sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A semana



Essa semana foi toda para acompanhar a Dani na capital em seus exames antes do parto. Pegamos o carro de manhã e fizemos uma agradabilíssima viagem nós três por três horas, indo no máximo a 100 km por hora e ouvindo uma seleção de álbuns nos pen drives. Choveu no caminho. Paramos em um restaurante de beira de estrada. A Dani e a Júlia pediram suas músicas preferidas do Phish e vieram cantando The line e Devotion to a dream em voz alta, a Júlia com seus improvisos de inglês infantil de cinco anos. Durante o Radiohead a Júlia começou a tombar a cabeça de sono em sua cadeirinha, mas na Björk ela reanimou novamente. A disposição de humor estava tão elevada que ao entrarmos na cidade nem mesmo o trânsito a abalou, mantido do lado de fora das janelas solidamente fechadas com o ar condicionado ligado. Chegamos à casa da minha mãe e a mesma harmonia de humor estava lá. Passamos a semana indo ao cardiologista e ao obstetra, fazendo ultrassonografia e outros exames que não sei o nome. Disseram que a Dani está ótima, que o parto será marcado provavelmente para antes do dia 15. À noite fui à Fnarc e fiquei lá por boas 3 horas. Comprei uma batelada de livros que não esperava comprar. Dormi num colchão na sala do apartamento da minha mãe, onde estão as plantas e uma peça artesanal de cerâmica que simula uma cachoeira por onde a água cai em 4 níveis. Ficava lendo até as três da manhã, ouvindo o som morfínico da água. Durante as tardes, em que nada havia para fazer, passava horas lendo. Meu respeito pelo meu leitor interno é tão grande que sempre me deixo levar por suas escolhas inusitadas e espontâneas. E como caiu bem a leitura dos livros que ele escolheu na Fnarc. Li Mo Yan com deleite, depois, em um dia e uma noite, li Uma rua de roma, do Patrick Modiano. E agora estou embrenhado na leitura múltipla dos outros livros comprados: Amor e exílio, de Isaac Bashevis Singer, e o novo do Ian McEwan. Também comprei uma edição de bolso de Heart of darkness que tem sido minha companhia nas salas de espera dos consultórios médicos. Mas o que tem feito meus olhos brilharem mesmo são os livros do Mo Yan e Modiano. Os dois tem duas coisas em comum no imediato mundo real: os dois ganharam o Nobel e os dois se declararam (no caso do Modiano) ou foram declarados (no caso do Mo Yan) como escolhas menores para o prêmio. Gostaria de simplificar as coisas dizendo que o que gosto neles é o fato de serem autores medianos, descomplicados, puros. Mas isso é cair em rótulos simplistas. Mas vou me deixar, assim mesmo, cair nesse conceito limitante. O que eu adorei nesses livros é justamente eles serem medianos. Não há arroubos metafísicos neles, não existem sentenças grandiosas, nenhuma erudição excessiva, nenhuma digressão ensaística. Os dois são despretensiosos de uma maneira desconcertante. O Modiano, por exemplo, que declarou sem a mínima comiseração ter ficado espantado com a escolha da academia sueca, começa seu livro sem subterfúgios algum, direto, com muitos diálogos e poucas descrições. Estou verdadeiramente apaixonado pelo Uma rua de roma. Ele tem 220 páginas mas eu as li em alta velocidade, fiquei tão absorvido pela história e pela delicadeza da linguagem que quando cheguei ao final foi que me liguei que o livro físico estava realmente acabando. Pretendo voltar na Fnarc e comprar mais uns três Modianos para preencher meus dias até a chegada do Eric. Fiquei fã mesmo do cara. Há muitas cenas ali de tirar o fôlego de tanta beleza. E Modiano as compõe aparentemente sem apego a virtuosismos, apenas faz seu papel em sua sala à meia luz em algum apartamento de Paris. Modiano é tão fluído que me fez pensar que alguém como Hemingway gastava muito suor para se descomplicar, enquanto Modiano é descomplicado por natureza. O livro trata da procura do narrador por sua identidade, perdida há oito anos por algum evento desconhecido que lhe provocou uma amnésia. Os diálogos entre o narrador e as várias pessoas indicadas por suas pistas são primorosos, e a avareza de descrições evoca no leitor cenários tão vívidos e misteriosos que lembram algo de Kafka ao mesmo tempo que algo de Agatha Christie e George Simenon. Que delícia nesse instante da vida ser regalado com esses escritores medianos. A literatura em sua função cartorial, regida por expedientes protocolares; homens que escrevem com a mesma necessidade de qualquer outro ostensivo escritor de se oporem contra a morte, mas que o fazem em um estágio mais silencioso, que parece humildade mas que é apenas a consciência imolestada de cumprirem seus papéis consigo mesmos. À noite de ontem reencontrei um antigo amigo dos tempos do colégio no bar Woodstock, e o sincronicismo foi tanto que quando nos vimos passava a Smoke on the water, que tanto adoramos. É com o espírito leve das leituras de Modiano e Mo Yan que agradeci pela singeleza dessas coisas.

11 comentários:

  1. Eu ri muito com o cara de sapo do Mo Yan. A única tradição que cumpro é a de começar o ano com um Nobel.

    Natural mesmo sãos os trocadilhos com recentes Nobeis. Mo Yano, Modyan, medianos.

    Parabéns pelo bebê. Se não for muito arriscado, você pode batizá-lo com inspiração no Nobel deste ano (meu filho se chama A. Javier e minha filha Maria - dá pra saber por quem torço todos os anos).

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  2. Ah aqui está um texto que fiz sobre Mo Yan e meus nobeis de começo de ano. https://raviere.wordpress.com/2014/01/02/mudanca/
    Este ano eu comecei com Canetti.

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    1. Seu texto é ótimo, Paulo! Bom ter um amigo assim, igual ao Mofino, com o qual se pode realizar disputas literárias. Você e eu gostamos de listas, divergimos no quesito sublinhar livros, e também no fato de que eu leio os Nobéis, por serem nobéis, desde quando eu era criança. Sou desses que cai sempre no fetiche de comprar um livro por causa do selo do Nobel na capa. Esse do Mo Yan ajudou tê-lo encontrado por 9,90.

      Dia 10 sai o anúncio do laureado, né? Acho que o Marías não vai ser por ser muito jovem ainda. Vamos ver.

      Tá falando sério sobre os nomes de seus filhos? Belos nomes, mas é uma coincidência, né?

      Meu filho vai se chamar Eric, em homenagem ao Hobsbawn.

      Obrigado.

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    2. Ah, Claro que vc deve saber que a Cia já lançou o As rãs, do Mo Yan.

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    3. Outra: a Cia vai lançar o Doutor Fausto em capa dura. Já tem na pre-venda. Fui ao Facebook do Renato Nogueira pra ver se ele tinha alguma informação sobre quem é o tradutor, mas não encontrei nada.

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    4. Terminou que o Mofino e Igor (o cara que me emprestou o Mo Yan) hoje são meus compadres. Antônio e Maria são meus avós. Antônio (meu filho) é Javier por que eu me chamo Raviere. Nem chega a ser coincidência, é mais uma brincadeira que eu faço com quem conhece Marías. AJ se parece tanto comigo que uma vez pensou que era ele numa foto antiga minha, apesar da grotesca televisão de madeira ao fundo.

      Há um fetiche geral no Nobel, basta ver o número de lançamentos de Modiano de um ano para cá. Acho que Marías não vai ganhar, mas é por ser muito bom, hehehehe. Saiu o novo dele pela Cia. Vi sim, sobre o lançamento de As rãs, mas não pretendo comprar por agora.

      Anteontem estava com Dr. Fausto, Auto-de-fé e Viagem ao fim da noite, escolhendo um para ler, sendo que já tinha iniciado os dois últimos. Fiquei com o Céline. Não vou comprar, mas é bom saber que estão reeditando os Manns. Vi que vai sair também um volume de contos de Singer, bem barato. Esse vou colocar em minha lista.

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  3. Bom saber que a cia das letras vai lançar os romances do Thomas Mann, dele ainda me falta a tetralogia do "José e seus irmãos".

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    1. E dizem que o livro está em crise. Em plena crise, esse final de ano é um dos períodos que mais se lançou/ está se lançando livros no Brasil. A Camila mesmo disse é um sofrimento para qualquer resenhista. Vejamos: o novo do Marías, a bibliografia do Mann (com dois lançamentos de uma vez: Doutor Fausto e Morte em Veneza, EM CAPA DURA), Mo Yan, os contos completos do Tolstói (me chegou ontem e sim, tem os contos de O diabo; e são belíssimos livros, talvez os mais bonitos da Cosac), Novelas Exemplares (tradução do Ssó, pela Cosac), a reedição dos livros do Faulkner pela Cosac (vi-os todos na Fnarc), e mais uma carrada. Me surpreende isso. Reitero aqui minha impressão de alucinação todas as vezes que vou à Fnarc e vejo uma multidão de leitores ali. Um alegria.

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    2. Assistindo agora o Globo News Literatura sobre os lançamentos de biografias do rock confirma ainda mais o acima.

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  4. Charlles, o Doutor Fausto da Cia das Letras continuará com a clássica tradução de Herbert Caro

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    1. http://www.nytimes.com/2015/09/23/business/media/the-plot-twist-e-book-sales-slip-and-print-is-far-from-dead.html?ref=books&_r=1

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