terça-feira, 27 de setembro de 2011

Monsieur Pain, de Roberto Bolaño


Quando dei por terminada a leitura de mais esse Bolaño, tive que me render à possibilidade inevitável de, enfim, considerar seriamente que o autor chileno seja mesmo o grande nome das letras que a imprensa literária tanto propagandeia. Junto a essa cogitação, vem o adendo indispensável de que eu não o tenha levado tão a sério justamente pelo empenho desta mesma imprensa em iconizar Bolaño, em macdonaldizá-lo (para usar uma figura cara aos demais novos autores latino-americanos, que se empenham em fazer com que um Garcia Marquez desapareça, pois romancistas coadunados pelo sistema não tem uma segunda oportunidade sobre a Terra). Daí que só a leitura extenuante de Bolaño para quebrar a barreira da adoração e restituir a originalidade que Bolaño possui, entrando em seu universo primordial no instante anterior em que a morte lhe conferiu essa sorte aziaga de pintor neerlandês em herdar a fortuna e a fama ao seu inútil fantasma. Resgatar o Bolaño das prateleiras esvaziadas pelo roubo dos fiéis das livrarias de Portugal; dos cursos de sofisticados doutores norte-americanos que assinam ensaios críticos antológicos na New York Review of Books; dos tantos autores nacionais que tentam ser empossados em sessões de ouijas e ter as mãos dominadas pelo mesmo movimento inspirado que escreveu as mil páginas de 2666. E restituir o Bolaño imaculado de quando era um vigia noturno em Paris, ou que passava noites na companhia de out-siders em aprazíveis cavernas espanholas, ou que viajava sem rumo pelos desertos políticos de uma América Latina que jamais se transformaria na route 66 e jamais o deixaria tomar whisky impunemente na carroceria de uma caminhoneta enquanto ele se angustia poéticamente pela magnífica derrocada do espírito continental rumo aos escalões subterrâneos. Sair rapidamente, de forma a não deixar nem a poeira das sapatilhas na soleira da porta, de blogs como o de Cassionei Petry quando as vistas apanharem a faixa sacramental do culto ao maior dos romancistas; cuspir enviesado e com cara de ofensiva repulsa quando ver mais uma vez o Milton Ribeiro ou o Ronaldo Bressane esculpindo as palavras do mestre em placas de bronze. Só assim, aceitando aquém do barulho do tráfego da movimentada rodovia e se refugiando na solidão opressivamente silenciosa das páginas de romances como Monsieur Pain, é que se pode começar a ter a real dimensão desse Bolaño que, para suplício das minhas forças, devo ceder à inexorável hipótese de que seja a maior presença literária no horizonte desse lado de cá do hemisfério e nesse lado da costa do Pacífico.

Essa dedicação centrada à obra e não à etiqueta é necessária para apreender a força desse curto romance, escrito por Bolaño no início dos anos 80 e que revela uma voz incipiente quase indistinguivel do restante de sua produção. Em Monsieur Pain vemos um Bolaño extasiado com o aprendizado da escrita, testando seu talento, esforçando-se por imprimir sua voz própria nas emulações de seus escritores preferidos, brincando com a cenografia e com as disposições de luz e sombra do ambiente. Essas identificações de formação, que nas mãos de um artista mais óbvio seriam algo desmotivador para a leitura, em Bolaño ganham um interesse genuíno por dar ao leitor o atestado prazeroso de que o autor de Detetives Selvagens não se limitara apenas à experimentação, mas já encontrava sua voz própria e o que se tornaria o grande tema de seus escritos. O que é muito gratificante aqui é que o autor, com menos de 30 anos quando compôs esse romance, parece ele mesmo se surpreender do potencial que se anunciava em seu ofício, assustando diante a ebuliência de situações, pausas, personagens e diálogos que nasciam de si à medida que a história ia se constituindo diante de seus olhos. Por isso este romance é como aquelas pensões dostoievskianas cheias de quartos de sótão e corredores escuros, onde se esconde da vida tumultuada da metrópole uma insurgência de seres originais, exóticos pertencentes ao mundo paralelo dos submundos particulares, carregados do estranhismo daquela classe de conspiradores sem foco mas não de todo inofensivos que respiram um ar e falam um idioma próprio. 

Em Monsieur Pain, o personagem homônimo transita por uma Paris prototípica, uma Paris londrina de chuvas ininterruptas e becos secretos, dos quais sempre irrompem perseguidores sorrateiros usando sobretudos; uma Paris tão deslocada e anacrônica quanto a Paris de Auguste Dupin, esse detetive criado por Poe, o autor americano que inventou o romance de detetives, o mais britânico dos gêneros literários. Não à toa Bolaño já anuncia aqui seu caráter cosmopolita, sua desvinculação a origens étnicas, geográficas e temporais_ no início do romance, ele provocadoramente faz Pierre Pain dizer que não conhece nenhuma palavra em espanhol_, sendo essa a primeira de uma multidão de suas obras cujos cenários são europeus, mexicanos, africanos, e cujo registro temporal varia da segunda guerra ao gansgsterismo e à violência subliminar sofrida pelos despatriados das ditaduras latino-americanas. Bolaño desde essa obra já deixa claro o seu distanciamento aos dogmas da literatura latino-americana, já se comporta como o que transita na contramão das restrições inerentes mesmo na mais alta produção dessa categoria de criadores vinculados a suas emotividades telúricas e a seus dengos líricos de raça. 

Em sua guarita de guarda noturno, onde aproveitava o muito tempo livre para escrever sobre as andanças sem rumo de Pierre Pain, Bolaño ousava não falar sobre o Chile, não vestir a camisa do Chile, não desfilar nas fileiras das muitas coalizões partidárias que lotavam a realidade fatual dos países latino-americanos do final da década de 70 e o imaginário cobrado pelos leitores de Vargas Llosa, Garcia Márquez e Manuel Scorza, que queriam passar férias virtuais através da página agridoce nos povoados ensolarados onde dormia a siesta o macho pós-colombiano rigidamente patriarcalista. Escreveu, ao contrário, sobre as atmosferas caras a Poe, a Kafka, a Chesterton, a Robert Walser, dando-se ao luxo nada modesto de mitificar uma Paris apenas para si. Anos mais tarde ele responderia que o romance de gênero tem pouca proeminência na América Latina por sermos subdesenvolvidos, à sua maneira já registradamente bolanesca, de quem com esse destemor também anda solenemente na contramão de outra das perniciosidades das letras locais em ser excessivamente elogioso para os escritores de província que traçam a soldo os perfis do coronelismo político. 

Assim, Monsieur Pain é um romance de gênero, mas, como nos filmes dos irmãos Coen e no Zodíaco  de David Fincher, oferece voluntariamente o anti-clímax que invalida o propósito do gênero. É sem sentido falar qual o enredo de Monsieur Pain. Trata-se de uma novela policial na qual os elementos são um a um jogados para fora do tabuleiro, até que o clima de aridez resultante dá a impressão de que o conteiner de tempo criado na mente do ficcionista é regido pela mesma força do ocaso sem sentido que impera sobre a realidade corrente. É inútil sabermos que Monsieur Pain é uma espécie de prestigitador, adepto do mesmerismo, chamado para curar uma vítima de soluços, e que se vê enredado numa atmosfera de nonsense e mistério cujo único nexo resultante entre os envolvidos é serem parados, de uma ou outra maneira, pelo muro eventual da segunda guerra (a história toda se passa no ano de 1938). 

O que importa, neste que é o melhor dos romances curtos de Bolaño (ombreando com Noturno do Chile), é justamente as qualidades que vem do que uma leitura apressada poderia dizer serem os defeitos da obra: a sua ingenuidade mimética da erudição do autor sobre o universo literário, a enganosa inconclusão_ ou, melhor dizendo, a sua extrema prepotência em emoldurar tudo num conjunto de símbolos, recorrendo mesmo a um compêndio faulkneriano para mitificar o trivialismo trágico do destino dos personagens após o término da narrativa; a sua vaidade em aproveitar o rendimento de cenas isoladas, sem que essas se apeguem diretamente à história. Os diálogos deste romance são tão bons que se desculpa ao autor pelas extensões de cenas, assim como a escrita que o Bolaño jovem utiliza nesta obra é tão eivada de passagens da mais alta lucidez poética que é um prazer ver o Bolaño saindo dos cadernos de rascunhos para a vida visceral da escrita verdadeira. Bolaño, por mais que mostre seus utensílios de ofício aparecendo por debaixo da cortina, não titubeia, não artificializa, não revela nenhum par de pernas de desconsolado lactente em seus passos rumo ao horizonte ainda longuínquo de suas duas obras principais. Bolaño é aqui um romancista genuíno, com todo o conhecimento do ofício, a ponto de ter plena consciência de para quem esse demônio que retira de dentro de si é dirigido. Monsieur Pain, neste sentido, por mais que seja gratificantemente meio alienígena ao notório Bolaño das obras maiores, é uma prefiguração a todos os caros temas do chileno. A contínua asbtinência e negação de Pierre Pain no final do romance é um prenúncio a Ulisses Lima e Arturo Belano, a Benno von Archimboldi, e os quatro anos a mais que dura a vida do personagem após o fechamento das cortinas consegue produzir aquele impacto dissonante que revela uma surda premonição do destino do homem que nasce no século XX, e morre em anos posteriores derivados. Não é pouco a insinuação de que, mais uma vez, em palavras truncadas, Bolaño não fala senão da América Latina.

15 comentários:

  1. Li este romance e estava prestes a escrever um comentário sobre ele; talvez ainda o faça, mas existem tantos comentários de livros na fila, e eles são tão mais trabalhosos que outros sobre questões mais prementes do cotidiano e da profissão, que termino por deixar os livros fora do blog, por exigência de um rigor maior que não cabe em um espaço tão pequeno.

    Vi no livro de Bolaño "um exercício romanesco pautado em Poe, e na absurdidade de algumas conclusões dele, como nos "Assassinatos da Rua Morgue". O que em Poe é um acontecimento risível que se leva a sério, em Bolaño é um acontecimento indefinível, indevassável, que se leva com ironia. Bolaño alude a fatos e personagens como explosões aleatórias que não se investem de qualquer sentido, e seu personagem título, entre infantil, charlatão e equivocadamente sério, circunspecto e de limitada compreensão de suas próprias aventuras, termina por nos jogar nessa voragem a triturar referências a produzir uma atmosfera se semiterror, semisonho, semirealidade, que nos empurra à compreensão do que pode produzir a ficção quando suas fórmulas, relidas, não podem mais ser refeitas senão como farsa, como comércio. Bolaño "homenageia" os artesãos antigos, mas os vê como Mesmer, representantes geniais de uma ciência antiga que não sabia mais do que tentar dar consistência a sombras, enquanto Bolaño nos envolve com seus personagens que nada mais são que sombras fugidias."

    O que está em aspas acima é parte do comentário que estaria a concluir, mas não sei se poderei fazê-lo, tanto quanto sintetizar os outros livros lidos nos últimos meses.

    Acerca de um ponto de seu comentário, embora Pain não tenha ligação direta com a ditadura chilena, o "personagem" valejo também ecoa as dores do exílio e, afinal, "Noturno do Chile" foi diretamente e incisivamente ao ponto - talvez não fosse necessário mais.

    E uma curiosidade: vi uma entrevista com um amigo de Bolaño (esqueci o nome!); ele nos conta que Bolaño escrevia seus romances ouvindo... heavy metal. Que coisa mais doida e inesperada, e por isso mesmo possível; afinal, é Bolãno.

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  2. Eu vi esta entrevista e a linkei no blog do Milton Ribeiro. Pensei em Clarice Lispector, que escrevia na sala, de frente à televisão, enquanto os outros assistiam à novela. Não levo esta informação a sério. Poderia-se descobrir alguns erros de Bolaño tendo como base esse incômodo auto-imposto, mas não se pode entender os altos acertos do escritor senão como fruto de uma concentração absoluta, no meio do silêncio. (Embora não existam menções à música em Bolaño.)

    Acertamos ambos nas referências a Poe. O que mais gostei neste livro é que ele ainda não é de todo triste, como nos outros. Não de todo seco. Foi o único romance dele em que, enfim, pude sublinhar várias frases. O rigor de descartar qualquer frase que exigisse um ensejo mais interpretativo nas obras posteriores_ sua obsessão por criar narrativas puras, onde mesmo qualquer intromissão do autor era rejeitado_ ainda não alcança a plenitude em Monsieur Pain.

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  3. Só vou dizer: excelente comentário. Na verdade, fiquei MUITO PASMO porque não sabia nem da existência deste livro...

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  4. Esse Bolaño ainda não li, Charlles, e depois da maravilha de post que você escreveu, tenho que correr à livraria mais próxima!

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  5. antes de ler... charlles campos aparecendo no sul21 hein. demorou, miltão

    arbo

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  6. Milton, tu te dexastes distrair. Há três meses que ele já se encontra no prelo.

    Muito obrigado, Ricardo C. Não irá se arrepender.

    Arbo, já há algumas outras resenhas minhas por lá, algumas eu escrevi especialmente para o Sul 21, e depois postava por aqui.

    Abraços.

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  7. bá, bom saber disso, charlles. [teu nome apareceu oportunamente nos comments do penúltimo post do milton, o da alface]

    arbo

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  8. Opa, meu nome citado ao lado do Milton e do Bressane...
    Belo texto, bolañiano quase.

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  9. Olha quem aparece por aqui... Grato, Cassionei.

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  10. Estou com pouco tempo para comentar, mas sempre dou uma lida aqui.

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  11. Você escreve muito bem! :)
    Cá estou eu ao som de heavy metal e Bolaño.

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  12. Heavy Metal! Será que a moda vai pegar?

    Abraço, Andressa.

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  13. Andressa, agora que estou vendo: achei a informação de Bolaño e Heavy Metal em seu blog. Estava tentando lembrar de onde era. O post sobre os nós e estilos literários dá vontade de copiar.

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  14. Tô resistindo...
    Tô resistindo...

    Mas creio que vou acabar lendo esse tal do Bolaño.
    Faz dois años, aproximadamente, que você e o Milton Ribeiro(e agora a Rachel...)só falam nesse chileno. Meu pacová dilatou...

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