sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Memorial dos vagões escuros


Há uma diferença de visão quanto a assassinos seriais que revela o tipo de fixação iconográfica pela cultura de morte violenta tida nos Estados Unidos e em alguns países da América Latina. Os EUA, país por natureza onde esses assassinos ganharam uma personificação elegante que os aproxima de anjos sentenciadores atrás de catarses pessoais na escolha de suas vítimas, alimenta uma indústria em torno de seus matadores seriais que parte da vedetização de rostos estampados em camisetas até o leilão de objetos periciais de cena de crimes_ o que revela a prestimosidade e corrupção das instituições do estado na séria e organizada exploração desse nicho de mercado. Tudo é feito num nível de elevada sofisticação do fetiche, numa mestria em depurar todo sinal de tragédia e sofrimento de vítimas e sobreviventes, oferecendo a assepsiada plasticidade com a mesma inofensiva beleza da logomarca, de tal forma que essa vanguarda do gosto transfundido para o campo sem culpa muito além da moral é uma das revoluções de marketing que os EUA pode vangloriar ter criado. O assassino serial é vendido com a mesma catarse com ligações imediatas com a felicidade que uma Coca-Cola; mesmo consumidores que não adquirem a reprodução direta do rosto de Charles Manson em uma caneca usufrui do produto pelas inúmeras formas de compras derivadas de jornais, dos filmes, dos livros, música e dos canais a cabo, dedicados em primeira instância a repercutir o êxtase do assassino.

Uma das cenas clássicas no imaginário americano do angelicismo do assassino serial é um homem solitário andando a pé por uma das grandes rotas continentais que cortam o país, usando jeans e cabelos compridos, óculos redondos e barba, transmitindo o anacronismo perigoso mas irresistivelmente sedutor de alguma antiga ideia morta, o hippieismo, a dissolução sexual novidadeira, as aventuras do mar de um marujo caído em desgraça expulso da corporação, a abstinência voluntária ao capitalismo. Esse homem é um desagregado social e um justiceiro cuja falta de profundidade filosófica em  seu gosto para matar é parte de sua liberdade e sua ausência de peso (ele próprio é a lei e não a hermenêutica em torno da lei), e por isso é tão imprescindível parar o carro e deixá-lo se sentar no banco do passageiro. É tentador se submeter a ele, no isolamento do deserto idílico do país onde os sonhos são creditados à predisposição histórica da miscigenação racial e de uma geografia para a qual convergem os perseguidos e os desgarrados; o povo revolucionário sob a crença redentora da democracia e do protestantismo, a terras ilimitada por onde vagabundos inominados transitam por todos os cantos antes de se tornarem executivos dirigentes de mega-empresas. Aceitar que um assassino serial entre no carro é entrar em contato físico com os poderes da história, ter a oportunidade de uma conversa com Deus, como no episódio de Star Trek em que os tripulantes da Interprise atinge os limites do universo onde Deus mora; Deus com sua pureza de intenções cuja mente inapropriada de seus interlocutores não consegue perceber nada além de uma maldade apurada e ultra-exponencial.

Essa característica divinatória do assassino serial vem tanto da sensação de plenitude anestesiada da ideia de viver-se na Jerusalém do consumo americano, em que a aproximação desarmada ao assassino nos retira do torpor, quanto do desdobramento último a que chega a progressão dessa catarse na fulgurante revelação de que ele_ o assassino_ representa a acusação de nossa falsa posição, de nossa queda em um engodo que simula plenitude mas é apenas a simples corporificação da compra e venda rotineira. A astúcia do produto não consegue ir além do esgotamento de seu conteúdo teológico supérfluo; o saciamento nunca oferecido do arrebatamento que o assassino tem a oferecer nos alivia da supressão súbita da carga de serotonina, e o pico da depressão advinda por se defrontar com a pobreza insubstancial da imagem esgotada exige que um outro prosseguimento do fetiche seja oferecido imediatamente. De nossa poltrona e do refúgio caseiro, nos agarramos a um novo pacote de aquisição que traga a sensação de pertencimento das Távolas Redondas, dos desertos inóspitos lá fora e dos cavalheiros templários de um mundo ideal e legitimo. Precisamos de recapitulações urgentes do assassino, do vagão escuro e da lâmina em riste que Manson disse quase numa abusada lírica da catarse em uma de suas entrevistas mais conhecidas.

A segunda cena clássica é a do assassino urbano, menos poético e menos independente, cujo excesso de vínculos com o material exuberante da cidade o torna atrativo por outros meios, pelo que ele consegue mostrar de animal inteligente totalmente adaptado à vida moderna. Se o primeiro é um escape para a volta da primeira utopia, o assassino urbano, em seu furgão e sua janela aberta através da qual ele alveja a vítima com um disparo acionado pela mão esquerda, é o socorro da distopia. O primeiro é uma emersão, o segundo é uma imersão. O segundo não quer fugir de lugar nenhum e não é um anjo; ninguém mais que ele está instalado com absoluto domínio e conforto em seu habitat natural. Não é um assassino esotérico como o assassino caçador das estradas, mas um assassino que tem uma similaridade com os abutres e seres decompositores do reino fúngico, através de sua função social de fazer sumir um certo padrão de lixo humano. O assassino serial urbano é o herói errático das estatísticas, o desvio padrão que na mente do consumidor é responsável por parte das cifras numéricas correspondentes a um hipotético controle populacional que não vem do câncer, dos acidentes de trânsito e dos assassinatos domésticos. Seu louvor popular calmo vem de que ele é um deus ex-machina para a solução de enredos das depravações naturais das metrópoles, para fazer abduzir prostitutas, homossexuais e cidadãos na escala mais baixa do darwinismo que sucumbem pela distração e falta de sorte. Ele é o gladiador de certa forma muito cansado, que tem algo do servidor de expediente que bate o ponto e anseia pelo sofá de casa e pela aposentadoria, que faz a tarefa de saneamento que intimamente necessita o consumidor que observa a arena de suas casas fechadas das quais nunca saem após as 18 horas. Daí que perceber a preferencia nacional por um ou outro revela em que estágio está a sociedade. Nas décadas de 40, 50 e 60, por exemplo, o assassino caçador esotérico das estradas predominava, o assassino que fez a fortuna de Truman Capote, de Cormac McCarthy futuramente, os Doors e do comércio em torno dos assassinatos Tate-LaBianca. Quando o bucolismo beatnik ficou defasado e a América entrou em sua era Reagan e seu avanço modernizador para as grandes cidades, o assassino decompositor suplantou por completo o primeiro como objeto de culto, por seu eficientismo, por seu pragmatismo contra-romântico, fazendo a fortuna de Norman Mailer, Easton Ellis, das séries televisivas metalinguísticas como Dexter, e do cinema como nunca antes visto.

Há dois casos memoráveis de assassinos serias urbanos na literatura contemporânea. O assassino que dispara do carro em Submundo, de Don Dellilo, e o assassino por detrás das centenas de mortes de mulheres na fronteira entre os Estados Unidos e o México, em 2666, de Roberto Bolaño. O assassino de Dellilo nos é mostrado de maneira muito corriqueira, muito humana, bastante longe do naturalismo opressivo e soturnamente patológico dos assassinos de A Besta Humana, de Zola. Podemos conviver com ele e compartilhar seus conflitos, na comunidade de desabafos clínicos da psicopatologia cotidiana em que todo mundo tem uma anomalia mental compartilhável. Delillo nos confronta com nossa falta de suspense quando ele faz digno de que nos espelhemos em um matador absorvido pela luminosa solidariedade da tarde. Sua compulsão por matar é regredida em importância a um nível prosaico de desconserto de perspectiva em que está submetido a artista plástica que pinta sucatas de aviões no deserto e do empresário que trabalha com a reciclagem de toneladas de lixo internacional. É o assassinato depurado de fetiche que David Fincher quis passar em Zodíaco e Spielberg em desprezar o amuleto excitável da representação do assassinato de Lincoln. Poderíamos nos identificar com um serial killer, nesse estágio de ultra-humanização motivada por nossa posição como consumidores incontroláveis para quem especulações livrescas já não conta em nada?, é a pergunta perigosa que Dellilo nos faz no excepcional Submundo, ele que pensa seus livros trancado por seis meses em quartos escuros, como disse um crítico. Já Bolaño nos oferece o assassino serial das Américas subdesenvolvidas, como nos oferece Juan José Campanella no maravilhoso O Segredo dos Seus Olhos: uma aberração de nossas moléstias do passado de aceitação política, um fantasma do sub-consciente de nossa história que se encorpora e ganha força em cada vez que os ditirambos de nosso destino traça o ato cômico de mais uma subserviência coletiva.

5 comentários:

  1. Bom texto.
    O filme de Juan Jose Campanella é soberbo mesmo. E o plot surpreendente que se revela no final, sobre o destino do assassino, sobre sua punição de Sísifo, me pareceu um recurso das novelas fantásticas de Adolfo Bioy Casares.
    Perdi toda a coragem de ler Don Delillo depois de assistir Cosmopolis. É certo que David Cronenberg tem a mão certa para estragar qualquer roteiro com aquele seu culto ao inverossímel e o seu pechant por diálogos diáfanos. Mas segundo li por aí, o pretensioso de Metropolis é todo tirado de Delillo mesmo.

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    1. Tenho o filme Cosmópolis aqui mas nunca o vi. Dellilo não é para ser desprezado de maneira nenhuma, meu chapa. Os livros dele traz uma impressão de ineditismo que foge às correntes literárias, algo que por mais que me esforce não consigo definir. Alguns o comparam a Pynchon, mas ele destoa bastante do autor de Leilão do Lote 49, sendo semelhante apenas nos elementos extra-salões do ambiente literário. Sem a mínima dúvida, ele é um grande escritor. A capacidade dele de produzir sentenças impactantes é algo pouco visto. E seus diálogos estão no topo dos melhores da literatura. Submundo é um marco. Acontece que ele é meio que vítima da exuberância da literatura norte-americana: há tantos relevantes escritores por lá que o excesso esconde um de seus maiores autores, que é Dellilo.

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  2. É realmente perturbador a quantidade de títulos de romances policiais cujos protagonistas são psicopatas.

    Eu tenho o autor deste blog como referência da literatura contemporânea (puxa, reli por muito tempo os meus oitenta livros físicos). Eu venho aqui, anoto um nome e vou às livrarias de e-books. Quando encontro um é uma festa. Até agora, dois autores resenhados pelo autor me encantaram: Pynchon e Coetzee.

    É tanta coisa boa, que, houve uma época que comentei com Paulo Dourado, um baixinho retado, que é da minha região e me apresentou o blog, sobre a hipótese de Charlles Campos serem vários autores.

    Palavra! É o único blog que faço questão de ler - quando não estou envolvido com o meu Kobinho. Porque Charlles aponta, se não a direção correta, pelo menos os caminhos possíveis para a compreensão de muitas coisas.

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  3. O "serem" aí - acho que é no singular...

    :D

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    1. Que isso, Milton. Muito obrigado pelas palavras carinhosas. Fico feliz que meus textos sirvam para te apresentar a esses autores. Feliz MESMO!

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