quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Knut Hamsun e a Medalha do Nobel



Entre os vagabundos originais, ele foi o que se deitou sob céus extensos olhando as constelações em suas localizações diferentes dos dois lados do mundo. Foi vagabundo em uma cidade de sua terra natal, a Noruega, que levava o sarcástico nome de Cristiana; foi vagabundo nos Estados Unidos, dividindo seu tempo em empregos esporádicos no campo e na condução de trens.  Aos 90 anos, há muito instalado nos dois extremos da fama, reviveu a vagabundagem em asilos e hospitais psiquiátricos nos quais esteve preso. Essas imensas regiões não exploradas desses recentes países, que ainda não eram o que são hoje, estão em toda a sua obra. O frio adrenérgico acolhedor dos grandes perigos das caças e dos horizontes abertos perpassa todos os seus livros. Não tendo o tempo que queria para a leitura, preencheu o que lhe faltava na escrita de uma série de histórias erráticas que dissolviam-se nas mãos por tanta fragilidade, até que, por fim, transformou a ingenuidade primal em método filosófico seguro. Todos os dramas básicos da existência eram vistos apenas de sua ótica pessoal de auto-didata: a fome, o amor romântico, o refúgio na natureza, a paixão pela terra. Com um toco de lápis e algumas resmas de papel, passava fomes colossais na distante cidade polar onde não tinha abrigo e os cocheiros lhe arremessavam as pontas dos chicotes. Sua concepção de amor era a de lindas mulheres que atiravam ácido nos rostos para que seus amantes mutilados não se sentissem tão feios. Os heróis de seus livros são patriarcas que se apartam em definitivo da civilização corrupta para desbravarem terras inexploradas, e lá darem vazão a filhos e netos bíblicos. Escrevia de seu modo, sem que por essas paixões milenares passassem indignações de classe ou as ortodoxias das lutas sociais: era plenamente independente para buscar o anacronismo numa época em que os demais escritores sepultavam o lirismo.

Quando explodiu a guerra e a Noruega foi invadida, ficou do lado do invasor. Os que liam seus livros_ e eram aos milhões_, já notavam um indício de misoginia inapropriada por ter deixado os grandes centros culturais e instalado sua casa na Finlândia. Em pouco tempo foi transformado em vilão, traidor, e apátrida. Quando Hitler morreu, escreveu que partia um guerreiro dos povos, o mais alto grau de humanismo do século. Foram presos, ele e sua segunda esposa. Ela passou três anos trancafiada, até contar os mais comezinhos detalhes da vida de seu marido. Ele, que já era nonagenário, teve a pena comutada em internamento hospitalar pela suprema corte tê-lo decretado demente. No asilo, escreveu memórias surpreendentemente prodigiosas em que contava sobre a rotina dos exames, das conversas molejantes junto aos plátanos do jardim, dos abandonos ao destino de pessoas as quais eram colocadas ali para serem sepultadas em vida por filhos e netos e pela história. Conta-se que a mesma medalha do Nobel ganha pelo reconhecimento de sua obra, que dera a Goebbels, em sinal de sua devoção, ele havia esquecido na noite da outorga do prêmio, no elevador de um hotel de Estocolmo.

6 comentários:

  1. É um caso de uma literatura que sobreviveu melhor ao autor que o autor sobreviveu à própria fama. Ler um livro da Hamsun sem saber de quem se trata é uma satisfação para o leitor, mas lê-lo sabendo das ideias que ele nutria trava a leitura, sobrepõe a ele um olhar critico ampliado. De certa forma, suas "crenças" sepultaram sua literatura, o que é uma pena, sem se tratando, principalmente, de "Fome", que descende dos melhores russos e dá a eles novos detalhes. Uma sorte: ao ler Hamsun, vinte anos atrás, eu ignorava sua filiação nazista. Por isso ele sobreviveu. Caso soubesse, sequer o teria lido. Ele fez por merecer ser descartado pelas gerações seguintes. É preciso algum esforço ou simplesmente a ignorância para superar a condição nazista que o autor manteve até o fim de sua vida, é preciso separar a vida da obra, embora nem sempre seja possível, e muitas vezes seja mesmo impossível.

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    1. "Fome" é uma maravilha de romance. Faz tempo que não leio ou releio Hamsun, mas seus livros sempre me deslumbraram: "Victoria", "Fome", "Pan", "Frutos da Terra".

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  2. Por Drummond ter traduzido Hamsun, fiquei com a fome de ler Fome, e o fiz. Já sabia, por pesquisa, do mal de Hamsun, e ainda assim me foi uma maravilha. O mesmo com o fascista Céline ou Heidegger e sua complicadíssima biografia. Aliás, sobre Céline, lembro de uma delcaração do judeu Philip Roth: algo como "Na França, Céline é meu Proust. Ele é um libertador e eu me sinto chamado por sua voz."

    Na leitura desses "difíceis", precisamos perceber se estamos lendo o livro ou os inúmeros penduricalhos que lhe meteram depois, caso contrário ficamos como na piada idiota mais famosa do Woody Allen, em Um Misterioso Assassinato em Manhattan: "Não consigo ouvir muito Wagner. Fico com vontade de invadir a Polônia".

    Há casos mais graves, como o olhar torto de uma colega de faculdade minha quando percebeu, ficou sabendo, para o seu horror, que eu lia um livro de um alemão dos tempos do nazismo. Qual era o livro? Os Buddenbrooks.

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    1. Correção, que um "percebeu" ficou flutuando: "uma colega de faculdade minha quando ficou sabendo, para o seu horror"

      Encontrei a declaração do Roth: "To tell you the truth, in France, my Proust is Céline! There’s a very great writer. Even if his anti- Semitism made him an abject, intolerable person. To read him, I have to suspend my Jewish conscience, but I do it, because anti-Semitism isn’t at the heart of his books, even Castle to Castle. Céline is a great liberator. I feel called by his voice."

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    2. Bom, é perceptível que eu gosto de escritores malditos. Céline, como você deve saber por um post passado, é um de meus preferidos. Se bem que Hamsun foi bem mais inofensivo que Céline, ou Ezra Pound: era um adorável sonhador que incorreu num risco desnecessário na pior época do século.

      (Essa do Allen não conhecia. Sensacional! Lembrei de um repórter que o perguntou o que pensava da morte, e ele respondendo: "Sou contra".)

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    3. O gosto pelos malditos é uma benção. Do Pound, porém, sei somente o nome, e só por causa dos relatos do Hemingway expatriado.

      O Allen me impressiona com sua capacidade de produzir muito utilizando não o simples, mas o simplório. É sempre reconfortante.

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