Um dos efeitos da diminuição global da inteligência é essa ingenuidade vazia, algo satânica, dos vídeos feitos pela IA de velhinhos marinheiros salvando baleias árticas. É de um artificialismo tão flagrante que só uma percepção profundamente corrompida pelo sentimentalismo tolo e pela depravação mental julga verdadeiro. O animal cibernético adiposo em toda sua preguiça simula se encher de ternura por algo que não está só além do real como além do definhamento de sua sensibilidade. O próximo passo cotidiano é enxugar as lágrimas pelo salvamento do filhote da baleia e entrar no vídeo do sexo sadomasoquista, para calibrar as outras cordas de seus nervos viciados. E qualquer sinal de dissidência da opinião religiosamente corrente das redes sociais, o alarme é acionado: o que esse estúpido está criticando no facebook? o que esse esnobe arrogante está querendo reivindicar fora das regras? ou se adapte ao meme, à corrente de julgamentos da semana, à adoração ou ao cancelamento, ou caia fora. Ou faça o self do seu rabo, ou vá ser a estranha aberração que é na solidão. Não intrometa!
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
domingo, 8 de dezembro de 2024
Abrigo
Dos 17 até os trinta eu tinha só dois livros. Lord Jim, do Joseph Conrad, e O jogo da amarelinha, do Júlio Cortázar. Claro que eu lia como um louco, mas eu comprava, trocava, ou simplesmente me desfazia dos livros sem a menor consideração. Meu primeiro emprego era de veterinário em uma cooperativa, que eu exerci por cinco anos. Eu chegava exausto do campo à minúscula pensão na minúscula e esquecida cidade onde eu morava, tomava um banho, jantava, e me lançava à releitura infinita dos meus dois livros. Eu ainda hoje sei um capítulo de cor de Amarelinha, e trechos inteiros do Lord Jim. Tirei deste último o título da minha monografia de história, "As encarnações imprevistas". Daí conheci a Dani, e ela me deu os dois primeiros livros que eu iria guardar pra sempre, além das eternidades condensadas pelo outro argentino e pelo polaco que eu levava no alforge, os volumes três e quatro da obra completa de Borges. Nesse astucioso presente, veio decretado meu duplo destino, que era o de ter propósito para constituir um lar e formar uma biblioteca. (Lembro do espanto absoluto na cara da senhora minha vizinha, quando viu aquela moça e o bebê de colo_ a Dani e a Júlia_ entrando pela primeira vez na casa onde ela julgava morar apenas o triste psicopata solitário e inofensivo com o seu cão.) Daí a Dani me disse, quando eu lia a dedicatória em completo maravilhamento que ela escreveu naquele presente perfeito que em trinta anos ninguém jamais havia tido a sensibilidade ou o interesse em me dar: "Nós podemos reservar um dos quartos da casa e começarmos a montar uma biblioteca, o que você acha?". E hoje aqui estão, os meus primeiros livros de homem assentado, enquanto as crianças correm pela casa, elas mesmas se regalando por horas com a biblioteca. E a Dani, como sempre, com sua humildade política, por detrás de tudo.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Estado de espírito
"L`éternel craquement des sabots dans les cours" (Rimbaud)
No outro
dia o sr. Flibas saiu cedo com o Bergson na mão. Dormira tarde, depois das três
horas, sentado à escrivaninha olhando a rua deserta à frente, pela janela
aberta. Antes de se recolher em seu quarto vira no celular dentro da gaveta de
sua escrivaninha que Alexandra havia lhe mandado um recado. Era uma mensagem tola
que ele olhou por alto e achou identificar o nome do Dalai Lama. Ela parecia
mandar tais coisas de vez em quando para divertí-lo, era um modo anômalo de
fazer uma crítica com um tom de consideração. Conhecia-a tão bem que via as
pequenas deferências de um ato que fora feito para passar o mais despercebido
possível. Por exemplo, ela não ter escolhido alguma mensagem cristã, o que
evidenciaria ter relação com sua recomendação de dois dias anteriores. Ele viu
que algum sinal gráfico dos tantos que apareciam na telinha anunciava mais uma
mensagem e ele desceu o dedo pela planura do objeto_ para isso servia hoje em
dia a disposição opositora dos polegares. Era uma aplicação que os garotos de
bermudas que chegavam a hora que queriam em seus escritórios de bilhões de
dólares apropriaram-se da mais destacável diferenciação evolutiva da espécie
para fazê-la regredir espiritualmente de novo ao símio manipulador. Como era
idiótico esse movimento e como ele servia de metáfora. Quem sabe estavam
escrevendo a historiografia desse gesto milenar, que começara com o esfregar de
tinta vegetal na parede das cavernas, avançara para o dedilhar de páginas de
alfarrábios dos monastérios do poder religioso e hoje chegara a seu ápice em
deslocar vagas e vagas de mentira e vazio midiático para cima na tela do
celular.
A outra mensagem era de Sophie. Tratava-se
de uma simples foto, que ele demorou identificar. Acendeu a luz da lâmpada do
abajur ao lado da cama, descobrindo depois que não ajudava, agindo contra a
facilitação das luzes embutidas do celular, mas com um remanejamento mais
apurado pode ver que era a foto de um vestido. Uma peça única de pano negro,
com mangas bufantes e barras longas de tecido duplo encimado por uma tessitura
transparente de cetim. Lembrou-se de que Alexia havia dito algo sobre o vestido
das bruxas de Macbeth, que ela estava aguardando chegar nos correios da China.
Ele não sabia como responder. No fundo
intuitivo que pegava lembranças condicionadas vinha-lhe a informação de que o
mais esperado era alguma atitude infantil básica, firmada em desenhinhos e
carinhas sorridentes. Era preciso saber a quantas andavam o termômetro para o
apocalipse, aquelas estimativas que levavam nomes evocativos surgidos do nada,
como os indicadores de Gini e estimativas de Gleisi, para encaixar aquele
rançoso carinho simulado nas fórmulas da destruição em massa. Ele não iria,
obviamente, espezinhar a pequena máquina para descobrir os dedilhados básicos
de se mandar um ursinho azul para Sophie. O efeito do conhecimento insofismável
sobre sua imunidade aos efeitos desse tipo de fetiches deixaria sua filha e sua
neta horrorizadas se ele enviasse uma coisa dessas. Alexia era bem capaz de
ligar de volta perguntando se estava tudo bem. Era um exagero pensar assim e
ele atirou o aparelho celular desligado de volta à gaveta. Não havia campo para
surpresas naquele universo sem horizontes da encruzilhada digital. Era uma
tolice ele insistir nessa indisposição em ser receptivo ao modo operandi.
Quantas pessoas de décadas atrás dariam a alma para utilizarem a eficiência
racional daqueles recursos? Quantas guerras teriam sido poupadas se, há cem
anos, por exemplo, um Gavrilo Princip pudesse mandar a um Francisco Ferdinando um texto
curto escrito em sinais grifados básicos cujo arremate se concluiria com o
desenho de um polegar levantado de pedido de concordância? O sr. Flibas pestanejou
baixinho e se resignou à sua condição de velharia. Estava se apagando muito
rapidamente, e não imaginava que a derrocada seria tão cheia de atenuantes
sensoriais e despejos serenos de serotonina. Uma série de desfalecimentos
inseridos por algum códice adquirido às custas de milênios de testes e
contratestes cromossômicos que levava em consideração a mais alta anestesia.
Era sobre isso que se falava os altos entendidos da fisiologia quando diziam
que a morte era um processo não isento de ser agradável.
O metrô estava com os tipos característicos
de uma quarta-feira. Companheiros urbanos daquela supressão de contatos e
sinais. Uma classe de movimentos condicionados tão eficiente que não mais se
esbarravam uns nos outros para evitar desculpas inconvenientes. Parecia que
tudo havia atingido o mais alto grau do aborrecimento e propalar informações
sinápticas recíprocas se tornara uma espécie de libidinosidade grotesca. O sr.
Flibas ficava firme em seu canto, com as mãos se segurando na trave de aço
galvanizado, junto ao aparador dos fundos do vagão. Não haviam mais os
românticos leitores de jornais, com as folhas albatrozinas abertas nas caras de
vizinhos estranhos mas complacentes. Era uma interessante moda aceita, a de que
a palavra deveria ser obtida mesmo através daqueles instantes passageiros, em
que o servilismo do dia dava lugar a um pouco do que nem os faraós tinham. Se
fazia uma viagem pela política global se levando pelas mãos de velhos
articulistas geralmente rancorosos, ludibriados por uma impressão de estarem
libertos da cultura acadêmica ao fazerem suas próprias análises com cheiro da
inteligência coloquial das ruas. Depois que publicara seu livro e a imprensa
cultural achou o simbolismo válido de que seu Pequeno Nero poderia ser lido
como uma crítica ao subdesenvolvimento, um jornal de grande circulação lhe
chamou para fazer pequenas observações perspicazes sobre as mazelas das
desigualdades sociais. Deram-lhe uma sala em que mais três homens com a mesma
cara de garotões que enfim alcançaram a emancipação das fantasias utópicas da
juventude usavam suas mesas particulares. O sr. Flibas sempre tivera uma opinião
honesta sobre si mesmo_ honesta pelo menos quanto ao que sua lucidez advinda de
uma curiosidade infindável sobre tudo, todos os eventos naturais e metafísicos
havia lhe dado de espólio mental_, e sua não cooptação, sua total insolvência
às virulências escritoriais e seu modo de ser recolhido e intenso, fez com que
aqueles homens solitários cheios de vícios da maledicência vissem alguma
distinção nele. Ele dominava todos os assuntos, sabia a fundo se situar nos
espectros mais amplos do cenário cultural e político. Tinha pensamentos sempre
perspicazes para expressar sobre o escândalo dos prós israelenses, sobre o pós
colonialismo do leste europeu, sobre arte abstrata e música gótica. Sua
tendência a consumir publicações condenáveis esteticamente para aqueles
senhores tão cultivados o permitia saber quem era a nova celebridade pop star
de Hollywood. Na época, o sr. Flibas reconhecia em si uma espécie de uma fé
placeba nas propriedades da permanência que vinha do baixo clero da mentalidade
social. Era baseado nessa sua inclinação que lia aqueles jornais comunistas que
Alexandra lhe trazia às quintas-feiras. Trabalhou por dois anos no jornal,
escrevendo sobre cultura e sobre política, e chegou a fazer fama suficiente
para que lhe mandasse cobrir acontecimentos na Europa. Ser um autor infantil
conhecido o isentava de ser levado a sério no campo em que sua visão
cincunstanciada dos eventos lhe levava, e muitas vezes as pessoas perguntavam
quem era aquele Omeno Flibas que disparava aquelas análises eruditas, às vezes
mal disfarçadas com as cores de uma jovialidade que seu editor insistia para
que ele procurasse ter. Muitos ainda o conheciam nos eventos que costumava
frequentar anos depois daqueilo tudo ter acabado como o articulista mais
equilibrado, que podia falar sobre os assuntos mais espinhentos como se tivesse
um globo em três deimensoes em sua mesa de trabalho. Inclusive foi essa a
imagem que certo professor de alta patente universitária havia usado quando se
encontraram num jantar da academia de letras. E agora o sr. Flibas olhava
aquelas pessoas com uma nostalgia impessoal, pensando como sempre no tanto que
a maleabilidade da progressão humana apostava na adaptação da espécie. Ele não
era nenhum arauto da verdade, mas havia trabalhado com afinco para educar, não
lhe passando despercebido a grande vantagem que o fato de não ser do meio lhe
dava. Alexandra achava, contudo, que essa sua versatilidade que lhe havia
acabado com a carreira literária o impossibilitando de ter novos interesses
para continuar na literatura infantil. Talvez fosse uma descrença antecipada,
uma espécie de presságio do desinteresse reinante que iria tomar conta de tudo.
O livro que segurava debaixo do braço, com a lombada fazendo pressão por sobre
a região das axilas de seu casaco, o velho Bergson, falava sobre o sentido de
usar o cérebro, essa máquina primorosa, para cumprir seu papel técnico de
“observar as leis de Deus”. O que aquelas pessoas faziam senão abortar esse
poder, torrando suas faculdades soberbas da imaginação com picuinhas. O sr.
Flibas sentia o traço de neurastenia em suas feições, muitas vezes sua
capacidade de se abstrair saía por um momento daquelas críticas e se percebia a
si mesmo, um velho rancoroso que provavelmente as pessoas que o flagrassem
prefeririam evitar. Um dos tantos profetas solitários a que ninguém interessava
saber de seus tesouros empoeirados e sem empatia. A solidão da cidade os
absorvia, os assepsiava da vida em seguimento.
Chegando na estação da Luz o senhor Flibas
desceu e seguiu em sentido do bairro do Marechal Teodoro. No meio do caminho
para a biblioteca uma moça o parou para tomar informações. Enquanto ele tentava
se concentrar na linguagem rápida e um tanto incompreensível dela, o sr. Flibas
sentiu de leve uma mão entrando pelo bolso do seu casaco. No mesmo instante foi
dominado por uma sensação anestesiante, seu sangue pareceu se esfriar. Sua
consciência ficou límpida, concentrada na concisa determinação de poupá-lo das
tantas resoluções drásticas do evento. Ele sentiu que se titubeasse nas palavras
expositivas que procurava usar a serviço da moça, algo de muito ruim iria
acontecer com ele. A mão bem próxima à sua pele agia como um animal noturno,
uma grande aranha caçadora dotada de sensores predatórios para se movimentar o
mais furtivo possível. De alguma forma ele oferecia uma sensação de segurança a
ela, pois ela investia com fúria incisiva, apressada, sem tempo a perder.
Vasculhava o fundo do bolso fazendo um rápido giro completo e quando percebeu
que não havia nada dali mesmo ela se enfunou pelo bolso da calça do sr. Flibas.
Era uma resolução curiosa, pois ele se lembrou que sua carteira estava no bolso
da frente e a mão se deparou com seu contorno, mas haviam quatro panos entre
eles. O sr. Flibas pôs-se a sentir o bafo respirando de forma mecânica em sua
nuca. À medida que a carteira ganhava as configurações interessantes na mente
que comandava a mão, a respiração ficava mais invisível, como se todos os
órgãos retivessem a combustão de energia para que toda ela fosse para a inteligência executar o roubo. A moça tinha
uma cara de enfado profundo. Usava dois cachos no ralo cabelo loiro por cima
das orelhas, como uma criança, e mascava chicletes ostensivamente. Era possível
que de longe, para quem passasse alheio àquela cena grotesca de três seres
humanos acoplados num conjunto único e assimétrico, o som da mastigação fosse
audível. Um misto de atestado da grande repulsa que a moça tinha contra o
corpo, a presença e o conjunto de memorial abrangente que o sr. Flibas
despertava com sua figura decaída em uma jovem. O sr. Flibas queria facilitar o
máximo possível a ação de ambos, a moça e o dono da mão, e não entendia porque
eles recorriam a um planto tão mirabolante, se havia outras alternativas bem
mais econômicas. Bastaria que eles empurrassem o sr. Flibas para um dos becos
perpendiculares da rua e lhe retirassem a carteira. Fariam isso sem precisar
emitir uma palavra, diante a lógica apresentada de que um velho não oporia
nenhuma resistência. Mas em vez disso, eles escolheram algo cinematográfico,
como se atendessem algum modelo que haviam lhes cativado a atenção em um filme
da sessão da tarde. Não era só a carteira, que eles bem intuíam que não
ofereceria nenhum ganho primoroso, partindo de um senhor andando com seu casaco
puído com um livro na mão. O principal era a satisfação de alguma empreitada
que eles haviam se imposto, um gesto de autocongratulação elogiosa. Quanto mais
distante da resolução óbvia, mais eles sairiam com a sensação de que haviam prestado um elogio
às suas sagacidades. Pensando assim, o sr. Flibas trabalhava para lhes dar o
máximo de resposta possível. Não parava de falar e, quando notou que já havia
encerrado a enunciação de onde ficava o local que a moça questionara (a rua do
Olvidor), ele completara o tempo restante em que deveria se comprometer com
aquilo improvisando alguma conversa trivial. Resolveu sorrir, o que lhe pareceu
certo fazer se ele mesmo fosse o hipotéticpo observador externo à cena (oh, uma
jovem mulher falando com um senhor respeitoso, enquanto um homem troncudo se
lhe aproxima por detrás e bafeja em seu ombro; não seria óbvio que ele
sorrisse, agraciado?), e continuou sua parte na representação daquele grupo
virtuosístico dizendo que se a moça estava atrás de um bom almoço ela
encontraria no restaurante chinês que havia na esquina com a rua 3, ou se ela
fosse do tipo romântico que preferria ocupar seu tempo comprando flores, havia
uma charmosa floricultura no beco sem saída na rua 7. O sr. Flibas inclinava
para o lado e afastava seu cotovelo, que havia se batido claramente com a mão
interrompendo-lhe a passagem. Sentiu a mão parando, tensa, diante aquela
primeira evidência de que havia sido notada por sua presa, e do alto do cérebro
que a comandava o sr. Flibas sentiu a respiração do homem se tornado mais forte,
como se estivesse com raiva. Já sem ter presença espiritual suficiente para
permanecer fazendo de conta que estava alheio ao enorme parasita que transitava
próximo à sua virilha, o sr. Flibas sentiu que seu sorriso se liquefazia e ele
olhava à frente da moça, para os azulejos da loja de materiais de construção
onde estavam parados. Não conseguia falar mais nada e sua fala titubeava,
repetindo involuntariamente pequenas sílabas desconexas. O homem agora puxava o
sr. Flibas, o empurrava, trazia sua cintura para mais perto e a afastava, como
se ele fosse um boneco de pano. Como se sua mente arregimentasse um depósito de
memórias pacifistas para afastar que se sucumbisse ao terror, a imagem de um
antigo filme mudo lhe surgiu, de um homem, provavelmente Buster Keaton, sendo
manejado com grosseira virulência a partir da cintura, seu corpo pouco nítido e
excessivamente esbranquiçado pelo efeito do celuloide antigo fazendo movimentos
ascendentes em S. Apesar de ter quebrado a premissa daquele estranho contrato
de submissão, ele intuía que não poderia dirigir-se diretamente ao homem. Assim
iria desfazer o grau de invisibilidade que estava no fundamento de todo o
processo, e que garantia de forma metaforicamente pactual a segurança do senhor
Flibas. Se o agressor fosse enunciado verbalmente, ou se ele fosse oficialmente
enquadrado no âmbito visual do sr. Flibas, nada mais haveria para abalizar a
impessoalidade daquela ação. Ele se sentiria autorizado a partir para uma nova
fase, usando uma faca, ou uma pistola. Se não fosse essa silenciosa
determinação, o sr. Flibas lhe diria com gentileza que ele lhe entregaria tudo
que quisesse. Pelo canto dos olhos ele via as pessoas passando. Era
fisiologicamente impossível que os três não estivessem correspondendo a alguma
exigência de atenção por parte daquele público disperso e seletivo. Era
incompreensível que o evento não atendesse a todas as sofisticadas exigências
de entretenimento que aquela massa requeria: havia a subjugação, a ausência de
dignidade, principalente dele, que era vilipendiado e jogado para o alto e
dobrado com vigor. Havia até mesmo o caráter sexual da figura um tanto
desmazelada da moça, com seus braços cheios de tatuagens e sua saia curta,
mostrando (o sr. Flibas nãos abia como isso fora apreendido e sugado por sua
mente perspicaz) veias rajadas sobressaindo à pele translúcida das pernas. Ela
tinha olheiras profundas, e no fundo dos seus olhos havia um ódio que
transplantava a aparência de sua pouca idade. De súbito, motivada pela falta de
paciência lógica que o fracasso de todo processo estava causando, ela olhou
para ele, com o rosto desprovido de qualquer traço de humor, e disse: “O velho
está querendo me dar rosas, Tarto”.
O senhor Flibas apurou os ouvidos e
interpretou a frase retroativamente. Era uma jogada totalmente inesperada e ele
não estava preparado para aquela nova disposição do enigma. Não conseguiria
mais sorrir, pois a intuição clara do perigo já lhe tomava conta por completo.
O homem, resignado de que seu primeiro plano
não havia dado certo, retirou a mão do casaco e a enfiou de uma vez no bolso da
calça. Com um puxão vigoroso, saiu com a carteira para a luz do dia. Abriu-a,
tomou posse do dinheiro, e com movimentos que não duraram um segundo passou os
cartões e os documentos pelo crivo do seu olhar e os jogou no chão. Sem dizer
nada, guardou o dinheiro no bolso e saiu caminhando com total segurança. A moça
parece ter perdido alguns instantes significativos desses gestos finais
gastando-os olhando fixamente o sr. Flibas. Ele olhou de volta, os olhos
arregalados, sabendo que um medo incontrolável, que o deixava imobilizado,
estava estampado em seu rosto. Sua mente dialética, num humor involuntário
inevitável, trabalhava lhe enviando pensamentos cujo sentido era lhe oferecer o
que a moça estaria pensando diante essa sua reação, a excisão de qualquer
consideração humana que o sr. Flibas tivesse para suplantá-la por um nojo
diante um simples animal acuado. Os olhos do senhor Flibas, numa atenção bovina
(um novilho velho no corredor de abate de um abatedouro, sendo presenteado com
a iluminação súbita e inoportuna de sua morte iminente), viram ela desistindo
de levar em frente o que passara-lhe na cabeça, descartando com um sorriso de
desprezo. Um sorriso pelo canto da boca, que mesmo assim foi suficiente para
mostrar os dentes brancos e joviais, quase infantis. Daí ela foi embora,
seguindo os passos do companheiro.
O sr. Flibas respirou rápido, sentido o
coração batendo nas têmporas. Se encostou na parede de azulejos e procurava
estabilizar sua máquina interna. Ajeitou os óculos, que haviam ficado
deslocados por sobre o nariz por causa da pressão que o rosto do homem lhe
fizera. Procurou não olhar na direção em que os dois iam, mas o frêmito
instintivo fez com que os flagrasse já à distância. Surpreendentemente viu que
o homem era baixo, talvez metade do tamanho que a impressão de sua proximidade
lhe causara, e usava um casaco longo de feltro. Suas pernas eram um tanto
tortas e sua pele era morena, os cabelos crespos curtos aparecendo debaixo do
chapéu de palha que usava. Parecia um trabalhador ad construção civil, músculos
rijos e ampla maleabilidade. A moça o alcançou e o agarrou pelo braço,
simulando uma dança. Erguia a cabeça e mostrava exultação lúbrica. Para ela era
como se a cidade não existisse, ou existia em xecesso e aquele desprezo era
todo aparente. Ela lhe deu dois beijos ostensivos, enquanto o homem seguia sem
reação alguma, quase como se a não notasse. Ela molhou a ponta dos dedos e
passou por sobre uma marca de batom que havia deixado no rosto dele, fazendo
isso com uma atenção que foi o único momento em que sua larga e bonita boca
pararam de sorrir. Dobraram a esquina com a mesma pressa célere, que não era
nem um pouco evasiva. Não estavam se importando em nada com a polícia ou com
qualquer reação popular. Ninguém mais do que eles pareciam ter entrado no
conhecimento secreto do profundo anestesiamento que tomava conta de todos.
Mudando a avaliação que ele tinha do erro das grandes distopias em terem
previsto um fim grandiloquente, a premissa de que a realidade poderia ser um
simples programa de computador em que só os muito lúcidos e independentes
notavam era válida na impressão daqueles dois de serem os únicos seres
acordados em todo o cosmos urbano.