terça-feira, 24 de junho de 2014

Cachorro morto



Ontem eu estava em uma praça junto a dois amigos, conversando (nós que pertencemos a essa aberração genética de não nos interessarmos nem um pouco por futebol) quando despontou a vitória da seleção. De súbito, as ruas ficaram tomadas por filas de carros com as portas abertas para que o funk de seus sistemas de som ultra-reverberantes tomasse todo o espaço, com gente sentada nas janelas dos carros, ou nas carrocerias, gritando “Brasil”. Entre esses carros, passou um Vectra com todas as 10 pessoas nele de corpos quase que por inteiro para fora, inclusive um moça com uma menina de 3 anos perigosamente equilibrada em suas pernas. Passou um sem número de motos empinando e fazendo firulas imprudentes entre a comitiva de carros. Foi uma baderna e uma falta de educação e gentileza na desculpa da catarse ufanista por umas três horas, com lixo sendo atirado no chão e todo tipo de bestialidade. Esperei que tudo se acalmasse para poder voltar para casa, antes ligando para minha esposa recomendando a ela que não saíssem por razão alguma de casa. Falamos entre nós, os três amigos, sobre o exemplo de caráter dado pelos torcedores japoneses, que após o jogo de seu time nessa copa, limparam, todos eles juntos, o lixo do estádio, ensacaram e ficaram por horas do lado de fora atentos para verem para onde os sacos seriam enviados pelo serviço de coletas. Essa seleção e esse povo não me representam, assim como qualquer dos políticos de qualquer filiação partidária que estão no poder agora. Fiquei embasbacado tentando seguir a linha explicativa que me mostrasse por que esse povo todo se esguelhava e se comportava como bichos da pior espécie por causa de um time de futebol_ sem contar que até para desinteressados pela bola como eu era notório que o jogo em questão era como chutar cachorro morto, não merecia tanta comemoração. O que faz com que sejam tão apaixonados assim? Eu tentei usar de toda minha sinceridade para ver se eu seria possível de conter tanta paixão. Vejamos: patriotismo? Seria uma belíssima ideia; em junho do ano passado, com 130 mil manifestantes na Rio Branco, na hora da novela, eu senti um amor inenarrável pelo Brasil; senti uma vertigem gigantesca e gigantesca felicidade por ser brasileiro. Por aquele Brasil de junho de 2013, eu seria bastante ufanista. Na verdade eu tenho em mim uma compulsiva necessidade de ser bairrista, de ter motivos para hastear a bandeira no quintal de casa. Mas claro que o Brasil de junho/13 talvez não exista, nunca tenha existido, seja lá qual distorção lisérgica explique aquilo. E eu, assim como todos que passavam dependurados nos carros_ assim como aquela loira de shortinho minúsculo que dançava lubricamente na pick-up de um dos veículos da comitiva_ jamais teríamos a cara de pau de hastear uma bandeira do país em nossos quintais. Passado o frenesi da Copa, eu sei que ninguém dos 20 mil habitantes da minha cidade tem uma bandeira do Brasil. Sei que, passado a Copa e recolhido o lixo de seus souvenires, ninguém que frequenta esse blog tem uma bandeira do Brasil. Sei também que alguém hastear a bandeira em seu quintal seria visto com suspeição; possivelmente seria repudiado por loucura pelos vizinhos. E, contudo, estavam todos gritando ontem como se fossem patriotas puros, guerreiros defensores de uma nação com motivos de sobra para lhes insuflar um orgulho inexorável. Meu grau de cinismo, ou meu grau de bestialidade, não comporta esse tipo de torcida. E daí que a seleção ganhe contra um cachorro morto? Ou leve a Copa, como está previsto pela maçonaria das instituições dos poderosos da bola? Qual fundamento para sentir orgulho DISTO? Não tenho mesmo esse nível de auto-enganação.

2 comentários:

  1. O futebol, como tu sabe, é uma bobagem. O q não diz muito, quase tudo é, seria preciso gradualizar. Sobre patriotismo, precisaríamos ser sinceros: é outra bobagem, também ancorada em coisas muito, e cada vez mais, vagas e fugidias - mas tem no fundo aquele sentimento de pertencimento a um lugar; quando melhor, o sentimento de irmandade com aqueles que coabitam este lugar. Não existe pátria, que valha, sem pessoas. De outro modo, é só um ufanismo ignorante, tendente ao fascismo e à xenofobia. Viu como é uma questão de grau?
    O mesmo vale para o futebol. Eu, por exemplo, gosto da vivência da futebol - mas uma vivência que eu produzo, que inclusive é a todo momento achincalhada e distorcida por gente q entende, e vive, o futebol de maneiras que vão de encontro à minha. É do jogo. O mesmo ocorre na política, esse terreno mais amplo e mais complexo. "Junho de 2014" aconteceu, mas nunca terá sido uma coisa só - veja que foi mais de uma inclusive pra ti.
    Para mim, o que entra na classificação e na medida destes eventos é o grau de consciência com que os indivíduos nele envolvidos interagem e participam do jogo. Inclusive na negação de suas regras, ou do seu status. Por exemplo, não o fiz por meus motivos, mas poderia muito bem ter saído à rua a comemorar a vitória da seleção; vamos dizer que teria feito isso se fosse colombiano, na vitória contra o Uuguay. Isto, por si, não me coloca selo algum, a priori. Há dezenas de motivos para fazê-lo, como para não fazê-lo.
    Por isso, volto, e volto também a um ponto q tocou no post, educação é uma coisa tão importante. Porque nunca estaremos livres das bobagens. O problema é as pessoas fazerem coisas sérias, como MORRER ou matar, ou prejudicar os outros, por causa dessas bobagens.
    Em algum grau q tu desconhece, tu gosta de futebol. No verso, acho insuportável futebol em certa medida.
    Um abraço. Tantas coisas têm me tirado, momentaneamente daqui. Mas voltarei com vontade.

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  2. ["Graduar' seria melhor verbo, me parece. Faltou uma vírgula na penúltima frase tbm.]

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