A literatura muitas vezes descamba para a filologia dialógica mais pura entre amigos. Quando isso acontece, quando eu seguro em mãos um livro cujo tema de eixo para os outros temas movimentados mais identificáveis é a amizade em seus profundos matizes, me alargo mais na poltrona e relaxo de prazer. Analisando a isca desses meus trinta anos como leitor acirrado, vejo que grande parte dos livros que procurei por instinto ou por filiação direta trata da amizade. Nada de Huckleberry Finn ou Kim. O que estou falando é dos longos diálogos e intensos silêncios que permeiam a reflexão individual movida pelo conforto do companheirismo que existe em Montanha Mágica e Dias de Finados. A natureza humana, enfim, é o que mais vale, sendo que sua latente extraterrenidade entra na intuição das ideias que não são passíveis de expressão verbal, daí que um amigo console o outro que está alquebrado na cama não com palavras, mas com uma dança no quarto de hospital; daí que no extraordinário romance A pesquisa, de Juan José Saer, dois amigos do círculo de intelectuais são vistos sob um céu de iminente tempestade, sentados cada qual em silêncio em suas poltronas, parecendo "ter resolvido [] mergulhar no rio daquilo que lhes é exterior e deixar-se fluir, tranquilos, na correnteza". A amizade em sua corporificação mais extrema, sem muito zelo e energia juvenil, mas como o sucedâneo plausível único para o desabrigo dos perigos do mundo. A amizade justo para os que precisam dela e pela experiência alcançada são os que estão à altura de seu merecimento: os velhos ou os que estão de alguma forma na transição transfiguradora de um grande cansaço.
Como tudo na existência parece estar do avesso, atendendo a um humor de uma potestade sarcástica, a amizade tem suas armas para inventar a sensação de ordem. Daí nas reuniões de amigos haver sempre uma charutaria de qualquer tipo, um refinado maquinário mental alimentado por vinhos, cigarros, cafés, filatelia, para promover na sala fechada a impressão de segurança que não existe fora da parede de fumaça e de paletós pendurados nos cabides. E no romance de Juan José Saer um desses sucedâneos causados pela antiga amizade é tanto a literatura quanto o crime. Os amigos ouvem uma história recente, contada por um deles, de 28 velhinhas assassinadas no prazo de nove meses em Paris, e essa narrativa é entrecortada pela pesquisa que fazem sobre um manuscrito de um romance de oitocentas páginas encontrado no espólio de um outro amigo. O leitor vai sendo aos poucos aceito por essa comitiva fechada, vai sentindo o odor do charuto Romeo & Julieta, vai olhando a paisagem da costa da Argentina quando eles viajam de barco durante a investigação do manuscrito. Tanto o romance herdado (que eles não sabem ao certo quem é o autor), quanto o assassino das velhinhas procuram a mesma coisa: um sentido que exorbite a pasmaceirice cotidiana, um gesto efêmero mas que resulte em alguma reação de truculência contra o relógio biológico sem alma em que todos estão inseridos em prontificado determinismo de nascimento e morte, sem que nada possa ser feito contra. O assassino que anda pelas ruas de um inverno excessivamente rigoroso parisiense, e o autor indeterminado que narra as diferentes visões da tomada de Tróia do manuscrito, estão cada qual burlando o caos cosmológico, imprimindo a suas maneiras uma sensibilidade elétrica contra o vazio sensitivo que atravessa toda matéria e todo espaço. Estão ambos brincando como duas crianças que desaprenderam o desespero e confeccionam em particular um mundo próprio em que exercem suas deidades com mais justiça que o deus inexistente. E por isso são tão meticulosos e paranoicos, são prontificados a morrerem pela causa criada_ e por isso o amigo finado que deixou o manuscrito, em seu caráter dissipativo, parece não ser o real escritor dessas páginas. Um escolhe o assassinato violento e covarde para elevar a sua matemática à solitária plenitude contestatória, o outro escolhe o retorno ao tempo, o recolhimento em uma lógica insular própria. Há longas e propositais descrições de minúcias da paisagem feitas por Saer, plantas tropicais mostradas em seus mais detalhistas pecíolos, cantos de pássaros em seus tons instrumentais mais particulares, como a dizer o quanto pode ser requintado o extravasamento exagerado de nossa prisão sinestésica.
O romance tem muito desse típico argentinismo cerebral que não pode ser mais criticado por ser uma assinatura geográfica. Bebe de Henry James, de Faulkner, e de uma solidão em que se treinou a fundo particulares néctares de percepção que tornam a voz de Saer tão diferenciada. Um livro soberbo.
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