplo; há vários, inumeráveis. O defeito maior é no que fazem dos diálogos. Os diálogos!, que são um dos pontos da grandeza do Dostô!
Procurei pela net qual a melhor tradução de A Casa dos Mortos do país. Informaram-me que só há uma vertida do russo, a da editora Nova Alexandria. Fui à Livraria Cultura. O preço do livro é salgado, mas eu estava em um ataque de compulsão. Ele me foi entregue em casa, um livro belíssimo, capa dura, muito bem editado, e com um adendo da indispensável carta que Dostoiévski escreveu a seu irmão assim que cumpriu sua pena. Nome do tradutor: Nicolau S. Peticov. Aí sim! A diferença da qualidade da prosa é impactante. Tudo ali é belo, intenso, honesto, visceral. Reconheci que quem escrevia era o mesmo autor magnífico de Os Demônios. A cena da sopa de couve? A sopa era horrível mesmo e coalhada de baratas. Mas mesmo aqui neste livro encontrei uma desvirtuação que corrobora uma certa tendência dos tradutores, mesmo os fieis, a fazerem um complô contra o autor russo. É no início do capítulo 3, intitulado Primeiras Impressões (II), em que é apresentado um velho religioso muito bom e pacífico, único o qual os demais presos confiam tanto que lhe entregam dinheiro para ser escondido da revista dos guardas. Pois bem, nas outras traduções informa-se que tal velho vem de uma aldeia chamada Staradúbovo, coisa que não é sequer mencionada na tradução da Nova Alexandria. Nicolau S. Peticov simplesmente mutila e suprime isso de seu texto. E como sei que ao menos nisto as outras edições estão certas? Por aquela frase popular de que toda mentira tem perna curta: muitas páginas adiante Dostoiévski volta a citar o velho, e aqui Peticov esquece de seu crime singelo e traduz: "entre eles o velho originário de Starobud" (p. 77).
Nestes últimos meses fui pego em uma de minhas ocasionais paranóias de leitor. Li três versões diferentes de um dos maiores livros de Dostoiévski. Trata-se daquele que fala sobre o período em que o autor esteve preso em Omsk, na Sibéria. Não falo o título de imediato não por preciosismos, mas porque já na capa aparece o problema: qual o título verdadeiro do romance? Os três que tenho oferecem títulos diferentes: Recordações da Casa dos Mortos, Memórias da Casa dos Mortos, e A Casa dos Mortos. Li, primeiro, o da Ediouro, um voluminho sem capa e sem a folha que cita o nome do tradutor. Insatisfeito com a suspeita gritante de que se tratava de uma das traduções adulteradas, procurei pela net se havia um trabalho do Bezerra pela Editora 34. Ainda não. Lembrei que a L&PM também se lançou à tradução do russo, publicando algumas das ficções menores de Dostoiévski e Tolstói (ainda que o Crime e Castigo deles seja a reedição de uma das velhas recópias francesas). Comprei um e me pus a ler. Só que o binômio dos tradutores não me deixou seguro, já que um deles é o Oscar Mendes. (Parece coisa de larápio, mas nenhuma dessas edições cita a fonte da tradução.) Mas o estilo escorregadio, o empacamento, e mesmo as absurdas diferenças na história entre as duas versões me deixou desconsolado. Um exemplo: há uma sopa de couve servida para os detentos, em que no livro da Ediouro o autor diz ser maravilhosa e, junto com os pãezinhos, um reconhecimento popular da cozinha do presídio; já na versão da L&PM, o autor diz que a sopa era horrível, de cheiro pútrido e cheio de baratas. Isso é só um exemplo; há vários, inumeráveis. O defeito maior é no que fazem dos diálogos. Os diálogos!, que são um dos pontos da grandeza do Dostô!
Procurei pela net qual a melhor tradução de A Casa dos Mortos do país. Informaram-me que só há uma vertida do russo, a da editora Nova Alexandria. Fui à Livraria Cultura. O preço do livro é salgado, mas eu estava em um ataque de compulsão. Ele me foi entregue em casa, um livro belíssimo, capa dura, muito bem editado, e com um adendo da indispensável carta que Dostoiévski escreveu a seu irmão assim que cumpriu sua pena. Nome do tradutor: Nicolau S. Peticov. Aí sim! A diferença da qualidade da prosa é impactante. Tudo ali é belo, intenso, honesto, visceral. Reconheci que quem escrevia era o mesmo autor magnífico de Os Demônios. A cena da sopa de couve? A sopa era horrível mesmo e coalhada de baratas. Mas mesmo aqui neste livro encontrei uma desvirtuação que corrobora uma certa tendência dos tradutores, mesmo os fieis, a fazerem um complô contra o autor russo. É no início do capítulo 3, intitulado Primeiras Impressões (II), em que é apresentado um velho religioso muito bom e pacífico, único o qual os demais presos confiam tanto que lhe entregam dinheiro para ser escondido da revista dos guardas. Pois bem, nas outras traduções informa-se que tal velho vem de uma aldeia chamada Staradúbovo, coisa que não é sequer mencionada na tradução da Nova Alexandria. Nicolau S. Peticov simplesmente mutila e suprime isso de seu texto. E como sei que ao menos nisto as outras edições estão certas? Por aquela frase popular de que toda mentira tem perna curta: muitas páginas adiante Dostoiévski volta a citar o velho, e aqui Peticov esquece de seu crime singelo e traduz: "entre eles o velho originário de Starobud" (p. 77).

