terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Gagos na Gaiola



Éramos muito amigos, quando resolvemos estragar tudo iniciando um namoro. O namoro durou cinco ou seis meses, na imprecisão de poder contar a partir de quando realmente tudo começou, e dali por diante, como na maioria dos casos do gênero, já não conversávamos. Ela empinava discretamente o nariz quando me via, e atravessava para o outro lado da rua. Eu lamentava; por muitas noites senti a saudade atordoante de nossas conversas, de como ríamos fácil de tudo, de como um sinal antecipava o entendimento cujas palavras só testavam depois hipóteses disparatadas. A minima coisa _ como ela ter dito, certo dia, que amava a voz do Bono Vox por ela ter uns pedregulhos ao fundo _ me enchia de remorsos. O remorso de não ter controlado a libido de uma noite de bebedeira e ter alegremente confundido tudo.

Passaram-se três anos. Por esses acasos perigosos, participamos de um mesmo amigo secreto de fim de ano. Ela, já emaciada pelo esquecimento e por outros namoros sofridos, se aproximou de mim , devagarinho, para não ficar estranho na hora de ter de dar o disco do Radiohead, fazê-lo para alguém contra o qual alimentara  anos de mágoa. Voltamos a uma amizade fresca e felicíssima. Foi a única mulher com quem trocava massagens nas costas sem falsos pudores. Não iríamos mais falhar um com o outro. Daí, surge uma profusão de mensagens por celular de uma "pretendente secreta". Bem escritas e inteligentes para serem de qualquer uma, mas só fui saber que era dela quando, em sua casa, confessou irritada que não tinha superado o amor que sentia por mim. Eu via com clareza que ela não havia superado, na verdade, a época em que lhe diagnosticaram um câncer de útero, e o calhorda do namorado dela terminara tudo por telefone após ficar sabendo. Ela estava profundamente triste e se sentindo rejeitada. Seu pai, uma advogado amigo meu, fôra até em casa pedir a misericórdia de que eu não lhe oferecesse bebidas alcoólicas. Não respondi que ela que estava com o freezer cheio de cerveja, e bebia para retratar a repulsa que lhe despertava a inchação de seu corpo pelos medicamentos, e a vida amarga em geral.

E foi justo num bar, à noite, quando a sombra era evidente demais por detrás das suas  heróicas tentativas de simpatia, que, do nada, ativando a tecla "palhaço", eu começei a lhe contar de como havia lido em um livro sobre como os gagos sempre foram alvo de preconceito. Como um desvairado, não me importei de que ninguém mais dos outros cinco na mesa não conseguiam mais me acompanhar, enfadados, e só prestei atenção em seus súbitos olhos embevecidos e de suas abruptas gargalhadas das minhas histórias. Moisés era gago, como está  nas escrituras, Machado lia discursos longuíssimos tropeçando nas palavras, mas não estava nem aí. Na Idade Média, os gagos eram colocados em gaiolas e apresentados pendurados em praça pública, onde os populares os incitavam com varas a falar. Quando falavam, todos caíam na mais selvagem gargalhada.

Ela se curou. Um de meus melhores amigos, que sempre fôra apaixonado por ela, pediu que lhes apresentassem, e os dois se casaram. Minha esposa, quando éramos namorados, morria de ciúmes dela. Depois que se falaram, a Dani e ela, num jantar, a Dani nunca mais sentiu um pingo de ciúmes dela. "Não sei ao certo, é como se vocês dois fossem muito parecidos, muito iguais, e ela é idônea demais para que eu continue a sentir ciúmes." Após meses sem nos vêrmos, eles dois aparecem aqui em casa para conhecer a Júlia. Eu e meu amigo reativamos o ensejo antigo de abrirmos um bar temático, com boa música e bebida, ao lado de uma pracinha sossegada, cujo nome será "Dig a Pony". Ela, no final da noite, com os olhos claros da estabelecida felicidade, me enche de orgulho: "Sabe quando iniciou-se minha cura completa? Na noite em que você, como um bêbado descontrolado, pouco se importando em falar alto para as outras mesas ouvir, gaguejando sem parar, me matou de rir ao contar sobre os gagos na gaiola." Mais tarde, na cama, a Dani passa a mão sobre minha cabeça, e me beija ternamente as lágrimas, sabendo.


14 comentários:

  1. Agora entendo porque algumas vezes as pessoas dizem que teriam muito pra falar sobre a postagem e acabam não dizendo. Só posso dizer que me chamaram atenção a maneira como às vezes o namoro realmente estraga, o teu arrependimento por ter cedido, a volta dela e da paixão, tudo ter acabado por causa de uma noite, uma história (isso ficou tão obscuro! Que tipo de pensamentos isso a levou?) e as bizarras curiosidades históricas que você conta sobre os gagos.

    Existe algum livro inteiro sobre o assunto, ou foi apenas um capítulo de algum?

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  2. Na minha adolescência, como já tive oportunidade em dizer, eu era muito gago. Comprei um livro de um pedagogo ou psicólogo que fazia sucesso na época, Pedro Bloch, que tratava do assunto e prometia resolvê-lo. Havia uma grande parte de anedotas reais sobre gagos históricos e sobre as tais perseguições a gagos. O livro não resolveu o problema. Adotei uma série de método que eu mesmo criava, como falar pausadamente, ou, ao contrário, falar numa velocidade um pouco acima da minha velocidade natural. Logo após essas tentativa suadas, sempre ouvia da pessoa com a qual falava: "mas diz aí, voce é gago?"

    Só me curei em grande parte quando, desde muito cedo já ganhava a vida por mim mesmo, descobri que a gagueira era um dos inúmeros pânicos imaginários da imaturidade e da dependência. E a revelação de que, a maioria das pessoas, tem algum disturbio da fala. Não levar a sério, eis a questão.

    Ela estava muito carente. Uma confluência de fatores simultãneos a fazia sentir-se sem rumo: o fim do namoro com o outro cara, a doença, o emprego que nunca lhe agradara, a crise da proximidade dos 30 anos. Muitas coisas. Quando vi, ela jogara toda a carência por cima de mim, talvez por ser eu seu conforto mais próximo.

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  3. Mas a amizade entre ela e eu é algo inusitado. Ela é bem inteligente e descolada. Tem gostos musicais, artísticos e de vestiário contrários ao senso comum, e sempre elegante. Era difícil vê-la triste.

    (Como um calhorda, depois de nosso namoro de alguns meses, eu assumi que deveríamos era ter sido amigos e coisa e tal. Como toda mulher passional, a casa veio abaixo. Uma das poucas coisa que sei sobre mulheres, é que, rejeitadas, elas odeiam profundamente!)

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  4. Ah, existe uma lista de coisas piores. Você não disse que gostava dela como uma irmã, né?

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  5. Jamais.

    Talvez a coisa obscura do texto seja: ela não continuava apaixonada por mim. Tanto que, quando começou o namoro que iria leva-la ao casamento, ela que, plenamente, tomou a atitude de me ver como irmão. Se eu fosse um desses caras que desprezam, mas sofre enormemente quando a mulher dsprezada os esquecem (embora entre ela e eu não conste essa palavra), teria ficado enciumado.

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  6. charlles é um grande cara, isso e tbm tudo me ficou bastante claro.

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  7. Não sei se rio (principalmente desta foto pra lá de escrachada), ou me emociono.

    Só sei que às vezes o google faz de tudo para barrar o comentário no blog.

    Ass: Ângela Vieira

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  8. Ângela, já me disseram isso, do blogger dificultar as coisas à vezes. A foto, nesse contexto, realmente é engraçada.

    Rômulo, brigado, cara, mas o propósito não foi fazer propaganda de minha "santidade" (sei que não foi isso que vc quis dizer, contudo). Como disse Whitman," o corvo, a serpente e o porco já habitaram em mim". E não tenho vergonha das boas intuições, entre os tantos entraves, que partem em momentos iluminados do coração.

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  9. é verdade, nossos corações gaguejam

    [ah, e se outro leitor lá pôde pedir faulkner, talvez eu possa só deixar a ideia de camus...]

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  10. Que livro era aquele, que contava sobre os gagos? Sou um deles. Fiquei curioso!

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  11. Pedro, não me lembro do título _ algo como "Como Livrar-se da Gagueira", ou "Manual Prático em 10 Passos para Di-dizer Tchau à Gagueira". Não tive tempo de pesquisar no Google, mas deve ter a bibliografia do Pedro Bloch em algum lugar.

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  12. Será que isso merece um outro post? Ou você acha que já disse tudo sobre o assunto naquele que você descreve o caso da bosta no rosto?

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  13. Um post sobre gagueira. O duro é que fui sugado por uma antológica entrevista no Jô Soares ("A Entrevista do Claudinho Político", assista!!!), literalmente, de matar de tanto rir, em que o entrevistado expõe clinicamente todos os terríveis e hilariantes percursos da gagueira. Tudo que ele fala lá, eu passei, como o horror a atender telefone, etc. Qualquer coisa que eu escrevesse, por mais sincero que fosse, seria uma cópia descarada.

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  14. Eu vi essa entrevista e chorei de rir. Pensei em te mandar mas achei que alguém já o tinha feito. Me dou por satisfeita com ela, então.

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