segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Dickens de Bogotá



Devo confessar que a literatura produzida na juventude dos grandes escritores_aquela escrita fresca, ainda exultantemente desequilibrada e carregada de uma auto-indulgente pretensão_ não me atrai muito. A maior parte dos "primeiros romances" que desova nas livrarias em reedições festivas por algum advento literário em torno de um velho escritor recém premiado com o Nobel, ou o Booker Prize, ou o Pulitzer, não apela a nenhuma curiosidade de leitor em mim. Basta lembrar o quanto são tristes as primeiras investidas de um Faulkner nas letras, e já me ponho bem distante dessa linha de estudo antropológico de desencavar da terra bruta da adolescência os vestígios premonitórios de como o organismo dali derivado se aprumou e conseguiu se manter em sua envergadura adulta. Porém, tenho uma exceção sentimental: os textos do Gabriel Garcia Márquez de quando ele era um efebo de 19 anos, compilados no Brasil pela editora Record no volume 1 das obras jornalísticas do autor, intitulado Textos do Caribe. Leio-os desde que eu mesmo tinha 19 anos_ foi a primeira obra do colombiano que li após Cem Anos de Solidão_ e volta e meia retorno à minha edição antiga, publicada pela mesma editora, em dois volumes. São textos frescos, muitos de uma ingenuidade corajosa em que, inadvertidamente, se revela a falta de escopo interior disfarçada pelo desbravamento algo desesperado do autor pelos seus talentos literários. Alguns, ou muitos, são francamente ruins, mas existem pérolas que podem ser colocadas entre o que GGM escreveu de melhor em toda sua bibliografia, e mais um sem número de crônicas soltas e que não falam absolutamente de nada, mas que se lê com deslumbramento.

Essas crônicas foram apelidadas pelo jovem GGM de "jirafillas", pois eram publicadas em colunas pescoçudas do jornal colombiano "El Herald". O mais curioso e gratificante delas é a energia de Márquez, sua fé inabalável na escrita, o quanto a pressa de entregar um texto por dia oferece ao leitor conhecedor de sua futura grandeza uma generosa visão na oficina de rascunhos do romancista. Há mostras claras de que Márquez já trabalhava em Cem Anos de Solidão desde essa época, o que confirma suas declarações de que a escrita dessa obra lhe custou um ano e meio de exercício físico, mas trinta anos de maturação da ideia. Tais mostras são os vários rascunhos publicados no jornal, em que aparecem os personagens ainda sem nome, ou com reparos de nomes que deixam antever suas encarnações finais, ou com nomes trocados, mas que, por mais que sejam diáfanos na concepção de seu criador, apresentam as condições básicas da solidão e da loucura triste do selo garciamarqueano. Na época, GGM oferecia seus rascunhos como sendo de "uma novela em que estou trabalhando já faz anos" (aos 19 anos!), e que tinha o nome provisório de "A Casa". Afora essas maravilhas, assinadas com o nome verdadeiro do autor, há as tantas fantasias despirocadas em que ele, talvez para marcar o caráter experimental, assinava com o pseudônimo "Septimus".

Esses outros textos tem a frescura dos sketches by Boz do Charles Dickens adolescente. Vemos nas proezas verdes de Garcia Márquez o mesmo ilimitado tiro no escuro da investida no terreno da criação que vemos no inglês, de forma que a incompreensão e o rebuscamento de algumas partes de pura febre literária perdem em clareza mas ganham em ousadia e falta de pudor, em transgressão juvenil às normas. Daí que os retratos de personagens bogotanos são deliciosos, os redatores madrugadores dos jornais; as velhas matronas das casas desoladas de sol; os feiticeiros dos povoados assolados pela chuva eterna, perdidos na floresta tropical; a índia de pano colorido na  cabeça que viaja no trem, altiva e esnobe; os tantos intelectuais shawnianos que transitam temporariamente pela cidade colonial onde nasceram mas cujos destinos é deixarem o jovem cronista esbaldado na mais profunda nostalgia ao emigrarem em definitivo para Nova York ou Paris. Esses textos são cheios de chuva, de uma graça tocante e uma certeza da predestinação  inabalável (todas as promessas feitas pelo jovem GGM são cumpridas), carregados de móveis de madeira em hospedarias transitórias. Uma certa vez, antes da internet, planejei mas não realizei a proeza quixotesca de escrever ao velho Máquez para que ele voltasse a essa imperfeição e liberdade salvadora de sua juventude, e parasse de vez com as fúteis besteiras perfeccionistas e sem gosto que vinha produzindo após Nos Tempos do Cólera

2 comentários:

  1. Livro dele, eu só li Cem Anos de Solidão mesmo. E o fiz há muito tempo, de modo que eu precisaria reler para tentar encadear todos aqueles Buendía da obra. No mais, acho que você sabe, ele sofre de demência senil. É degenerativa e está em estágio avançado, segundo revelou seu irmão no ano passado.

    Fábio Carvalho

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    1. Tenho uma amiga que já leu o Cem Anos umas dez vezes, e ela monta sempre uma intrincada rede gráfica com os nomes dos personagens. Eu jamais seria capaz de fazer isso, na minha leitura atenta mas não dogmática_ o que vale também para um autor bem mais complicado em termos de enxurrada de personagens, o Dostoiévski.

      A demência senil do GGM é uma das coisas mais tristes do mundo das letras, ainda mais para fãs de toda a vida como eu. Mas não se trata de uma fatalidade_ no que estas tem de inesperado_, mas de um fardo genético. Se não me engano o avô que deu ensejo ao velho José Arcádio sofreu da mesma doença, assim como o personagem.

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