Moses Herzog inicia no romance que leva seu nome questionando se está louco. Se um acaso da linearidade da imaginação permitisse que ele se encontrasse com os outros conturbados chicagoanos, novaiorquinos, ou descendentes de judeus orientais erradicados na América, que compõe o cânone de entidades criadas por Saul Bellow, poderia saber que a negação consciente em fazer parte da lucidez do homem ocidental é uma das forças motrizes que tornam inigualavelmente interessantes seus gêmeos de incompatibilidade: Augie March, Henderson, Humboldt... Contudo, Herzog é a codificação mais apurada, o extrato mais denso, o caso clínico da psicanálise mais tipicamente clássico, entre os personagens bellowianos. O que falta ou há em excesso nos outros heróis de Bellow, é sistematicamente equilibrado e bem distribuído em Herzog, e por esse funambulismo em que se mantêm a tensão de tantas forças acondicionadas é que se pode dizer que Herzog, paradoxalmente, é o mais explosivo deles. Não possui todo o futuro em teste pela frente, como quando o alquebrado pela erraticidade da juventude Augie March encerra as 600 páginas de sua narrativa pessoal; ainda não é velho o bastante, e foi demasiadamente poupado pela História, para ser o último dos filósofos estóicos exilado num pequeno apartamento novaiorquino, como o sr. Sammler; não tem a leviandade de querer suplantar seus erros domésticos com a ilusão de salvar o mundo, como o Henderson; não margeia as zonas de perigo de alguns mafiosos comicamente ameaçadores de Chicago, e não tem como inimigo nenhuma força espiritual encarnada em um poeta fracassado, como Charles Citrine. Herzog é tão somente um intelectual norte-americano que vive meio conformado com sua dependência do reconhecimento do mundo acadêmico, um homem ultra-cerebral e culto que, contudo (ou devido a essas características), só percebe o seu enorme cotidiano insípido quando é abandonado pela esposa; alguém que conhece a fundo todo o turbilhão da história, por ler sobre ela, e que tem uma privilegiada ciência do funcionamento das forças que regem a sensível máquina social, mas que só descobre os aguilhões da impotência quando um de seus laços de aparente conforto se desfaz. O que sobra a alguém vítima de tão súbito ataque de lucidez é, portanto, o questionamento angustiado sobre todas as suas formas de apreender a verdade, por isso a constatação natural de que não foi governado nesses anos_nessa vida toda_ senão pela ótica distorcida da loucura.
A forma decantadamente desesperada de Herzog em explorar a ruína do arquétipo de verdade que levou a sério por tanto tempo, é, de um modo em que revela a sua desistência de lutar no jogo participativo da razão moderna, chamar todos que formalizaram este mundo para prestar contas consigo. E Herzog faz isso da única maneira que o engano o ensinou a fazer, o doutorou a fazer: escrevendo cartas para as grandes personalidades da História, vivas ou mortas. Isolado em sua casa de campo, que, como a promessa de felicidade conjugal que ela inspirava, se encontra à beira da ruína (consertando as calhas quebradas, podando as árvores do jardim abandonado, dividindo uma fatia de pão previamente roída por uma ratazana), Herzog preenche seus cadernos com longos e soltos monólogos que nunca serão respondidos, ou por seu receptor já se encontrar consumado pelos séculos, ou porque os que poderiam fazê-lo jamais receberão essas missivas, que são compostas apenas pelo consolo da escrita, apenas pelo prazer subjacente que ainda sobrevive em Herzog do gozo do pensamento. Essas cartas formam um dos efeitos que tornam esse romance monumental: engraçadas, malucas, triviais, carregadas de ódio, discordantes das verdades impostas, anacrônicas, fetichistas, irônicas; cheias do que está do outro lado do terror e da tragédia: a comicidade libertadora do homem extenuado que se conforma da incrível segurança da renegação absoluta. Assim, Herzog constantemente interrompe uma tarefa caseira, retira eufórico seu caderno do bolso, e começa mais um de seus cabeçalhos apressados de início a uma carta. No táxi, nos bancos do tribunal onde espera seu massacre fechado diante a justiça para poder ter direito a ver a sua filha que lhe é negado pela ex-esposa.
Das outras atrações que esse romance oferece, primeiro, é que poucas narrativas foram escritas com a energia e com a exuberância ligeira inexaurível de Bellow. O livro treme nas mãos; para um romance com tamanha carga de intelectualidade e ensaística digressiva, as folhas passam com rapidez própria dos best-sellers. A frase de Bellow é extraordinariamente vendável. Ele encontrou o pote de ouro no final do arco-íris procurado pela maioria dos escritores, que lhe permite escrever com a fluidez de Mozart e falar e se aprofundar em todos os dilemas pesados da filosofia. É o romance mais bem escrito dos últimos 60 anos em qualquer lingua. Para se obter a máxima plenitude de toda a riqueza cômica, humana, intelectual, estética que Herzog oferece, há de se embrenhar em releituras e releituras, até que o romance se torne um real coadjuvante de nossa maneira de ler e conhecer o mundo. Sem exageros. Não à toa que Herzog permaneceu por quase 50 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times, assim que foi lançado.
E mesmo com essa temática cerebral, Herzog é um romance movimentado. As cenas no tribunal são antológicas. Remetem às leituras de Kafka feitas por Bellow. Os tipos marginais, as prostitutas e pederastas que sentam no banco do réu, diante um juíz enfadado, nas esperas para as audiências públicas em que Herzog os assiste de longe, são envoltas pela análise conceitual de Bellow sobre a prostituição inerente aos sistemas de justiça e demais cínicas instituições humanas. Os passeios que Herzog faz com sua filha, os acontecimentos semi-trágicos que advém disso, o reencontro com a beldade enfurecida de sua ex-esposa (que o traiu com um de seus amigos), na delegacia de polícia. Tudo é narrado com uma excepcionalidade quase inacreditável. A luz do olhar de Bellow atravessa tudo, com a selvageria frenética do criador consciente de seus poderes, com a impiedade do músico que com sua sinfonia abole toda a medianidade que atravessa em seu caminho.
Esse foi um dos poucos livros que li em tradução e no original (tenho repúdio em ler em outra lingua que não a minha). O li primeiro quando tinha pouco mais de 20 anos, na tradução fantástica (e fidedigníssima) feita por Sílvia Rangel, para uma editora desaparecida chamada Símbolo. Por culpa deste livro, fiquei um ano sem escrever nada, e quase parei de ler, tamanho o impacto que teve sobre mim. Li mais umas três vezes essa tradução, e agora acabo de ler a tradução de José Geraldo Couto, recém lançada pela Companhia das Letras. A Companhia, felizmente, vem consertando o descaso das editoras nacionais em relação a Bellow. Tudo leva a crer que a editora de Luiz Schwarcz vá publicar toda a bibliografia de Bellow. Já lançou As Aventuras de Augie March, Henderson, o Rei da Chuva, e está programado para ano que vem o lançamento do sensacional A Herança de Humboldt. Se me fosse permitido dar uma opinião, pediria que, quando fosse lançar Herzog em edição de bolso, daqui a uns cinco anos, que restituísse a ótima tradução de Sílvia Rangel.
Tem na biblioteca da UFSM, mas só em inglês. Aí é demais para mim, nesse momento da vida. Vou atrás da em português.
ResponderExcluirCompensa comprar a nova edição da Companhia das Letras, Farinatti. Tenho certeza que não irá se arrepender.
ResponderExcluirCharlles, obriguei-me a locar o livro após seu texto e felizmente é dessa mesma edição e tradutora que indicaste.
ResponderExcluir"Por culpa deste livro, fiquei um ano sem escrever nada, e quase parei de ler, tamanho o impacto que teve sobre mim."
Fiquei com medo hehe
Matheus, espero que tenha o mesmo prazer que eu ao ler Herzog pela primeira vez.
ResponderExcluirAbraço.
É realmente incrível, comecei a ler dia desses. Notaram que o narrador exibe certos sinais da loucura de Moses? Os limites entre autor, narrador e personagens se ligam, não sentimos muito as quebras, o resultado é uma leitura indistinta e fluida, que acaba sendo muito eficaz na construção da atmosfera. Estou adorando.
ResponderExcluirAbs,
Que bom, Rafael. Se é o seu primeiro Bellow, há uma série de maravilhas a descobrir. Recomendo depois, ler "O Planeta do Sr. Sammler", "O Legado de Humbold", e "As Aventuras de Augie March". O último já foi lançado pela Cia das Letras, e os outros estão prometidos a saírem por essa editora já a partir do ano que vem.
ResponderExcluirAbraço.
Comprei essa obra por causa de sua resenha. Senti-me na obrigação de vir aqui discordar do que parece ser um consenso entre os que tomaram o mesmo caminho. Achei o livro chato. Não me encantou nem a escrita e tampouco a história. Juro que tentei encontrar todas as qualidades que você narra, mas não as encontrei.
ResponderExcluirQuestão de gosto. Já li essa obra umas oito vezes e continuarei relendo. A primeira vez me causou estranhamento, pois estava acostumado com a prosa social do Faulkner e do Steinbeck. Mas tem características notáveis aí que mesmo quem não gosta vê: o estilo de Bellow, rápido e profundo como a música de Mozart, etc.
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