terça-feira, 22 de julho de 2014

O dia mundial da resignação



Vai parecer esperança, mas não passa da velha resignação. Hoje acordei com vontade de dar um basta em todas as reservas. Acordei de um sono completo, com quarto envolvido nesses escuros absolutos que me dão anseios de procurar algum indício de luz de que não esteja cego, com um lençol macio, com o travesseiro usual entre as pernas e o outro caído manhosamente de lado, sem uso. Foi um sono reparador, sem sonhos, e por isso não teria motivos que de súbito, agora pela manhã, diante o computador, eu fosse assolado por esse gigantesco tédio. Faulkner está errado, pensei, Faulkner é um fingido; como acreditar que o homem sobreviverá?, como acreditar que o homem é bom? Vai ver é porque meu trabalho de ficção não me esteja parecendo nada promissor; palavras de mais, adjetivos que não se desgrudam de mim, advérbios que escondem a obstrução de uma coisa genuína. Leio o que escrevo e parece que sofri uma involução, voltei a escrever com aquela paixão adolescente sem consequências do colegial, que só cativava por procuração professoras piedosas, que queriam elas mesmas brincar que acreditavam que algum de seus alunos levavam a promessa. Um analfabetismo no final das contas. Vontade de desistir; a felicidade está mesmo na música perecível; vontade de ser um cantor sertanejo, vontade de me assumir da forma mais franca possível que não tenho nada, ser canalha de cara limpa e acolher os dividendos da onomatopeia. Criar uma musiquinha para celular, se isso ainda é viável. Vontade de ganhar um prêmio acumulado na loteria federal, e gastar ostensivamente o resto de vida jogando para todos os desafetos a arte da corrupção na prática, e não tentar fazer isso através do placebo pobre da escrita. Ser um Edmund Dantés que inventa a sua própria vingança, vai criando-a no momento em que faz dobrar diante de si os joelhos dessa criaturinha levianamente vendível que é o homem, esse homem que o bêbado Faulkner, mal se aguentando em pé no palanque do Nobel, mentiu acreditar.

A minha vontade hoje é ser desbragadamente ingênuo, não me proteger contra nada. A eterna proteção exaure. Dá vontade de, de uma vez por todas, me resignar diante esse otário cibernético, máquina, presidiário ou quem quer que seja, que todos os dias, infalivelmente, deposita em minha caixa de e-mails inúmeras tentativas das mais idiotas extorsões. Aumentar meu pênis, receber uma bolada de um milhão de dólares, enviar auxílio para algum senhor de cômico nome mutante entre indiano e angolês, encontrar aquela garota ninfomaníaca que me descobriu e me envia notificações lúbricas de imediata intimidade, requerer meu prêmio (mais uma vez, que sujeito sortudo eu sou!) na loteria inglesa (!), comprar um imóvel promocional em Recife, ir a uma festa literária para a qual me convidaram com honras (até isso!). Vou abrir esses e-mails e vou seguir diligentemente cada passo exigido por eles; chega. Hoje é meu dia da resignação. Vou assistir a esses programas de adivinhas que passam de madrugada na tevê aberta, e ligar para o número embaixo, mesmo sabendo que o programa é gravado, para exigir meus 150 reais, e quando me atrasarem de propósito com musiquinhas de Kenny G., ou gritarem em meu ouvido que tem novos enigmas que podem aumentar o dinheiro, vou esperar com paciência, até que a tarifa do "serviço" telefônico ascenda aos 4 dígitos e eles me façam perder, "ahhhh, lamentamos que você não tenha visto quantos dentes tem o desenho do bode; da próxima você leva". O que pode acontecer comigo? Perdas econômicas? A vida não é isso, além de todo retumbar dos bumbos da filosofia de boteco? Que eles me roubem. Quem sabe a verdade esteja na profunda desproteção; quem sabe Faulkner tenha visto com sinceridade e seu texto adocicado do Nobel seja canalha por osmose da falta de consolo cotidiano. Se essa entidade se esforça tanto para me enganar, se esforça religiosamente para isso, se em sua distância ela só pense no serzinho passível de vilipendiação que eu sou, há nisso uma forma evoluída de amor. Dizer assim provoca até arrepios na nuca, mas, no fundo no fundo, qual o argumento contrário? Vou agora mesmo responder à Samantha, que tremula com os seios voluptuosos quase para fora do top de ginástica na tarja ao lado da caixa de e-mails. Oi, estou vendo que você mora em Goiânia, a mesma cidade que eu, e, quem sabe, poderíamos nos encontrar para um drinque. Mas não sei se vou conseguir me conter com você! Me digam, por que não acreditar nela? Mesmo que eu tenha a absoluta certeza de que é um computador que me joga essas frases pré-formuladas e que um nível de tesão tão engajado às oito da manhã de uma terça-feira é algo que nem os anjos de Jó seriam capazes, mas... considerem o altruísmo que fundamenta a coisa, a fé de quem planejou, as horas de trabalho que nada devem à concentração e o abandono de um cientista diante sua pesquisa, ou o compositor diante sua partitura. Oi Samantha, como vai? Não moro em Goiânia, mas posso chegar aí em uma hora e meia, é só me dizer que horas que é o encontro. Obrigado por ser tão atenciosa, mas acho que exagera em seus elogios; não sou essa tentação física que você acredita ver; tudo não passa da generosidade de seu olhar. Mas devo avisar que eu é que fico um tanto assanhadinho depois de alguns drinques, ainda mais diante uma loira monumental como você. Minha conta bancária? Lá vai... 

Me recordo de não sei qual estoico, se na literatura ou na vida real, certa vez disse que era um encanto que às vezes um beija-flor viesse lhe atazanar as orelhas ou ficasse com o bico próximo a seu ombro; "não é enternecedor que um animalzinho destes te elogie ao confundir você com uma flor?" Claro que não sofro de uma estrondosa carência desse porte, mas hoje estou disposto a considerar que a ternura sofre uma brutal evolução. Não é enternecedor que um programa estelionatário na corrida louca da vida moderna escolha aleatoriamente você como remetente de todas as horas de zelo de quem o criou? Quando eu for me encontrar com a Samantha na capital hoje, vou sentir mais uma vez isso, como sinto a cada vez que tenho que enfrentar uma cidade grande. A vontade de assassinato que existe por trás de cada buzinada. Uma vez fui de carona com um amigo; ele parou diante a garagem de um prédio o tempo suficiente para retirar as malas do bagageiro para que sua esposa descesse, e um senhor esperou dentro de um carro do outro lado da rua, com elegante parcimônia, para poder entrar na garagem, até que esse amigo entrou no carro e deu a partida; então, o senhor começou a xingá-lo, filho da puta, caipira, vai tomar no cu seu bastardo, seu corno. O senhor fez isso com um ódio tão puro que o que antes era sua completa inofensividade invisível da qual eu nem reparara, agora eu o via como um guerreiro tribal psicopata que iria de uma hora para outra retirar uma pistola do porta-luvas e nos transformar a todos em estatística. A fuga da estatística no mundo moderno é nossa atual forma de ternura, me diz a voz de meu bêbado interno especialista em filosofia de caneca. E como fazer isso senão através da única coisa que sobrou de um depauperado aprendizado de amor ao próximo? Através da catarse do trânsito, ou da carranca no elevador, ou da virada de rosto em negação no shopping, ou da desconfiança esquizofrênica nas filas do banco da qual temos que nos comunicar em silêncio eloquente o quanto somos unidos no respeito sagrado em não tentarmos furá-la. Um dia, quando minha esposa passava por uma convalescênça logo após uma cirurgia cardíaca, eu resolvi aliviar a tensão inútil da espera indo à livraria de um shopping próximo, e na fila do caixa, onde eu via que havia apenas eu, um sujeito cortou vindo de não sei de onde por mim me dizendo que não iria aceitar que eu passasse na sua frente, ah, isso não!, eu pensei que se eu fosse um cidadão daquele mundo, seria lógico meu agradecimento por ele me oferecer daquela forma um calor humano de consolo, por mais estranho que tenha sido tal contato. Se não nos matamos após a buzinada e o xingamento, é porque nosso amor era legítimo, pois fugimos à estatística. Não seria impossível que o senhor e meu amigo se sentassem no final do dia para uma cerveja, e começassem uma forte amizade. Um dos personagens de meu romance despirocado é um conceituado especialista em Marx que deixa, de hora para outra, sua cátedra em uma universidade alemã e parte para um povoado esquecido do Caribe, e que mais tarde se descobre que seu desaparecimento aponta para a coincidência do surgimento das mais populares canções valenatas do rádio. Há um longo discurso com sotaque carregado de como tudo o que ele ambicionara no campo da escrita erudita se cumprira na composição das músicas banais de refrão fácil e que só falam do único sentimento que ainda traz um pouco de perseverança: o amor. Ele era um importante mantenedor da perseverança biológica da espécie, ele se julgava orgulhosamente um promulgador do equilíbrio social. Mesmo que houvessem facadas de bêbados nos bares dos povoados, sob o som de suas músicas, mas isso era a natural exacerbação que vem com derivativos da homeostase. A estatística não conta, a estatística é a mentira séria de uma derrota que nunca virá, que só existe no papel. Blá-blá-blá.

Por isso hoje minha vontade de cair em todos os engôdos, sem me sentir humilhado. Acessar os links sobre as ditas "celebridades", e confiar que elas são mesmo divinatórias. Fazer um mapa cabalístico das trivialidades delas e ver nisso um plano profundo da providência.

10 comentários:

  1. O começo desse seu texto é brilhante.
    Não que mais esse adjetivo, essa graça, venha a fazer qualquer diferença.
    Eu cheguei à conclusão que nada que venha a acontecer nesse blog vai te demover e aceitar que seu processo de depuração como escritor já aconteceu, e que o mais que você espera talvez só se suceda na própria experiência de ser publicado, rejeitado ou aplaudido, enfim no ato de jogar ao chão esse anonimato acalentador que você cativa.
    Hoje é de fato o dia da resignção. Mais um dia na vida de Charlles Campos. Mais um dia em que ele decide que não é escritor, atirando o seu talento na nossa cara.
    Quanto desperdício. Que vontade de te acordar com um soco no meio da fuça.

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    1. Estou escrevendo continuamente, Luiz. Ontem mesmo escrevi bastante, Minha filha mexeu no word e o programa está uma bagunça, de tal forma que não consigo escrever nele. Escrevo no computador no rascunho do blog, o que oferece a segurança de sempre salvar automaticamente o texto sem que eu tenha que interferir. Ontem eu escrevi sem formatação, sem voltar para atender ao grito sublinhado de vermelho do corretor para as palavras erradas, sem me preocupar com os "que" excessivos, controlando meu perfeccionismo relativo em não perder um tempo enorme empacando o texto em busca do eufonismo melhor. Isso é uma libertação, ainda que depois, ao ler o que escrevi, eu veja o fantasma circunscrito do verdadeiro texto corrigido pairando na página. Me desenvolvi bastante na digitação, o que permite que eu dê maior fluidez à obra. Gosto muito de escrever com a caneta, mas é estanhíssimo como a atualidade atrofiou os músculos da escrita discursiva em mim. Meu pulso dói após duas páginas escritas, e minha letra sofreu uma desvalorização legível catastrófica.

      A benção maior me surge com a veste ambígua de uma perturbação. Tenho em mente os projetos de três romances diferentes. Qual levar adiante agora. E qual o estilo? Dou ouvido à minha voz americana, despojada, torrencial, coloquial e nababesca, escrevendo meu desejo de uma narrativa bellowiana de meu modesto (mas cheio de prepotência confiante que-se-foda-se-vo- quebra- a- cara), ou me envolvo em minha vertente ibérica barroca à lá Marías e Saramago, prezando mais o recolhimento, o abajur da estante, o que é algo que muito me atrai. (Note que não estou jogando talento nenhum na cara de ninguém aqui, no estilo "nossa como sou brilhante e carrego em mim tantas possibilidades, meu nome sendo Legião", estou apenas me desabafando e procurando um caminho). Esses exercícios me ajudam a atiçar o caminho. E para tornar mais complexo a coisa, percebo que há uma historinha em que a voz facilitada pela leitura do Saer me anima a empreender. Como você bem disse, a possibilidade premente de que uma vez uma dessas coisas publicadas seja atirada em demérito no chão não me passa batido pela cabeça.

      Mas é chegado a hora mesmo de eu me publicar. Qualquer uma dessas composições não vai levar menos que três anos. Eu tenho que soltar essas gracinhas como esse post para ouvir a reverberação de que existe um mundo aí fora, pois a impressão de toda a vida de que há uma enorme indiferença orbital pela escrita sempre vai ser um trauma sensorial.

      Ontem vi uma reportagem sobre a maravilhosa e inacreditável Vivian Maier. A vida é curta ou longa demais, dependendo do foco. Que uma mulher dessas nunca tenha sido descoberta, e que a descoberta póstuma foi um acaso frágil, é uma dessas histórias magníficas que nunca poderia ter acontecido. Claro que não estou fazendo comparações de qualidades entre ela e eu; o que digo é que, se existe uma necessidade de expressão dentro de você, seria um pecado ou uma dor inenarrável você não externá-la.

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    2. João Antonio Guerra24 de julho de 2014 às 20:39

      Esse texto foi sensacional, mas o melhor mesmo foi a notícia no teu comentário acima. Toda a força do mundo pra essa tua obra, Charlles.

      Você diz Bellow e diz Marías e diz Saramago (e por aqui já comentaram que Roth também), mas quem mais me cativa dentre as criaturas que entrevejo na tua escrita é Naipaul. O dos personagens abissais, do texto que compõe cuidadosamente um lugar escuro com bolhas luminosas, luzes que os próprios personagens sabem que inevitavelmente irão desaparecer, ou porque eles se aproximaram demais delas, ou porque o tempo delas se acabou, depois dos anos e anos em que esses personagens fingiram estar eternamente seguros dentro da distância que inventaram para si. Não vejo o Naipaul no COMO você escreve, mas no QUÊ (argh, eu detesto o fato de que a maioria dos espaços na internet não permite o uso de itálicos)

      E Vivian Maier! É uma desgraça: leiloaram seus filmes porque a velhinha não conseguia mais pagar o armazenamento deles num galpão. Vida de poeta -- e mais ainda de poeta mulher -- é dura.

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  2. "Que vontade de te acordar com um soco no meio da fuça." Pois é.

    Eu juro que após esse "será que sou/não sou escritor", visualizei-me dando uma paulada em sua cara goiana, brother Charlles, enquanto a Júlia caia de bumbum no chão, assustada, ao fundo, perto da porta do teu refúgio.

    Até a metade desse texto senti um batimento cardíaco acelerado, uma escrita prazerosamente resfolegante, condizente com uma cansada atitude resignada. Após, salivando, esperei jorros de sangue, acidentes, homens desfigurados e desmembrados pela sua humanidade libertada dos impeditivos Sagrados que o levam, a muito custo, ao caminho de seres superiores, angelicais. Contudo, encontrei somente uma palpitação mais cadenciada, mais resignação (e um tanto não resignada...).
    Grrrr.

    Não sei mais escrever à mão sem parecer um recém saído do MOBRAL: letras horríveis, sem padrão algum.

    Já que deste as "opções", lá vai: escreva a obra bellowana. Tens a idade certa para isso. Já estás mais que treinado para enveredar-se nesse tipo de escrita, com olhar apurado para identificar se uma frase, parágrafo ou ideía foi posta no papel da maneira correta. Recolhimento pode ficar para depois. Abra a porta e saía (deixe as janelas abertas), caminhe por ruas de pessoas que falam alto e com os mais diferentes sotaques, escreva (desenhe) mulheres e homens que sejam reais (o que mais nos falta), que falem à nossa época, que falem a todos nós (e não somente a alguns poucos). Vamos, escreva. Esperaremos. NÃO DECEPCIONARÁ. Depois volte pra casa, feche as persianas, adentre à biblioteca, acenda o abajur e recolha-se do mundo.

    Mas escreva, cara. Precisamos disso. Foda-se: preciso disso. (Hétero)

    (Perdoam-me se escrevi palavras da maneira errada, frases sem sentido etc.)

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  3. Olá Charlles,
    A necessidade de expressão autêntica, daquelas que brotam sem muito planejamento é, pelo menos para mim, o que realmente interessa.
    Gosto de ler e "perceber" que aquilo nasceu de um impulso espontâneo, de um momento brilhante, sem uma gestação articulada (daí surge uma tola reserva, da minha parte, com relação a grandiosa obra "Anna Karenina", pela forma que foi elaborada).
    Talvez essa minha ingenuidade seja uma pretensão desenvolvida pelo impacto daquilo que me assombra pela beleza da verdade escancarada, que não poderia vir a tona senão por um lampejo de talento iluminado.
    Alguns dos seus textos assim me parece.
    Gosto quando vc nos conforta com a sua "santa indignação"

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    1. Santa indignação?!

      Tolstói me parece sempre um escritor avesso a perfeccionismos. A propósito, ele "errava" por querer, repetindo palavras e fazendo o oposto do que a moda estética de Flaubert ditava. Vide o início de "Ressurreição", que é de um belíssimo desmazelo.

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  4. Quando autêntica. Quando despretensiosa. Quando verdadeira. Quando politicamente incorreta. Quando espontânea. Assim sendo, SANTA.

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  5. “A fuga da estatística no mundo moderno é nossa atual forma de ternura, me diz a voz de meu bêbado interno especialista em filosofia de caneca.”

    Caro veterinário, o rebanho acima é fantástico…

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