sexta-feira, 18 de julho de 2014

O embaraço das crinas



Li o último texto de Vladimir Safatle no site da Carta Capital ontem, logo após ter feito meu vasculhamento habitual no Facebook para a cata sistemática de notícias trivialescas. No Facebook, vi um diálogo entre duas mulheres da minha cidade, uma delas anunciando a necessidade de contratar um empregado, a outra oferecendo o filho para a vaga oferecida. Tal diálogo era, como o costume, um prodígio do autismo do analfabetismo funcional que se vê em 99% das ocorrência nas redes sociais. Ainda assim, era espantosamente difícil de entender o que as duas mulheres escreviam. Chamei minha esposa para ler, eu já estando quase chorando de tanto rir, e ela também caiu na gargalhada, logo após passar a incompreensão natural diante o cubismo da coisa. As palavras usadas pelas ditas cujas chegavam a ser involuntariamente quase obras de arte de uma ainda não de toda explorada forma de expressão verbal. De certa maneira dava uma estranha inveja por elas serem tão articuladas e conseguirem se entender tão bem. Passou pela minha mente uma fagulhar dúvida se elas não estavam de brincadeira, mas é claro que elas jamais ouviram falar do Monty Python _ talvez uma inversão da cena do carcereiro corcunda e do carcereiro magricela em A vida de Brian, que, às portas fechadas, discutiam eruditamente filosofia e altos assuntos, mas em suas atividades de algozes eram exemplarmente bestiais e onomatopeicos. O Facebook já não me alegra mais. Antes era um vício; acessava-o de hora em hora, mas não tanto nas esferas mais elevadas de um Milton Ribeiro e de um Idelber Avelar (que para a cultura as redes sociais não me servem em nada: o que não substitui o livro só me cativa por sua inerente patetice). Mas depois vira como todo espetáculo circense demorado: os palhaços perdem a graça, os bancos de madeira passam a pressionar o glúteos, os leões já se revelam gatos apalermados pela magreza e maus tratos, os malabaristas deixam de fascinar pelo talento de enganar a gravidade e passam a intuir tratados sociológicos sobre o sub-emprego; até os cavalos brancos, sobre os quais quase é impossível se quebrar a beleza plena de seus eufemismos, revelam aqui e ali nas crinas a certeza de que foi usado um shampoo inapropriado, comprado a preços promocionais em queima de estoque de loja veterinária. No Facebook (que me faz pensar esse emprego recorrente de um F, assim maiúsculo, para uma empresa que, ao contrário das coca-cola e das volkswagen, ou das kolinos e das durex, enfrentam uma renitência em se tornar realmente um adjetivo popular: esse F em caixa alta me assinala como a premonição de uma meteórica derrocada nesses tempos em que marcas bilionárias se orkuteam_ vai esse epitáfio para você, orkut, ou Orkut, olvidado que nunca utilizei), também a exposição demorada me cansou. Atualmente pouco ligo o computador, para falar a verdade, e o Facebook (nunca Face, para mim) já esgotou todo fetiche que tinha para me oferecer. Algumas vezes a Dani ainda me mostra algumas pérolas amarelecidas pela previsão, como um veterinário formado na mesma faculdade federal que eu, e dono de um pet-shop local, que perpetrou um texto em resposta a uma acusação postada na rede social de uma cliente inconformada por um cheque depositado antes da data, que melhor seria para a gramática e para a manutenção da já tão combalida imagem intelectual dos veterinários que ele pagasse os juros do cheque especial da cliente em vez de se lançar naquela aventura linguística (só para dar um gostinho, ele se referia, enraivecido, várias vezes sobre sua loja como "IMPRESSA", assim mesmo em maiúsculas, querendo dizer... (pasmo!), empresa_ toma agora as consequências do descaso mercurial contra as aulas de filosofia e português do primeiro ano, hijo de puta! [nosso professor de filosofia era um espanhol de elegante e inabalável estoicismo diante a inconsideração]).

O diabo é que faleceu João Ubaldo Ribeiro hoje. Nunca li nenhuma das ficções de Ubaldo, mas li um volume de crônicas jornalísticas dele, acho que chamado Sempre aos domingos (não sei de onde tirei que se chamava Outubro ou nada, mas que pesquisei no Google e vi que tal título é da banda Bidê ou Balde_ misturei com Ubaldo?). Neste livro há uma crônica que fala de sua ansiedade quando lançou seu grande romance, Viva o povo brasileiro, e de como ele atormentava seus amigos todos os dias na esperança de que eles já tivessem concluído a leitura da obra. Um deles lhe respondeu: "Mas Ubaldo, o livro é um calhamaço de 700 páginas, vai levar um tempo". A crônica me fez rir muito e pensar que Ubaldo era um grande escritor, e que eu deveria ler seu grande livro. Mas nunca li. Talvez o estalo surja, não devido à morte, mas por esses interesses repentinos que já me veio em ocasiões inesperadas e que sempre me faz ler coisas não programadas, sequer suspeitadas. Procurei na Carta Capital, antes de escrever isso aqui, a mesma Carta da crítica de Safatle sobre o crime tradicional milimetricamente mantido contra a educação nacional, e até então não vi qualquer menção à morte do que pode se dizer seja nosso maior escritor da última metade do século passado_ talvez assim que eu concluir esse post e voltar lá, a machete já esteja em letras garrafais, como um conserto súbito pelo inexplicável esquecimento. Espantei-me por ver que a Veja digital dedica o mesmo cabeçalho que dedicou aos dias da Copa a Ubaldo; até me enterneci com isso. (Recordei do Jô Soares contando a uma emocionada filha da Elis Regina como, ao chegar nas lojas de discos de Nova York, que todas tem uma estante dedicada exclusivamente a Elis_ coisa que, ele afirma, nunca viu no Brasil_ ele arrumava os cds da antiga amiga, recolocava em ordem alfabética ou de lançamento, alisava as capas dos vinis.)

Será que para isso eu nunca obterei a cura: o espanto de que uma simples lesão de um jogador de futebol brasileiro mereça dias e dias de acompanhamento em destaque em todas as mídias, mas a morte de alguém como Ubaldo passe pelo esquecimento, mesmo que momentâneo? 

31 comentários:

  1. Tenho pouco interesse pelo Ubaldo e não me comove mais que a contusão do Neymar ocupe mais espaço midiático que a morte daquele. Mas arrisco dizer que o legado estético do garoto Neymar é já maior que o deixado pelo Ubaldo...

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  2. Ah, e em relação a Elis, posso confirmar que aqui no Canadá a uma seção inteira para ela nas lojas de música (por muito pouco não escrevo "discoteca").
    Ela é tida pelos lados de cá como uma grande diva do Jazz, do jazz brasileiro (nosso vulgo MBP). Ouvia outro dia desses mesmo a gravação do show dela em Montreux na Suiça, no Festival de Jazz de 1978, salvo engano. Mesmo ano do festival quando cantou uma mercurial Ela Fitzgerald. Elis estava acertada para fazer um concerto apenas. Mas como o show teve casa lotada, pediram-na encarecidamente para aceitar um outro compromisso na mesma noite. O segundo show também teve casa cheia... Foram se não me engano uns quatro ou cindo pedidos de bis... no final do segundo show, já se intrometendo no concerto do Hermeto Pascoal, ela canta com o bruxo uma versão de Asa Branca!

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    1. Eu gosto muito da Elis. Acho que "Faca amolada" ao vivo é um dos grandes momentos fonográficos.

      Neymar, Neymar... parece que a mídia deu um tempo com ele, por conta dos dez gols. Mas é muito moço ainda para poder ser canonizado mais tarde.

      Entre Ubaldo e qualquer coisa relacionada a futebol, não seria difícil a minha escolha. Não sei porque do silêncio da Carta, vai ver o Ubaldo foi cronista da Veja, ou era de direita. Essas mesmas coisas de sempre.

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    2. Dá uma lida em suas últimas colunas... http://oglobo.globo.com/opiniao/joao-ubaldo-ribeiro/

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  3. Charlles eu até achei "excessivo" as notícias sobre sua morte nos canais de notícias pagos que falava dele a cada meia-hora, mas era sempre a mesma matéria.

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  4. 1) CARTA INESQUECÍVEL (DE UBALDO AO FHC)
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    25 de outubro de 1998
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    Senhor Presidente,
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    Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de miseráveis que o senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo é que o senhor incorpora uma instituição basilar de nosso sistema político, que é a Presidência da República, e eu devo respeito a essa instituição e jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante legítimo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente, estará se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns milhares de crônicas que jamais lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.
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    Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria abdicar de alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há mantido em sua vida pública – o mais importante dos quais é com a liberdade de expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico. Mas, como dizia antigo personagem de Jô Soares, eu acreditei.
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    O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura ética e política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de causas em que acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar crença em Deus do que negá-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a seu próprio governo, como se não fosse o senhor seu mandatário principal. O senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo. Político competente é Antônio Carlos Magalhães, que manda no Brasil e, como já disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposição, mas pelo menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.

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    1. Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto escrevo, estou chorando.
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      Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável, com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa, a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão impunes. Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor, numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado. Como já pedi na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados, humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que seu antecessor que hoje vive em Miami.
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      Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá outra vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei deferentemente, pois não desacato o presidente de meu país. Mas não é necessário que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais.
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      2) Após a morte de Elis, não consegui escutar mais nada dela (e lá se foram 32 anos…). Desfiz-me de todos os discos e registros de sua obra. Quando me deparo com alguma entrevista na tevê, não consigo chegar ao final… Vou entristecendo… Mudo de canal.

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    2. É nisso que eu me meto quando tento defender intelectual brasileiro. Esse texto aí com certeza é da época em que ele bebia. Querer que o Antônio Carlos Magalhães fosse o presidente do Brasil é constrangedor. Faço como o Sheldon, pergunto: "Isso é sarcasmo?". Não precisa ninguém aparecer para me responder que NÃO.

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    3. Como disse, não conheço nada sobre Ubaldo, e minha motivação foi falar sobre as desproporções do tratamento da cultura e educação do país. Sei que o Viva o povo brasileiro é muito respeitado em alguns países fora daqui, na Alemanha, por exemplo. E não preciso lê-lo para saber que tal romance sobressai da produção do país. Mas o Ubaldo deve ter sentado o sarrafo no PT e no Lula, ah isso deve sim, para explicar porque a Veja está dando tanta repercussão à sua morte, e a Carta fazendo tamanho ostensivo silêncio. Que tem caroço nesse angu tem.

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    4. Ramiro, uma pequena procura e descobri:

      "A hora da saideira", de João Ubaldo Ribeiro

      Na semana passada, li um artigo do professor Marco Antonio Villa, que não conheço pessoalmente, mostrando, em última análise, como a era Lula está passando, ou até já passou quase inteiramente, o que talvez venha a ser sublinhado pelos resultados das eleições. Achei-o muito oportuno e necessário, porque mostra algo que muita gente, inclusive os políticos não comprometidos diretamente com o ex-presidente, já está observando há algum tempo, mas ainda não juntou todos os indícios, nem traçou o panorama completo.

      O PT que nós conhecíamos, de princípios bem definidos e inabaláveis e de uma postura ética quase santimonial, constituindo uma identidade clara, acabou de desaparecer depois da primeira posse do ex-presidente. Hoje sua identidade é a mesma de qualquer dos outros partidos brasileiros, todos peças da mesma máquina pervertida, sem perfil ideológico ou programático, declamando objetivos vagos e fáceis, tais como “vamos cuidar da população carente”, “investiremos em saneamento básico e saúde”, “levaremos educação a todos os brasileiros” e outras banalidades genéricas, com as quais todo mundo concorda sem nem pensar. No terreno prático, a luta não é pelo bem público, nem para efetivamente mudar coisa alguma, mas para chegar ao poder pelo poder, não importando se com isso se incorre em traição a ideais antes apregoados com fervor e se celebram acordos interesseiros e indecentes.

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    5. (Cont.)

      A famosa governabilidade levou o PT, capitaneado por seu líder, a alianças, acordos e práticas veementemente condenadas e denunciadas por ele, antes de chegar ao poder. O “todo mundo faz” passou a ser explicação e justificativa para atos ilegítimos, ilegais ou indecorosos. O presidente, à testa de uma votação consagradora, não trouxe consigo a vontade de verdadeiramente realizar as reformas de que todos sabemos que o Brasil precisa ─ e o PT ostentava saber mais do que ninguém. No entanto, cadê reforma tributária, reforma política, reforma administrativa, cadê as antigas reformas de base, enfim? O ex-presidente não foi levado ao poder por uma revolução, mas num contexto democrático e teria de vencer sérios obstáculos para a consecução dessas reformas. Mas tais obstáculos sempre existem para quem pretende mudanças e, afinal, foi para isso que muitos de seus eleitores votaram nele.

      O resultado logo se fez ver. Extinguiu-se a chama inovadora do PT, sobrou o lulismo. Mas que é o lulismo? A que corpo de ideias aderem aqueles que abraçam o lulismo? Que valores prezam, o que pretendem para o País, que programa ou filosofia de governo abraçam, que bandeiras desfraldam além do bolsa família (de cujo crescimento em número de beneficiados os governantes petistas se gabam, quando o lógico seria que se envergonhassem, pois esse número devia diminuir e não aumentar, se bolsa família realmente resolvesse alguma coisa) e de outras ações pontuais e quase de improviso? É forçoso concluir que o lulismo não tem conteúdo, não é nada além do permanente empenho em manter o ex-presidente numa posição de poder e influência. O lulismo é Lula, o que ele fizer, o que quiser, o que preferir.

      Isso não se sustenta, a não ser num regime totalitário ou de culto à personalidade semirreligioso. No momento em que o ex-presidente não for mais percebido como detentor de uma boa chave para posições de prestígio, seu abandono será crescente, pois nem mesmo implica renegar princípios ou ideais. Ele agora é político de um partido como qualquer outro e, se deixou alguma marca na vida política brasileira, esta terá sido, essencialmente, a tal “visão pragmática”, que na verdade consiste em fazer praticamente qualquer negócio para se sustentar no poder e que ele levou a extremos, principalmente considerando as longínquas raízes éticas do PT. Para não falar nas consequências do mensalão, cujo desenrolar ainda pode revelar muitas surpresas.

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    6. (cont.)

      O lulismo, não o hoje desfigurado petismo, tem reagido, é natural. Os muitos que ainda se beneficiam dele obviamente não querem abdicar do que conquistaram. Mas encontram dificuldades em admitir que sua motivação é essa, fica meio chato. E não vêm obtendo muito êxito em seus esforços, porque apoiar o lulismo significa não apoiar nada, a não ser o próprio Lula e seu projeto pessoal de continuar mandando e, juntamente com seu círculo de acólitos, fazendo o que estiver de acordo com esse projeto. Chegam mesmo à esquisita alegação de que há um golpe em andamento, como se alguém estivesse sugerindo a deposição da presidente Dilma. Que golpe? Um processo legítimo, conduzido dentro dos limites institucionais? Então foi golpe o impeachment de Collor e haverá golpe sempre que um governante for legitimamente cassado? Os alarmes de golpe, parecendo tirados de um jornal de 30 ou 40 anos atrás, são um pseudoargumento patético e até suspeito, mesmo porque o ex-presidente não está ocupando nenhum cargo público.

      É triste sair do poder, como se infere da resistência renhida, obstinada e muitas vezes melancólica que seus ocupantes opõem a deixar de exercê-lo. O poder político não é conferido por resultados de pesquisas de popularidade; deve-se, em nosso caso presente, aos resultados de eleições. O lulismo talvez acredite possuir alguma substância, mas os acontecimentos terminarão por evidenciar o oposto dessa presunção voluntarista. Trata-se apenas de um homem ─ e de um homem cujas prioridades parecem encerrar-se nele mesmo. Mas sua saída de cena não deverá ser levada a cabo com resignação. Ele insistirá e talvez ainda o vejamos perder outra eleição em São Paulo. Não a do Haddad, que aparentemente já perdeu. Mas a dele mesmo, depois que o mundo der mais algumas voltas e ele quiser iniciar uma jornada de volta ao topo, com esse fito candidatando-se à Prefeitura de São Paulo.

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  5. Pois é, Charlles, isso comprova que o Ubaldo foi um baita intelectual...
    Charlles, é óbvio que conhecia o texto do Ubaldo sobre o Lula... Penseim até publicá-lo em sequência... Mas sabia que você o encontrariairia... O diagnóstico do Ubaldo sobre o PT é muito semelhante ao meu...Contudo, na atual conjuntura, a longo prazo, a continuidade de Dilma é melhor do que a volta a 1994...

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    1. Tem-se que ver até quando essa "volta a 1994" não é apenas um silogismo de campanha, Ramiro. Mas eu não voto de jeito nenhum no PSDB; aliás, acreditando que a maturidade política de um povo seja o que realmente está por detrás do ditado "a voz do povo, a voz de Deus", o povo brasileiro de modo geral já decretou o fim do governo dessa direita no país. Sobre isso estejamos tranquilo. Eu queria, contudo, que houvesse uma boa alternativa, uma eficaz alternativa à Dilma. Sem outras opções, infelizmente, eu fico com ela_ mas aguerrido a meu voto em branco.

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    1. Essa notícia é de foder... Rubem foi um dos maiores... Alma da espécie...

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    2. O que complica mais a situação da Carta Capital. Como informar um escritor morto em seguida ao outro falecido bairristicamente desconsiderado? E se agora deu-se por esses dias, como diz minha avó, por as porteiras terem se aberto e uma carrada de escritor nacional comece a morrer? Essa atitude da Carta quanto a um alicerce cultural é medonha, medíocre, infantil, desonrosa. Poderiam fazer como a Veja quanto a seus desafetos, colocar as notas explicativas no texto sobre a torpeza da posição política equivocada do defunto, mas nunca faltar à necessária elegia. Eita esquerda burra!

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  7. João Antonio Guerra19 de julho de 2014 às 16:36

    Poxa, fico um tempinho sem aparecer, quando volto o texto dos três monstros já está postado... e nenhum comentário? Seus hereges! :) Tentando adicionar mais dois personagens àquela progressão que você pensou, Charlles, eu poria, na extrema esquerda, antes da baleia branca, Caribde (monstro grego, criatura de Lovecraft antes mesmo de existir Lovecraft); e talvez, na extrema direita, depois da águia, eu poria Augusto Matraga.

    Ubaldo é bom, e digo isso sem ter lido Viva o povo brasileiro. Tenho na minha estante, mas numa edição doada pela prefeitura do Rio às escolas municipais, que os estagiários não têm direito de receber mas eu recebi de presente de uma professora que não queria -- tenho várias dessas edições da prefeitura, todas ganhas da mesma forma, e digo que elas não são muito bem feitas, com uma porção de erros, capítulos sem nome ou que não constam nos sumários, poemas faltando, etc., e por motivos assim esnobei o livro do Ubaldo completamente. Tenho excelentes lembranças de O Sorriso do Lagarto e, principalmente, Diário do Farol; A casa dos budas ditosos já não foi tão bom, mas nem por isso desgostei; e acredito que a sua confusão com o nome Outubro ou nada seja porque Ubaldo tem um livro que também brinca com um nome de mês: Setembro não tem sentido.

    E pobre do Rubem... aliás, pobres de todos eles: 2014 está assassinando artistas a torto e a direito. Morreu a Nadime Gordimer ainda essa semana, e o Charlie Haden também!, mais cedo no ano morreu o Abbado, e agora morreu o Maazel! E isso sem nem querer falar do Gabo. Tá um agouro do caralho.

    Mas ei, Cormac Mccarthy faz aniversário amanhã.

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    1. Realmente, uns dias negros. Todos esses aí somam uma perda enorme. Estou em busca do retorno à boa forma física, e fazer 10 minutos no elíptico era um martírio ouvindo o pancadão eletrônico da academia. Foi só colocar fones de ouvido, que o esforço ficou invisível. Faço os 20 minutos de "Two folks songs", do 80/81 do Pat Metheny com o Haden, e fico com gás para mais meia hora.

      Realmente...

      Preciso ler mais McCarthy. A travessia e Todos os belos cavalos me impressionaram bastante. Baita escritor.

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    2. João Antonio Guerra19 de julho de 2014 às 23:07

      Estava ouvindo hoje mesmo o Metheny com o Haden, Charlles, mas juntos com o Ornette Coleman, no álbum Song X. A Nadine Gordimer eu conheço por causa dos meus estudos africanos, mas apesar de sentir seu talento nas páginas, não sinto a intimidade que tenho com um Coetzee ou um Virgílio de Lemos; o Rubem Alves eu tive o prazer de ver de pertinho, pois ele visitou a escola interna em que cursei o ensino médio, mas também não sou dos seus leitores mais dedicados; e o carinho que tenho quanto ao Ubaldo é contrabalanceado pelo fato de que li pouca coisa dele, só três livrinhos. Acabou que me senti muito mais triste com a morte do Haden e do Maazel (que foi um regente muito amável do meu Gustav Mahler), e estou num luto feliz, ouvindo tudo o que tenho dos dois.

      Fones são um troço que eu geralmente abomino. Mas, se é pra aguentar musica escrota de academia, valeria até cera de abelha nas orelhas.

      Li uma boa dose de Mccarthy, ele é realmente muito bom. Os blefes (não vou chamar nem de críticos nem de jornalistas nem de acadêmicos) costumam comparar Cormac com Faulkner, mas ele mais perde do que ganha quando fazem essa comparação. Cormac se sustenta muito bem sendo só Cormac.

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  8. Pois estamos mal de leitores no País... Sou razoável admirador de João Ubaldo e, como trabalho no centro da cidade, ontem estive na ABL, para prestar uma homenagem de simples leitor ao sujeito. Cheguei, por coincidência, no exato momento em que o corpo do escritor era desembarcado do veículo da funerária. Além de minha mulher (que estava comigo) e eu, não havia sequer um leitor da obra do sujeito lá, somente jornalistas que cobriam o fato. Isso talvez reflita o quanto o grande escritor da segunda metade do século XX é amado pelas massas do Brasil.

    E outra, paralela: seu texto sobre Moby-Dick, Charlles, ganhou só um comentário. Haja leitores!

    Saudações respeitosas,
    Leitor Altruísta

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    1. Uma pena saber disso sobre o funeral. Mas não é nada surpreendente. Esses dias vi nos comentários no blog da Cia das Letras, para um post de não me recordo quem, um certo número de pessoas falando o quanto leem pouco porque os livros são "chatos", trazem muitas partes "que deveriam ser editadas", etc, etc. Pra que escrevem em um site de livros, eis a questão.

      Acho que o Cassionei disse muito bem sobre isso, aqui:

      http://cassionei.blogspot.com.br/2014/07/a-morte-do-leitor.html

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    2. Esclarecendo: na ABL deu-se apenas o velório (e foi a ele que me referi). Não fui ao cemitério. O velório, diga-se, pelo menos segundo apurei, não foi aberto ao público.

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  9. Eu li Moby Dick, Augie March e o texto sobre os três monstros. Já li também A Pesquisa (adoro uma descrição de papel picado que se mistura com a neve) e acabei hoje o de Joel Dicker (Charles acertou em cheio: história legal com forçações de barra, repetições demais, prosa meeira e, bem, lemos os trechos de Harry que ele cita e temos certeza que aquele rei dos clichês nunca seria o autor mais respeitado dos EUA. Só faltou mencionar a alusão a Roth - e pelo começo, pensei que ia ser na linha de Zuckerman Acorrentado. Ah, também tive aquela ânsia de acabar logo para poder ler outra coisa - quando eu tava no meio do livro chegou meu caixote da Cosac com Huizinga, Stevenson, Tabucchi etc.) Isso é só pra dizer que a falta de comentários não é necessariamente a falta de leitores. Estamos aqui, lendo livros enquanto isso.

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    1. "A pesquisa" é excelente. Prova de o quanto os leitores de hedonismos instantâneos são falhos: apesar da escrita de Saer ser maravilhosa, vejo-os desistindo na cena do papel picado por julgarem uma solução fácil demais para o mistério. Só que o livro se multiplica (ou se divide dentro de si mesmo) nas últimas maravilhosas páginas, e vemos que a solução aparentemente comezinha é uma ardilosidade genial do autor. Tenho, desesperadamente, que ler os outros títulos do autor.

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  10. Errata: essa última frase ficou estranhíssima. O que eu queria dizer é que certamente nós, os leitores do blog, não comentamos no texto sobre Moby Dick, entre outros, porque estamos ocupados lendo livros (certamente alguns dentre os tantos aqui recomendados).

    P.S. Pelo menos eu estou. Me é uma felicidade imensa quando vem texto sobre algo que já li (ou tenho), e logo minha lista de leitura (ou meu saldo bancário) não será imediatamente alterada.

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    1. João Antonio Guerra19 de julho de 2014 às 23:14

      Frequentador do blog do Charlles tinha que ganhar desconto da Companhia das Letras. Só deixo essa sugestão aqui, e quem sabe... big brothers are watching us.

      Acabei de torrar uma graninha por causa da postagem anterior. Vou descobrir Saer.

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  11. De minha parte, não quis causar discórdia. Apenas, na condição de leitor, aferi a importância que se dá a um livro do porte de Moby-Dick (o hífen é parte integrante da edição de Parker e serve para distinguir o título do romance do cetáceo propriamente dito). Se quisesse de fato criticar os nobres leitores deste blog com meu comentário anterior, teria também logicamente de imediato criticado a mim mesmo, já que não comentei o texto sobre o livro de Melville... Apenas indiquei que grandes livros não necessariamente atraem leitores aqui e conclamei, a meu ver de forma bem-humorada, a presença deles por meio de um "haja leitores" irônico, com sentido de *apareçam leitores*, mas não fui compreendido pelo leitor Paulo. Por fim, já que está valendo defender-se por meio dos comentários que NÃO fazemos, ou seja, pela prevalência do silêncio sobre o que é efetivamente dito, registro que minhas intenções são sempre melhores que meus atos, mas, infelizmente, é por estes, e não por aquelas, que o mundo me julga.

    Altruisticamente,
    Leitor Altruísta

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    1. Relaxe, João Antônio. Seu bom humor ficou claro e evidente com o "Seus hereges! :)". :D

      Meu comentário é mais um mea culpa, porque sempre que vejo um texto sobre livro que já li fico com vontade de comentar qualquer coisa, mas nos últimos pensei: "dizer o que? Charlles já disse tudo..." Como o Bartleby (pra não tirarmos o foco de Melville), simplesmente preferi não fazer. Hehehehe.

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    2. Desculpe-me, Paulo, mas não me chamo João Antônio. Esse negócio de anonimato realmente pode confundir-nos todos, mas, dadas determinadas circunstâncias, tem suas vantagens, inclusive o apuro da hermenêutica.

      Despeço e subscrevo-me cordialmente.

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  12. Rubem Alves... Taí um intelectual que deu conta de manter a integridade em meio ao embaraço e a mutação da esquerda brasileira...
    Estudou no Princeton Theological Seminary e ajudou a fundar a teologia da libertação... ele foi o primeiro a testar ler o Cristianismo à luz da escola de Frankfurt. Antes de Gutiérrez. E bem antes dos irmãos Boff.
    Era a única voz lúcida e não-hipócrita no lado da Igreja protestante nos tempos da ditadura. Largou a igreja Presbiteriana, e eventualmente a fé, ao constatar que lucidez e pietismo não são possíveis e que o farisaísmo é a arma mais mesquinha nas mãos da política.
    Trocou Agostinho por Freud. Voltou a Agostinho. Beijou o anel de Nietzsche.
    Nunca se envergonhou do seu passado ativista junto á TL. Assentia e reconhecia a verdade de alguns dos nossos movimentos populares sem se deixar embaralhar às transformações do partido dos trabalhadores. Não se deixou seduzir pela tentação de se fazer de intelectual do partido. Não se deixou fazer em Frei Beto.
    Uma das mentes mais brilhantes dos últimos cinquenta anos no nosso cenário brasileiro, fez-se desaparecer nos últimos anos de sua vida, ainda que possuidor de todas as melhores faculdades intelectuais, das cátedras das universidades e dos programas da TV Cultura, para escrever livros para crianças.
    RIP Rubem

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