quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Estado de espírito

 



                                                   "L`éternel craquement des sabots dans les cours" (Rimbaud)

No outro dia o sr. Flibas saiu cedo com o Bergson na mão. Dormira tarde, depois das três horas, sentado à escrivaninha olhando a rua deserta à frente, pela janela aberta. Antes de se recolher em seu quarto vira no celular dentro da gaveta de sua escrivaninha que Alexandra havia lhe mandado um recado. Era uma mensagem tola que ele olhou por alto e achou identificar o nome do Dalai Lama. Ela parecia mandar tais coisas de vez em quando para divertí-lo, era um modo anômalo de fazer uma crítica com um tom de consideração. Conhecia-a tão bem que via as pequenas deferências de um ato que fora feito para passar o mais despercebido possível. Por exemplo, ela não ter escolhido alguma mensagem cristã, o que evidenciaria ter relação com sua recomendação de dois dias anteriores. Ele viu que algum sinal gráfico dos tantos que apareciam na telinha anunciava mais uma mensagem e ele desceu o dedo pela planura do objeto_ para isso servia hoje em dia a disposição opositora dos polegares. Era uma aplicação que os garotos de bermudas que chegavam a hora que queriam em seus escritórios de bilhões de dólares apropriaram-se da mais destacável diferenciação evolutiva da espécie para fazê-la regredir espiritualmente de novo ao símio manipulador. Como era idiótico esse movimento e como ele servia de metáfora. Quem sabe estavam escrevendo a historiografia desse gesto milenar, que começara com o esfregar de tinta vegetal na parede das cavernas, avançara para o dedilhar de páginas de alfarrábios dos monastérios do poder religioso e hoje chegara a seu ápice em deslocar vagas e vagas de mentira e vazio midiático para cima na tela do celular.

    A outra mensagem era de Sophie. Tratava-se de uma simples foto, que ele demorou identificar. Acendeu a luz da lâmpada do abajur ao lado da cama, descobrindo depois que não ajudava, agindo contra a facilitação das luzes embutidas do celular, mas com um remanejamento mais apurado pode ver que era a foto de um vestido. Uma peça única de pano negro, com mangas bufantes e barras longas de tecido duplo encimado por uma tessitura transparente de cetim. Lembrou-se de que Alexia havia dito algo sobre o vestido das bruxas de Macbeth, que ela estava aguardando chegar nos correios da China.

 
      Ele não sabia como responder. No fundo intuitivo que pegava lembranças condicionadas vinha-lhe a informação de que o mais esperado era alguma atitude infantil básica, firmada em desenhinhos e carinhas sorridentes. Era preciso saber a quantas andavam o termômetro para o apocalipse, aquelas estimativas que levavam nomes evocativos surgidos do nada, como os indicadores de Gini e estimativas de Gleisi, para encaixar aquele rançoso carinho simulado nas fórmulas da destruição em massa. Ele não iria, obviamente, espezinhar a pequena máquina para descobrir os dedilhados básicos de se mandar um ursinho azul para Sophie. O efeito do conhecimento insofismável sobre sua imunidade aos efeitos desse tipo de fetiches deixaria sua filha e sua neta horrorizadas se ele enviasse uma coisa dessas. Alexia era bem capaz de ligar de volta perguntando se estava tudo bem. Era um exagero pensar assim e ele atirou o aparelho celular desligado de volta à gaveta. Não havia campo para surpresas naquele universo sem horizontes da encruzilhada digital. Era uma tolice ele insistir nessa indisposição em ser receptivo ao modo operandi. Quantas pessoas de décadas atrás dariam a alma para utilizarem a eficiência racional daqueles recursos? Quantas guerras teriam sido poupadas se, há cem anos, por exemplo, um Gavrilo Princip pudesse mandar a um Francisco Ferdinando um texto curto escrito em sinais grifados básicos cujo arremate se concluiria com o desenho de um polegar levantado de pedido de concordância? O sr. Flibas pestanejou baixinho e se resignou à sua condição de velharia. Estava se apagando muito rapidamente, e não imaginava que a derrocada seria tão cheia de atenuantes sensoriais e despejos serenos de serotonina. Uma série de desfalecimentos inseridos por algum códice adquirido às custas de milênios de testes e contratestes cromossômicos que levava em consideração a mais alta anestesia. Era sobre isso que se falava os altos entendidos da fisiologia quando diziam que a morte era um processo não isento de ser agradável.

   O metrô estava com os tipos característicos de uma quarta-feira. Companheiros urbanos daquela supressão de contatos e sinais. Uma classe de movimentos condicionados tão eficiente que não mais se esbarravam uns nos outros para evitar desculpas inconvenientes. Parecia que tudo havia atingido o mais alto grau do aborrecimento e propalar informações sinápticas recíprocas se tornara uma espécie de libidinosidade grotesca. O sr. Flibas ficava firme em seu canto, com as mãos se segurando na trave de aço galvanizado, junto ao aparador dos fundos do vagão. Não haviam mais os românticos leitores de jornais, com as folhas albatrozinas abertas nas caras de vizinhos estranhos mas complacentes. Era uma interessante moda aceita, a de que a palavra deveria ser obtida mesmo através daqueles instantes passageiros, em que o servilismo do dia dava lugar a um pouco do que nem os faraós tinham. Se fazia uma viagem pela política global se levando pelas mãos de velhos articulistas geralmente rancorosos, ludibriados por uma impressão de estarem libertos da cultura acadêmica ao fazerem suas próprias análises com cheiro da inteligência coloquial das ruas. Depois que publicara seu livro e a imprensa cultural achou o simbolismo válido de que seu Pequeno Nero poderia ser lido como uma crítica ao subdesenvolvimento, um jornal de grande circulação lhe chamou para fazer pequenas observações perspicazes sobre as mazelas das desigualdades sociais. Deram-lhe uma sala em que mais três homens com a mesma cara de garotões que enfim alcançaram a emancipação das fantasias utópicas da juventude usavam suas mesas particulares. O sr. Flibas sempre tivera uma opinião honesta sobre si mesmo_ honesta pelo menos quanto ao que sua lucidez advinda de uma curiosidade infindável sobre tudo, todos os eventos naturais e metafísicos havia lhe dado de espólio mental_, e sua não cooptação, sua total insolvência às virulências escritoriais e seu modo de ser recolhido e intenso, fez com que aqueles homens solitários cheios de vícios da maledicência vissem alguma distinção nele. Ele dominava todos os assuntos, sabia a fundo se situar nos espectros mais amplos do cenário cultural e político. Tinha pensamentos sempre perspicazes para expressar sobre o escândalo dos prós israelenses, sobre o pós colonialismo do leste europeu, sobre arte abstrata e música gótica. Sua tendência a consumir publicações condenáveis esteticamente para aqueles senhores tão cultivados o permitia saber quem era a nova celebridade pop star de Hollywood. Na época, o sr. Flibas reconhecia em si uma espécie de uma fé placeba nas propriedades da permanência que vinha do baixo clero da mentalidade social. Era baseado nessa sua inclinação que lia aqueles jornais comunistas que Alexandra lhe trazia às quintas-feiras. Trabalhou por dois anos no jornal, escrevendo sobre cultura e sobre política, e chegou a fazer fama suficiente para que lhe mandasse cobrir acontecimentos na Europa. Ser um autor infantil conhecido o isentava de ser levado a sério no campo em que sua visão cincunstanciada dos eventos lhe levava, e muitas vezes as pessoas perguntavam quem era aquele Omeno Flibas que disparava aquelas análises eruditas, às vezes mal disfarçadas com as cores de uma jovialidade que seu editor insistia para que ele procurasse ter. Muitos ainda o conheciam nos eventos que costumava frequentar anos depois daqueilo tudo ter acabado como o articulista mais equilibrado, que podia falar sobre os assuntos mais espinhentos como se tivesse um globo em três deimensoes em sua mesa de trabalho. Inclusive foi essa a imagem que certo professor de alta patente universitária havia usado quando se encontraram num jantar da academia de letras. E agora o sr. Flibas olhava aquelas pessoas com uma nostalgia impessoal, pensando como sempre no tanto que a maleabilidade da progressão humana apostava na adaptação da espécie. Ele não era nenhum arauto da verdade, mas havia trabalhado com afinco para educar, não lhe passando despercebido a grande vantagem que o fato de não ser do meio lhe dava. Alexandra achava, contudo, que essa sua versatilidade que lhe havia acabado com a carreira literária o impossibilitando de ter novos interesses para continuar na literatura infantil. Talvez fosse uma descrença antecipada, uma espécie de presságio do desinteresse reinante que iria tomar conta de tudo. O livro que segurava debaixo do braço, com a lombada fazendo pressão por sobre a região das axilas de seu casaco, o velho Bergson, falava sobre o sentido de usar o cérebro, essa máquina primorosa, para cumprir seu papel técnico de “observar as leis de Deus”. O que aquelas pessoas faziam senão abortar esse poder, torrando suas faculdades soberbas da imaginação com picuinhas. O sr. Flibas sentia o traço de neurastenia em suas feições, muitas vezes sua capacidade de se abstrair saía por um momento daquelas críticas e se percebia a si mesmo, um velho rancoroso que provavelmente as pessoas que o flagrassem prefeririam evitar. Um dos tantos profetas solitários a que ninguém interessava saber de seus tesouros empoeirados e sem empatia. A solidão da cidade os absorvia, os assepsiava da vida em seguimento.

    Chegando na estação da Luz o senhor Flibas desceu e seguiu em sentido do bairro do Marechal Teodoro. No meio do caminho para a biblioteca uma moça o parou para tomar informações. Enquanto ele tentava se concentrar na linguagem rápida e um tanto incompreensível dela, o sr. Flibas sentiu de leve uma mão entrando pelo bolso do seu casaco. No mesmo instante foi dominado por uma sensação anestesiante, seu sangue pareceu se esfriar. Sua consciência ficou límpida, concentrada na concisa determinação de poupá-lo das tantas resoluções drásticas do evento. Ele sentiu que se titubeasse nas palavras expositivas que procurava usar a serviço da moça, algo de muito ruim iria acontecer com ele. A mão bem próxima à sua pele agia como um animal noturno, uma grande aranha caçadora dotada de sensores predatórios para se movimentar o mais furtivo possível. De alguma forma ele oferecia uma sensação de segurança a ela, pois ela investia com fúria incisiva, apressada, sem tempo a perder. Vasculhava o fundo do bolso fazendo um rápido giro completo e quando percebeu que não havia nada dali mesmo ela se enfunou pelo bolso da calça do sr. Flibas. Era uma resolução curiosa, pois ele se lembrou que sua carteira estava no bolso da frente e a mão se deparou com seu contorno, mas haviam quatro panos entre eles. O sr. Flibas pôs-se a sentir o bafo respirando de forma mecânica em sua nuca. À medida que a carteira ganhava as configurações interessantes na mente que comandava a mão, a respiração ficava mais invisível, como se todos os órgãos retivessem a combustão de energia para que toda ela fosse para  a inteligência executar o roubo. A moça tinha uma cara de enfado profundo. Usava dois cachos no ralo cabelo loiro por cima das orelhas, como uma criança, e mascava chicletes ostensivamente. Era possível que de longe, para quem passasse alheio àquela cena grotesca de três seres humanos acoplados num conjunto único e assimétrico, o som da mastigação fosse audível. Um misto de atestado da grande repulsa que a moça tinha contra o corpo, a presença e o conjunto de memorial abrangente que o sr. Flibas despertava com sua figura decaída em uma jovem. O sr. Flibas queria facilitar o máximo possível a ação de ambos, a moça e o dono da mão, e não entendia porque eles recorriam a um planto tão mirabolante, se havia outras alternativas bem mais econômicas. Bastaria que eles empurrassem o sr. Flibas para um dos becos perpendiculares da rua e lhe retirassem a carteira. Fariam isso sem precisar emitir uma palavra, diante a lógica apresentada de que um velho não oporia nenhuma resistência. Mas em vez disso, eles escolheram algo cinematográfico, como se atendessem algum modelo que haviam lhes cativado a atenção em um filme da sessão da tarde. Não era só a carteira, que eles bem intuíam que não ofereceria nenhum ganho primoroso, partindo de um senhor andando com seu casaco puído com um livro na mão. O principal era a satisfação de alguma empreitada que eles haviam se imposto, um gesto de autocongratulação elogiosa. Quanto mais distante da resolução óbvia, mais eles sairiam com  a sensação de que haviam prestado um elogio às suas sagacidades. Pensando assim, o sr. Flibas trabalhava para lhes dar o máximo de resposta possível. Não parava de falar e, quando notou que já havia encerrado a enunciação de onde ficava o local que a moça questionara (a rua do Olvidor), ele completara o tempo restante em que deveria se comprometer com aquilo improvisando alguma conversa trivial. Resolveu sorrir, o que lhe pareceu certo fazer se ele mesmo fosse o hipotéticpo observador externo à cena (oh, uma jovem mulher falando com um senhor respeitoso, enquanto um homem troncudo se lhe aproxima por detrás e bafeja em seu ombro; não seria óbvio que ele sorrisse, agraciado?), e continuou sua parte na representação daquele grupo virtuosístico dizendo que se a moça estava atrás de um bom almoço ela encontraria no restaurante chinês que havia na esquina com a rua 3, ou se ela fosse do tipo romântico que preferria ocupar seu tempo comprando flores, havia uma charmosa floricultura no beco sem saída na rua 7. O sr. Flibas inclinava para o lado e afastava seu cotovelo, que havia se batido claramente com a mão interrompendo-lhe a passagem. Sentiu a mão parando, tensa, diante aquela primeira evidência de que havia sido notada por sua presa, e do alto do cérebro que a comandava o sr. Flibas sentiu a respiração do homem se tornado mais forte, como se estivesse com raiva. Já sem ter presença espiritual suficiente para permanecer fazendo de conta que estava alheio ao enorme parasita que transitava próximo à sua virilha, o sr. Flibas sentiu que seu sorriso se liquefazia e ele olhava à frente da moça, para os azulejos da loja de materiais de construção onde estavam parados. Não conseguia falar mais nada e sua fala titubeava, repetindo involuntariamente pequenas sílabas desconexas. O homem agora puxava o sr. Flibas, o empurrava, trazia sua cintura para mais perto e a afastava, como se ele fosse um boneco de pano. Como se sua mente arregimentasse um depósito de memórias pacifistas para afastar que se sucumbisse ao terror, a imagem de um antigo filme mudo lhe surgiu, de um homem, provavelmente Buster Keaton, sendo manejado com grosseira virulência a partir da cintura, seu corpo pouco nítido e excessivamente esbranquiçado pelo efeito do celuloide antigo fazendo movimentos ascendentes em S. Apesar de ter quebrado a premissa daquele estranho contrato de submissão, ele intuía que não poderia dirigir-se diretamente ao homem. Assim iria desfazer o grau de invisibilidade que estava no fundamento de todo o processo, e que garantia de forma metaforicamente pactual a segurança do senhor Flibas. Se o agressor fosse enunciado verbalmente, ou se ele fosse oficialmente enquadrado no âmbito visual do sr. Flibas, nada mais haveria para abalizar a impessoalidade daquela ação. Ele se sentiria autorizado a partir para uma nova fase, usando uma faca, ou uma pistola. Se não fosse essa silenciosa determinação, o sr. Flibas lhe diria com gentileza que ele lhe entregaria tudo que quisesse. Pelo canto dos olhos ele via as pessoas passando. Era fisiologicamente impossível que os três não estivessem correspondendo a alguma exigência de atenção por parte daquele público disperso e seletivo. Era incompreensível que o evento não atendesse a todas as sofisticadas exigências de entretenimento que aquela massa requeria: havia a subjugação, a ausência de dignidade, principalente dele, que era vilipendiado e jogado para o alto e dobrado com vigor. Havia até mesmo o caráter sexual da figura um tanto desmazelada da moça, com seus braços cheios de tatuagens e sua saia curta, mostrando (o sr. Flibas nãos abia como isso fora apreendido e sugado por sua mente perspicaz) veias rajadas sobressaindo à pele translúcida das pernas. Ela tinha olheiras profundas, e no fundo dos seus olhos havia um ódio que transplantava a aparência de sua pouca idade. De súbito, motivada pela falta de paciência lógica que o fracasso de todo processo estava causando, ela olhou para ele, com o rosto desprovido de qualquer traço de humor, e disse: “O velho está querendo me dar rosas, Tarto”.

    O senhor Flibas apurou os ouvidos e interpretou a frase retroativamente. Era uma jogada totalmente inesperada e ele não estava preparado para aquela nova disposição do enigma. Não conseguiria mais sorrir, pois a intuição clara do perigo já lhe tomava conta por completo.

  O homem, resignado de que seu primeiro plano não havia dado certo, retirou a mão do casaco e a enfiou de uma vez no bolso da calça. Com um puxão vigoroso, saiu com a carteira para a luz do dia. Abriu-a, tomou posse do dinheiro, e com movimentos que não duraram um segundo passou os cartões e os documentos pelo crivo do seu olhar e os jogou no chão. Sem dizer nada, guardou o dinheiro no bolso e saiu caminhando com total segurança. A moça parece ter perdido alguns instantes significativos desses gestos finais gastando-os olhando fixamente o sr. Flibas. Ele olhou de volta, os olhos arregalados, sabendo que um medo incontrolável, que o deixava imobilizado, estava estampado em seu rosto. Sua mente dialética, num humor involuntário inevitável, trabalhava lhe enviando pensamentos cujo sentido era lhe oferecer o que a moça estaria pensando diante essa sua reação, a excisão de qualquer consideração humana que o sr. Flibas tivesse para suplantá-la por um nojo diante um simples animal acuado. Os olhos do senhor Flibas, numa atenção bovina (um novilho velho no corredor de abate de um abatedouro, sendo presenteado com a iluminação súbita e inoportuna de sua morte iminente), viram ela desistindo de levar em frente o que passara-lhe na cabeça, descartando com um sorriso de desprezo. Um sorriso pelo canto da boca, que mesmo assim foi suficiente para mostrar os dentes brancos e joviais, quase infantis. Daí ela foi embora, seguindo os passos do companheiro.

   O sr. Flibas respirou rápido, sentido o coração batendo nas têmporas. Se encostou na parede de azulejos e procurava estabilizar sua máquina interna. Ajeitou os óculos, que haviam ficado deslocados por sobre o nariz por causa da pressão que o rosto do homem lhe fizera. Procurou não olhar na direção em que os dois iam, mas o frêmito instintivo fez com que os flagrasse já à distância. Surpreendentemente viu que o homem era baixo, talvez metade do tamanho que a impressão de sua proximidade lhe causara, e usava um casaco longo de feltro. Suas pernas eram um tanto tortas e sua pele era morena, os cabelos crespos curtos aparecendo debaixo do chapéu de palha que usava. Parecia um trabalhador ad construção civil, músculos rijos e ampla maleabilidade. A moça o alcançou e o agarrou pelo braço, simulando uma dança. Erguia a cabeça e mostrava exultação lúbrica. Para ela era como se a cidade não existisse, ou existia em xecesso e aquele desprezo era todo aparente. Ela lhe deu dois beijos ostensivos, enquanto o homem seguia sem reação alguma, quase como se a não notasse. Ela molhou a ponta dos dedos e passou por sobre uma marca de batom que havia deixado no rosto dele, fazendo isso com uma atenção que foi o único momento em que sua larga e bonita boca pararam de sorrir. Dobraram a esquina com a mesma pressa célere, que não era nem um pouco evasiva. Não estavam se importando em nada com a polícia ou com qualquer reação popular. Ninguém mais do que eles pareciam ter entrado no conhecimento secreto do profundo anestesiamento que tomava conta de todos. Mudando a avaliação que ele tinha do erro das grandes distopias em terem previsto um fim grandiloquente, a premissa de que a realidade poderia ser um simples programa de computador em que só os muito lúcidos e independentes notavam era válida na impressão daqueles dois de serem os únicos seres acordados em todo o cosmos urbano.

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