terça-feira, 24 de março de 2015

A vitrine



O nível de indigência espiritual do país anda tão grande que a realidade nem se presta mais a produzir alegoria que se preze. O sujeito tem o mesmo nome do país, é funcionário efetivo da coletoria de impostos estadual, e ferrenho apaixonado pelo político mais conhecido do estado. Só esses elementos mostram o quanto a providência pouco se importa em dar uma grama que seja de sutileza para congratular nossa inteligência; ao invés disso, nos dá a brutalidade da redundância e a pobreza dos arquétipos mais fajutos. É funcionário mas nunca trabalhou nessas suas onerosas décadas de vilipendiação do dinheiro público. O escritório da coletoria está instalado no centro da minha cidade, bem próximo à praça municipal e em uma rua de grande circulação. De modos que o sujeito é figura folclórica, com sua barba grisalha, seus indefectíveis óculos escuros, sua obesidade de bonachão, sua voz de capanga do baixo clero, rouca e rápida, que encerra na hora que quer o monólogo que leva com todo mundo, o mesmo e renitente e cansativo monólogo de atualizar as últimas fantásticas grosserias que fez seu coronel. A única vez que conversamos eu pude ver o quanto nós brasileiros estamos relegados ao barbarismo para não interessarmos aos nuances do discurso, pois ele era exato e matematicamente como descrevia a piada popular na qual o conceituavam: ficou quinze minutos monologando com um ar de absoluta trivialidade sobre a vez em que presenciou um homem que criticou seu coronel da plateia de um comício ser colhido no final e torturado com veemência. O aterrorizante era que eu olhava às outras pessoas que estavam nas mesas do café da manhã ouvindo a coisa, e elas não expressavam o menor espanto, o menor pasmo, enquanto o sujeito que leva o nome do país descrevia com um sorriso simpático como eles sovavam o dissidente, como o próprio coronel lhe socava o rosto até o sangue verter, como o coronel, do alto de sua alta estatura e da proeminência de seu sobrenome na história do terror nas mentalidades do estado o xingava de vagabundo, dizia fala agora o que você disse lá. A voz do capanga era enternecedoramente rouca, aos poucos se fazia bastante simpática, aos poucos o descomedimento da sua narrativa, que pairava bem acima dos códigos de leis e da dita soberania dos povos e da dita liberdade de expressão, lhe dava a graça que tem todo bobo da corte ridículo demais para que não se invista da imunidade divinatória de seu déspota. Pois bem, nessa semana, seu diretor regional parece que se cansou dele. Talvez a reação tenha vindo porque de toda a trupe de cobradores de impostos da região, o capanga tenha sido o único que obteve a promoção máxima do cargo, graças à seus laços vassalais com o coronel, fato que elevou seu salário para mais de 10 mil reais, em acintosa assimetria com os salários dos outros colegas de serviço. O governo do estado criou postos de serviço em que juntam diversos órgãos em um mesmo local, facilitando em muito a desburocratização, e os colegas do capanga optaram por trabalhar em um desses postos já faz alguns meses. Como nesses postos seria impossível ao capanga continuar sentado em seu sofá à espera do horário de fim de expediente, pois ele não poderia mais escorar em seus colegas visto que ficaria atrás de uma mesa pessoal para a qual viria um grande afluxo de pessoas, o capanga disse não ao diretor regional. A força de seu vínculo com o coronel é tão grande, que o diretor regional nada teve o que fazer. O capanga ficou por bons meses na mesma condição a que estava acostumado, das oito da manhã ao meio dia, e das duas da tarde às seis, na sala do que era antes a coletoria, que agora estava vazia, sem computadores e sem os outros três funcionários, apenas ele sentado no sofá que trouxera de sua casa após a dissidência, com um ventilador e as luzes ligadas, lendo jornal. Todos podiam vê-lo ali, mais uma colaboração do pauperismo metafórico pátrio, a vitrine da inépcia salvaguardada e da opulência opressiva que o poder pontualiza na esdrúxula cotidiana para que todos reverenciem a onipresença das velhas estruturas de desmandos e jamais esqueçam a ordem da cadeia predatória, o Igor acorcundado que uma mínima distorção no sarcasmo da história deixaria de ser uma piada a qual o inconsciente de todos acharam o único meio de combatê-lo relegando-o ao ridículo, e passaria a descalavrar suas profundas correntes da corrupção ao se tornar um dos agentes do extermínio, da deduração, da deportação em massa. Depois ele saiu de lá, sabe-se lá se por vontade própria. Mas o certo é que pessoas assim, debaixo do nariz da opacidade coletiva, jamais deixam de se dar bem.

8 comentários:

  1. É caro Charlles, infelizmente, em regra (e digo em regra, para prestigiar as raríssimas exceções), o espírito deste seu relato é o que reina em todas as esferas de poderes do Brasil, onde esteja presente a administração pública, o legislativo e o judiciário. É mesmo revoltante remunerar (e bem!) a desídia, o coronelismo, os egos inflados e ter como contraprestação, uma resposta (quando há!) pífia, ineficiente e, ainda assim, altaneira de sua condição, de seus cargos e de seu poderes.

    O que fazer, diante disso, senão revoltar-se, posto que o objetivo maior do possuidor do poder é somente, na quase totalidade das vezes, ampliá-lo, mantê-lo e utilizá-lo em benefício próprio? O Estado, como disse Nietzsche, é o maior dos monstros.

    E é difícil (Impossível, improvável certamente) tentar traduzir essa revolta em mudanças efetivas, numa democracia, onde o voto é utilizado de forma tacanha, ignorando a ética e a moral mais básicas, exercido de acordo com a situação econômica da vésperas dos pleitos e para manutenção de falsos e quiméricos privilégios.

    Resta-nos denunciar, fazer nosso trabalho honestamente e vislumbrar utopicamente um país mais esclarecido tanto diante dos fatos, como das informações e interpretações acerca deles.

    Casos como o que você contou, podem ajudar nesse sentido, fomentando a reflexão.

    Abraços,

    Marcos F. Messias

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    1. O estado brasileiro está infestado de gente como esse capanga, Marcos. Eu conheço vários, só aqui na minha cidade. Essa é mais uma das evidências que me deixam absolutamente descrente de uma mudança no país. Todas essas características por demais notórias que compõe o conceito de corrupção aos níveis brasileiros estão entranhadas demais para que algo mude. Só mudaria se fosse possível pragmatizar aquela frase do Brecht, se fosse possível destituir o povo e eleger outro em seu lugar.

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    2. Oportuna sua citação do Brecht. Ela enfatiza outra que diz que "cada povo tem o governo que merece". Talvez devêssemos ponderar a inversão do clichê-slogan ufanista assim: o pior do Brasil é o brasileiro.

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  2. Marcos Nunes, fui remover os rascunhos de seu poema, conforme me pediu, e olha só o que o blogger fez, apagou os outros todos que estavam embaixo, inclusive o comentário do arbo. Peço desculpas, e peço que publique novamente seu poema.

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  3. Alegoria

    Um braço do brasileiro é português, e ele
    muito se dá com o outro, que é espanhol, enquanto este
    viva às turras com a perna direita francesa, com a qual
    o braço esquerdo (brasileiro) se dá muito bem, e até
    faz acordos com a perna outra, alemã, que ora
    está à esquerda, ora troca de lugar com a francesa
    e à direita se põe, enquanto o tronco, italiano
    imóvel, fica aguardando que a cabeça, inglesa
    obedeça ao pênis, que é norte-americano
    e como tal não pensa, pois está sempre ocupado
    em foder alguém.

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    1. Foi só para dizer que, nível indigente que seja, alegorias são possíveis.

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    2. o q eu tinha comentado fôra a coincidência de justamente ontem eu ter visto um comentário seu (mnunes) no diáriodocentrodomundo, acho q era esse o site. ou ao menos pensei ter sido seu...
      fico feliz em vê-lo novamente por aqui

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