segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Rabindranath Tagore do Lado de Fora



O padroeiro justificador de todos os péssimos estudantes que espontaneamente se negam a se dobrarem diante a opressão da Escola. Quando criança, miudinho, a pele morena inconveniente nas classes postulantes do Império Britânico, as raquíticas pernas imberbes, os grandes olhos negros repletos de sonhos sem valor para ninguém, acordava de manhã, vestia-se, e com pressa se sentava na cadeira do lado de fora, para longas horas de silêncio diário contemplando o Ganges. Não suportava paredes, lugares fechados, ensimesmamentos; iria aprender sobre a importância das ideias dos países que lhe oprimiam com seus sistemas doutrinários rigorosos anos depois, quando comprovado que os vaticínios sobre seu fracasso falharam, mas não agora que o que mais queria era voltar a seu país, a antiga Índia, as largas alamedas palacianas fora das quais seu povo se reunia indiferente em torno das estátuas de velhos marechais, usurpadores ingleses, mantos e tendas e especiarias, e a nunca silenciada algazarra, e a sua cadeira de volta sobre a qual ficava em sua quase insuportável apreensão da verdade.

Não se formou nos colégios ingleses pelos quais passou, e abandonou o curso de direito. Para cada aluno um método, era sua descoberta sobre o respeito às diferenças individuais. Nada de burros ou mais-que-inteligentes; havia apenas a imposição da régua igualitária mecanizando treinamentos de técnicas para o controle do mundo às custas do definhamento do espírito. Sob a capa da mediocridade em que lhe caíram a palmatória e as notas ruins, crescera a insuspeita estatura de um grande escritor; sob o bullying, ergueu-se um dos mais completos pensadores do mundo moderno. Em Santiniketan construiu sua Universidade de Visva-bharati para os povos, sem paredes. O local de formação espiritual que era a antítese dos sólidos blocos de pedras medievais dos soberbos internatos ingleses. Ali nunca se proliferaria o mito dos terninhos, das gravatas das irmandades, dos salões de acústicas epicêntricas em que esqueletos darwinianos dividiam espaço com caneadas barbas veneráveis. Uma escola sem calabouços e rei Arthur, plana, com várias varandas sob sombras descansadas; um grande playground de jovens, cada qual observados à maneira deles, não à maneira de uma ortodoxia resumidora. Refez ali, com sucesso, o ambiente de sua casa de 12 irmãos, em que liam-se reciprocamente Shakespeare, Shelley, Keats, Browning e os pensadores hindus; onde se estudava hidrostática, urbanismo, filosofia e todo o reformismo que na época servia a se criar a visão humanista da nova Índia aberta ao ocidente. No frontispício estava o famoso lema Yatra Visvam bhavati Eka-nidam ( "Onde o mundo inteiro encontra seu ninho comum"). Ali ele pragmatizava o oriente indiano dos amplos espaços abertos, da falta de desconfiança dos metros quadrados resguardados do ocidente.

Octogenário, escreveu o que para ele devia ser uma de suas acepções testadas, mas para todo o ocidente do entre-guerras era um paradoxo: É necessário muita coisa para se matar um homem. Perdera sua esposa e dois filhos, e em um de uma sucessão de poemas de desespero que escreveu, ouviu e reproduziu nele a seguinte explicação: Estás derramando no vazio da minha ausência a tua fé na verdade de que eu vim! Acreditou com toda a sua potência intelectual naquele absurdo que a Ciência de exigentes absurdos de universos paralelos e infinitos na cabeça de uma agulha rejeita de forma peremptória: a imortalidade da alma. Acreditava também que a alma reencarna-se continuamente até a plenitude. Esses anos vi num sebo um livro com o atestado de capa de que era uma obra psicografada pelo espírito de Rabindranath Tagore. Toquei a capa com os dedos e perguntei calado e sem nenhum pingo de crédito: Será?

Quem sabe em que novas constelações pode-se imaginá-lo, ardoroso como sempre fora por todas as novas e ininterruptas descobertas, olhando com profundo deleite as coisas usualmente tidas como as mais simples e insignificantes?

(Nesta semana, mais precisamente dia 16 de agosto, esse blog faz 2 anos. Pretendo ter tempo para postar um desses retratos de escritores_ e um músico_, a cada dia, como comemoração. Este foi escrito na fila da Caixa Econômica, sentado numa daquelas cadeiras; hora escrevendo num caderninho, hora olhando o número na tela das senhas. Explica-se o primarismo; mas deu-me prazer)

6 comentários:

  1. Não consigo levar a sério a psicanálise por razões análogas: para cada paciente, deve se desenvolver um método particular, com categorias únicas. Se abrimos uma caixa de ferramentas inadequada, como, por exemplo, aquelas ferramentas domésticas, e tentamos com elas consertar um carro, não podemos esperar que dê certo...

    No entanto, não dá mesmo para criar um método de ensino para cada aluno. O que melhor funciona é colocar o material em discussão e filtrar as contribuições de cada aluno para forjar uma discussão coletiva da matéria.

    Dois anos de blog, Charlles. Está aguentando bem isso?

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    1. Acredito que o acompanhamento individual de cada aluno seria o ideal, Rachel, mas isso é utopia em qualquer lugar do mundo.

      Seu blog tem muito mais longevidade que o meu, e vc posta todos os dias, quase religiosamente. Como você aguenta?

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    2. Penso que o coletivo é importante por colocar a dimensão supraindividual da vida humana, que carece de uma sociedade que a mantenha o sujeito, e a ele fornece, além da subsistência, toda a cultura. Nenhum home é uma ilha, não é mesmo?

      Quanto ao blog, eu queria encerrá-lo há muito, e fui demovida, há pouco, pelo Marcos, porque o blog tem cerca de 300 acessos ao dia e pode servir à divulgação de meu trabalho e, pelo jeito e mais importante, do dele, embora ele desteste chamar de "trabalho" os contos, poemas e comentários que faz.

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  2. Muita coisa bonitinha sobre a morte, infinitude, etc.; isso aí é cagaço da morte ou do dentista (medo que você sublima para não parecer um banana na frente da mulher e filhos?)?

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    1. Eu te perdoo mais esta, Marcos. Mas será que Jesus irá te perdoar?

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    2. É claro que vai; na juventude, ele frequentou comigo os mesmos puteiros. Éramos bons camaradas; vociferávamos contra a transcendência e, avessos aos átomos de carbono, lançamos a estratégia de afogá-los em álcool e diluí-los numa solução de cocaína. Nunca mais o vi, coitado; parece que morreu de overexposição.

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