terça-feira, 24 de junho de 2014

Não tem nada



Não se pode condenar o tom apologético de Melville em Moby Dick. O evangelismo primitivo desse livro não é mero ornamento inevitável vindo das crenças pessoais do autor, mas sua própria base de sustentação. Dizer "evangelismo" em referência a uma obra composta na mais alta esfera esotérica é incorrer no risco de cair no esteriótipo de estupidez massificada que tal termo com toda razão possui nos dias de hoje. Moby Dick tem a mesma visceralidade sensual que os grandes pastores de almas tinham no tempo em que foi escrito; tem essa mesma ingenuidade poderosa que expressa uma lucidez ilimitada que Borges disse ser o mote dos fundadores de religiões, tais como Whitman e Emerson, Blake e Swedenborg se aproximam de serem fundadores de religiões. Há tanta exultação adâmica em Moby Dick que é impossível ao bom leitor que este ainda fique atolado com os pés na realidade cínica e ultra-material corrente; é impossível que ele não seja abduzido pelo supremo convencimento dos símbolos e da loucura do livro. D. H. Laurence, no ensaio que acompanha minha edição de MD, condena o Melville humano com seus pecadilhos de afetação e sua seriedade pedante que hora e outra submerge o artista pleno, e diz que quando essa parte humana desaparece e ressurge com toda força o artista magnífico ninguém é páreo para Melville. O artista magnífico já nos arrebata na primeira página, seguindo adiante nas tantas anedotas e retratos de homens que vivem em uma dimensão peripatética contrária a toda sociologia; o artista Melville se mostra de forma solitariamente precoce sua localização em um tempo muito à frente dos outros grandes escritores do período, em sua decisão chocante de tratar do tema fundamental utilizando um quase infantil enfoque em um monstro marinho. Pode-se mesmo ouvir as consciências críticas que menosprezaram por completo MD durante quase meio século se justificando pela desfaçatez de Melville em tentar arrombar o tema fundamental não pelas portas usuais e mais prementes, não pelas revoluções ou guerras, ou pelos vícios urbanos, ou pelos assassinatos, pelos adultérios e a decadência de grandes famílias, mas, inusitada e autisticamente, através da figura colossal da baleia branca e de seu universo náutico específico. Melville antecipa os célebres escritores autistas ao colocar na boca de seu narrador o desejo de que fosse aceito no navio baleeiro apenas para ficar em seu canto pensando em nada, divagando sobre os significados filosóficos da vida, imolado da escala produtiva e tolerado com saudável indiferença. Melville viu tão mais peculiarmente longe que seus compatriotas das terras espirituais da escrita que foi o fundador de uma forma de dissipação preguiçosa que teria sua importância política impactante na imagem da nulidade humana do século XX na opção pela não-coaptação. Em sua época, ficou para trás do caos urgente e das incendiárias insurgências na literatura das transformações políticas que se viam em Stendhal e Dostoiévski, apenas para sair de sua hibernação anos depois para ser um tipo de criador moderno que sobrepôs-se a todos os outros com seu ineditismo em criar a baleia e, de forma mais revolucionária, esse personagem de profundidade inaudita que é o escriturário Bartleby. D. H. Laurence está enganado, pois quem criou uma figura como Bartleby jamais poderia falar do púlpito a não ser no idioma elevado de Emerson e Whitman.

Por isso Moby Dick tem um evangelismo transbordante de felicidade, a felicidade do louco de deus que abandona as convenções de uma sociedade em franca atrofia para confrontar o terror divino. Surpreendi-me por nunca ter lido esse termo antes, terror divino, que contudo parece tão óbvio. A baleia é a forma como esse terror divino, que por centenas de páginas vinha sendo abordado pela tangência, se corporifica na nudez da linguagem, e, para exorcizar o perigo do cinismo, daí a preparação toda de Melville em utilizar de um tom talmúdico grandiloquente. Sua grandiloquência não tem cinismo, mas tampouco tem a moral da visão evangélica de Tolstói. Laurence aceita a generosidade de que Moby Dick atinja todos os símbolos profundos de representação; aceita que a baleia seja Jesus, sem contudo abalizar com uma mera observação os riscos simplistas de apanhar a coisa somente por aí. Pois a presciência do criador de Bartleby nos dá também na imagem da baleia os símbolos inevitáveis do frenesi dos que pertenciam à grande nação americana quando ela arrebanhava em êxtase as características mais melífluas do império futuro, oferecendo a inspiração de perceber a queda. A baleia, vinda da mesma mente capaz de escrever sobre Bartleby (esse superior personagem que paira diretamente sobre Kafka, Musil, Joyce, Faulkner e Walser), traz a insinuação aráutica do monstro que está no final da estrada de todos os sonhos, da deformidade imperceptível mas frutificante que serve de sustento para todas as telas da liberdade. Talvez por isso o monstro seja durante todo o romance uma prefiguração, uma música indistinta escutada sempre ao longe, nunca palpável, nunca manifesta em suas linhas reais terrenas, nunca abarcável. Por isso o tom místico e sonhador, que vem por detrás de todas as tendências doutrinárias da voz de pastor de Ishmael, seja o personagem verdadeiro de Moby Dick. Por isso a tolice da leitura lânguida dos que acham que os diversos capítulos preparatórios sejam chatos e vagantes, infelizes surdos à retumbante poesia de Melville, à sua canção angustiada de tanta necessidade pura de enlevação. O monstro de Melville é o terror divino em estado puro, devastador em sua infinita indiferença que perdura por sobre todas as pequenas intenções humanas, mesmo as transvestidas com os contornos trágicos seculares da vingança, e sendo essa indiferença a raiz do motivo de todo o romance ser contaminado com essa alegria de um suicídio sagrado, de uma emancipação através de uma forma do Nada jamais passível de definição.

O monstro de Melville é tanto Cristo, quanto a América, quanto a Revolução, quanto a alma humana em seu esplendor de busca altruística mais nobre. É espantoso que não haja nenhum texto de Borges sobre esse romance, Borges que era tão sensível a esse tipo de percepção alienígena senciente. Moby Dick ainda é e continuará sendo por muito tempo o grande romance subestimado, aceito no cânone por sua estatura inequívoca mas nunca realmente percebido sem que seja dependente de seus penduricalhos geográficos de ser o grande romance americano. Como se esse que é o maior dos romances esotéricos pudesse ser mutilado com interpretações ufanistas.

Ele deve ser lido em escala contrapontística causal aos outros dois grandes monstros que derivaram do Cristo-baleia e da América edênica-baleia de Melville: o Old-Ben, o urso exilado e cansado de glória assassina de Faulkner, e Calígula, a águia caçadora de iguanas de Augie March, de Bellow. Old-Ben, o único ser verdadeiramente incorruptível fora do reino dos homens escassamente povoado de homens incorruptíveis, já escoou há tempos seu terror divinatório, sua fúria deística ilimitada, sua indiferença selvagemente elegante por tudo que não fosse força e assassinato; tornou-se, hereticamente, um animal velho carregado de medo, cujas últimas ações é a dança desesperada para incutir terror aos filhos e netos de seus antigos inimigos abatidos por ele quando ele era jovem e cheio de uma saúde monástica, a dança para ser deixado em paz. Old-Ben, contudo, ainda é temido por seu passado de glória, por sua exuberância violenta, mesmo todos sabendo que não passa de um pobre ancião querendo arrego; e por isso, seus caçadores incansáveis, herdeiros dos antigos caçadores fracassados cuja moral fora abatida pelo urso, arranjam todos os estratagemas possíveis para destruir o que resta do antigo Monstro, de seu potencial religioso residual. E os novos inimigos de Old-Ben apresentam todos os evidentes sinais de que os novos tempos em que o monstro purga o final inglório de seus dias é destituído por completo de qualquer distinção da antiga nobreza: o cão gigante é uma simples fera bestial, sem inteligência, sem dignidade, sem porte, tanto que sobrevive entre a corrente de seu ódio irracional trancado em uma cela escura, sem vistas para o exterior. Todo o mundo externo a Old-Ben sucumbe à evanescência absoluta de sacralidade: acaba-se o terror divino e acaba-se também, com um suspiro elliotiano, tudo o que antes revestia a simplicidade objetiva de milagre e religiosidade. A última vingança, então, ainda é de Old-Ben, a derradeira vitória ainda parte dele, pois de sua juventude vinha o caráter dinástico das grandes famílias americanas que então levavam o selo de poderem andar pelos campos do Senhor como beneficiários legítimos da criação, americanos genuínos com céu e terra ilimitados, sem apreensões de posse e sem serem vítimas da inclemência das labutas para a povoação do Éden lhes outorgado. A novela de Faulkner é impregnada de notas de compra de armazéns e títulos imobiliários que serviram a povoar a aldeia americana, numa arqueologia que só é pueril na ardilosidade genial de Faulkner que consegue fazer dessa páginas um epitáfio da força redencionista abortada pelo sucumbimento do homem à tentação de nomear as coisas, de dar seu nome à terra, de promover cercas e decretar-se proprietário. Old-Ben é o empobrecimento da baleia quando os heróis possíveis para um novo mundo se restringem a não irem para o mar, quando os heróis se instalam na terra segura e deixam para lá os grandes poderes da dissipação e do ócio. Old-Ben é o Cristo institucionalizado e sublevado de sua aspereza de absoluta liberdade, corrompido pelas igrejas formalizadas pela sustentação do lucro, da política cartorial que cria castas de escravos a serviço da propriedade, e da economia eunucoide que transforma filósofos caçadores em obesos fuxiqueiros sentados nas escadas dos armazéns ao final da tarde. Old-Ben é a nova américa sem nada de novo, em letras minúsculas, o cumprimento do previsível.

Bellow fecha a tríade. Se Old-Ben ainda era capaz de oferecer certa distinção com sua decadência, certa lembrança dos antigos sonhos de dignidade, a águia bellowiana esvazia Moby Dick com a mera transformação na paródia. Não há mais Cristo aqui. Nem monstro a águia consegue ser, empoleirada na caixa de descarga de um pequeno banheiro de uma vila perdida mexicana. Quando ela é levada a testar seu terror divino, a magnificência e larga nobreza de suas asas, na caça da iguana, ela simplesmente despenca no chão sobre o rastro do réptil em fuga vitoriosa, tal qual um comediante em um filme pastelão. E fica piedosamente murcha em seu canto, ciente de que não tem nada.

Um comentário:

  1. olá , adoro o seu blogue...acho você irá se identificar com isso aqui:
    http://www.truthdig.com/report/item/chris_hedges_jan_27_column_transcript_collapse_of_complex_societies_2014012

    ResponderExcluir