domingo, 5 de dezembro de 2010

Outras Cores, de Orhan Pamuk

 Por Charlles Campos


(Originalmente publicado no Sul 21)

É natural na cronologia da literatura que, entremeado ao surgimento dos grandes autores, apareçam aqueles que não são nem grandes nem medianos, que não estão destinados a escrever obras revolucionárias nem a livros totalmente irrelevantes, e cuja perenidade nas letras está ditada não por sua propensão criadora à imortalidade, mas a seu esforço disciplinado e devotado para a preservação da importância da palavra: algo como fazem os investidores financeiros que se esmeram em manter os índices econômicos em equilíbrio até que apareça o gênio que abra as comportas dos megainvestimentos. Orhan Pamuk é uma dessas peças chave que a literatura necessita que, não sendo um grande escritor, seus livros, contudo, estão longe de poderem ser desprezados; que, não sendo o portador da sentença bombástica, o que escreve e fala está, no mais condizível grau de importância, sempre em relevância. E nenhum volume de sua autoria — além do realmente bom Istambul — oferece suas melhores qualidades como narrador, ensaísta, observador da vida prosaica e moderado opositor das forças constituídas da sua Turquia, quanto a recém lançada miscelânea de textos esparsos Outras Cores, Ensaios e Um Conto, pela Companhia das Letras.

Há uma categoria de leitores, entre os quais me incluo, para a qual Outras Cores é destinado. Os leitores que gostam de ler sobre o escritório do autor, os aspectos de sua intimidade, a escrita por detrás da escrita, as besteirinhas poéticas rascunhadas num guardanapo ajuntadas na papelada que vai dar escopo ao volume, e que no final se revelam tão mais substancias quanto a sua produção principal. Esse livro é para aqueles leitores que se regalam com os extras de um DVD, o making of, as cenas excluídas e tais. À diferença de outro livro sobre as atividades e circunstâncias documentais que cerceiam a obra do autor, o O Carvalho e o Bezerro, obra muito popular de Soljenitsin lançada após sua premiação do Nobel, Outras Cores não paira muito sobre as polêmicas políticas suscitadas pelas palavras de Pamuk. Aliás, como passou a ser moda na colisão entre escritore s e autoridades políticas e religiosas de seus Estados da década de 1990 para cá, o que gerou tal polêmica não foi mais que algumas frases proferidas por Pamuk numa entrevista dada à Paris Review (incluída no livro), em que ele denuncia o genocídio armênio perpetrado pelo governo turco, de 1915 a 1917. Afora essa entrevista, há alguns outros pequenos ensaios (a maioria dos textos são muito curtos) em que Pamuk apenas toca no assunto, o que a eficácia da obra de ser um misto de papéis pessoais que não deveriam ser revelados a público acaba por transparecer um autor que está inseguro quanto a se valeu a pena ter se submetido ao inconveniente de responder a um processo por quebra de decência patriótica, apenas por algumas palavras mal pensadas.

Outra confissão, dita como uma espécie de deslize não editado, que a espontaneidade da obra oferece, é a que dá maior intuição da verdadeira tendência de Pamuk a não se meter em temas espinhentos: a de que não se importava por assuntos que não fosse “escrever belos livros”, de que era um perfeito rascunhador a-político, e que só teve uma pré-visão da situação interna da Turquia, quando foi escalado a receber Arthur Miller e Harold Pinter numa visita desses autores a seu país. Foi só desde então que Pamuk desenvolveu “uma persona política muito mais vigorosa do que desejava”. Nesse molde de adepto a uma revelação que Pamuk escreve alguns ensaios não de todo desinteressantes sobre o papel da literatura dos países subdesenvolvidos, condenando (já tardiamente, pois se trata de conversa requentada) a posição de Sartre em dizer que países do terceiro mundo não poderiam perde r tempo com a literatura, devendo-se se preocuparem diuturnamente com a revolução social e política.

Tirando as confissões miúdas de sua vida cotidiana e algumas composições preguiçosas que dão uma sabor de diário em alto estilo (reafirmo: prosaicamente saborosas), as partes mais densas desse livro são os três ensaios vigorosos sobre Dostoiévski, uma resenha identificadora sobre Mario Vargas Llosa, e uma reafirmação de amor por Thomas Bernhard que deixa-nos comovidos todos os outros admiradores desse austríaco.

Tudo revela a organização e disciplina de Pamuk, sua catalogação das próprias palavras com um amor próprio não ofensivo e sem esnobismo (apenas com a real seriedade que um escritor convicto tem de ter). Um escritor de família rica que, seguindo uma tradição dissidente dos filhos que se negam a seguir o caminho do direito internacional e do comércio hereditário, optam por um monastério estético e moral firmemente movido por sua inabalável vontade própria. No caso de Pamuk, a literatura.

8 comentários:

  1. Pior que eu acho o Pamuk, um grande escritor. Eu realmente achei fantástico o modo como ele narra o texto através de várias vozes no "Meu Nome é Vermelho", por sinal eu tou pensando até em comprar uma outra cópia dele para mim, já que a minha eu emprestei e nunca mais voltou.

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  2. Leonardo, uma vez, no blog do Milton, quando discutíamos sobre romancistas católicos, eu disse que achava Chesterton um grande escritor. Vi a cara do Milton, através dos três mil quilômetros que nos separam, fazendo uma careta enquanto desaprovava: "Chesterton!?!?". E há poucas leituras que me agradam mais que os contos policiais onde assassinatos mirabulosos e sequestros da China são solucionados pelo cordato e "cabuloso" Padre Brown. Ou seja, gosto é gosto.

    Mas quando nos propomos a escrever uma resenha crítica, temos que retirar o deslumbramento ou a antipatia excessivos, e fazer algo parecido a um diálogo interno sobre o que a obra analisada realmente tem a nos dizer. Há autores que são deslumbrantes demais, e daí a impossibilidade de manter uma distância correta (por exemplo, em meu caso, escritores como Dostoiévski, Tolstoi, Faulkner...), o que exige um certo critério de procurar uma visão descalibrada do senso comum para interpretar o livro. Há outros cuja repulsa é tão grande que o melhor mesmo é não se falar deles, por exemplo (para mim), o Henry Miller.

    Já Pamuk, li o Neve, o Livro Negro, Istambul, Meu Nome È Vermelho e o citado no post. Acho-o um bom escritor, talvez um muito bom escritor e, em alguns títulos (sobretudo em Meu Nome e Istambul), um ótimo escritor. Mas Neve é insosso de uma maneira que torço para que eu é que o tenha lido apressadamente e esteja enganado (embora eu seja um leitor bastante atento). Todo um livro em que o poeta Ka, apaixonado pela bela Ìpek, fica sem rumo numa aldeia sitiada pela neve, e que morre infeliz no final. Não me convenceu, Pamuk pareceu igualmente errante entre fazer algo ao estilo e Kafka ou do decadentismo romântico dos autores turcos tradicionais. Já o Livro Negro, li e esqueci. Mas Meu Nome é realmente muito bom, com a técnica de polifonia faulkneriana e o nonsense muito bem empregado em dar voz a cores e animais para narrar a história.

    É que há uma tendência em endeusar os autores, pela crítica das revistas, de modos que na verdade não se fala sobre a obra, mas sobre a incontestável qualidade dela por ter sido escrita por um Nobel.

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  3. Em vista da sempre presente ameaça do fundamentalismo Mulçumano, acho importante recauchutar Ataturk (como também repensar a constituição Iraniana do pré-Shah) como solução, reaplicação (im)possível ao problema do Estado Islâmico, malgrado a presente impopularidade dos projetos de Modernidade. Com o perdão da minha total ignorância à obra do Pamuk, sua ensaística joga jabs contra Ataturk?

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  4. Caro Luiz, das 11 páginas em que Pamuk cita Ataturk, registradas no índice remissivo, não se depreende nenhum comentário desabonador. Há um ensaio sobre André Gide, no volume, em que Pamuk analisa a congruência das opinião de Ataturk sobre vestimenta com a visão do escritor do título,o que deixa claro que, assim como Pedro, o Grande, que construiu São Petersburgo para desencalavrar a Rússia de seu reduto oriental e aproxima-la do ocidente, Ataturk teve a mesma intenção após a decretação da República Turca, procurando ocidentalizar os costumes para compensar a falta de oportunidades construtivas da geografia. As vestimentas foi uma delas, no qual o patriarca lançou uma lei em que proibia certas peças de roupa que identificavam demais o povo com o passado histórico.

    Pamuk não chega a incensar Ataturk, mas se aproxima muito. A própria família de Pamuk enriqueceu-se sobremaneira após a República, sob os auspícios do kemalismo. O que Pamuk faz, sutilmente, é, concordando com os progressos ocidentalizantes da Turquia, lamentar com um certo acento nostálgico que as velhas tradições campesinas e as constituições clássicas de sua Istambul, de tempos de outrora, estejam se perdendo sob o trem da modernidade.(cont.)

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  5. A crítica de Pamuk, que levou-o a responder uma ação por "difamação pública", segundo o Artigo 301/1 do Código Penal Turco, começou por uma frase curta proferida ao suíço jornal Der Tages-Anzeiger: "Trinta mil curdos e 1 milhão de armênios foram mortos naquelas terras e ninguém ousa tocar no assunto." O fato denunciado versa sobre o final da dinastia dos "Jovens Turcos", antes, pois, de Ataturk.

    O que lamento é a esquivância de Pamuk em fazer do tema algo realmente relevante. O jornalista da Paris Review não poupa percepção: " Pamuk recusou-se a falar sobre a controvérsia, na esperança que o assunto morresse."

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  6. "O que Pamuk faz, sutilmente, é, concordando com os progressos ocidentalizantes da Turquia, lamentar com um certo acento nostálgico que as velhas tradições campesinas e as constituições clássicas de sua Istambul, de tempos de outrora, estejam se perdendo sob o trem da modernidade."
    Não é de se jogar fora a crítica que a turma pós-colonialista faz ao projeto de Modernidade que se impôs ao Oriente (cf. Talal Asad) e à construção de Oriente que se impôs de fora e a forceps (seu querido Said). Fico curioso agora em saber onde se coloca o Pamuk nisso tudo. Você parece entender que o Pamuk contemporiza com algumas das críticas dos pós-colonialistas. E me lembro inclusive que a crítica literária de influência pós-colonialista gosta muito do Pamuk.
    Viceralmente eu estou com Rushdie na questão do Islam - assim como estou viceralmente com Gianni Vattimo em relação ao Cristianismo. Mas pensando com a cabeça tem que se temperar Rushdie com umas pitadas de Asad, Said e, agora curioso, Pamuk...

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  7. Sobre a crítica pós-colonialista, principalmente no Oriente Médio, Said é imbatível. "Cultura e Imperialismo" é uma das minhas grandes felicidades enquanto leitor (achei-o depois de anos de procura, na Estante Virtual, pelo olho da cara, já que a Cia das Letras por uma falta de visão comercial incrível não reedita um livro procuradíssimo). Nesse livro, Said explora o tema por todos os lados. O nome de Joseph Conrad perfaz da primeira à última página. E pode-se ouvir a voz de Adorno, no que ela tem em, pirraçentamente, em não aceitar modelos fáceis, modelos moderados, ou mesmo modelos viáveis. Há uma imposição por outras propostas ainda não vislumbradas de todo, que, se não é a retórica avançada e o pensamento complexo, dá ares de total radicalismo. Outra voz potente sobre o colonialismo, é a de V.S.Naipaul, que faz o caminho contrário ao de Said: assume que o pós-colono não tem capacidade de se governar sozinho. Aliás, os dois volumes de viagem pelos países do Oriente Médio de Naipaul (Além da Fé, e Entre os Fiéis) suscitou muita polêmica, pelo modo rascunhado que Naipaul descreve as pessoas de todo os níveis sociais (e religiosos) com quem conversou, em países do Islã.

    Ruhsdie é bem mais contundente que Pamuk. Comparando seu livro de ensaio, Cruze esta Linha, com esse de Pamuk, fica parecendo uma puta desvairada e barraqueira perto de uma donzela casta de família rica (cheia de desejos reprimidos). Há um ensaio sobre a fátua lançada sobre ele, em decorrência do que escrevera em Versos Satânicos, que narra minuciosamente seu dia a dia como fugitivo. Bem mais corajoso e relevante que as meias palavras e as reticências de Pamuk.

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  8. É Charles, foi bem pessoal a minha opinião. Eu acho que tem mesmo um pouco disso. Algumas vezes existem escritores que a gente tem um maior identificação.

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