sábado, 17 de fevereiro de 2024

Espinosa


 

O sr. Flibas catou de uma estante um volume da Ética, de Espinosa. Folheou-o e voltou à primeira página, pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr. Flibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escreveram os prefácios e as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o mestre. Ele se deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento elevado. Isento de dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se separar o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem maiores do que o infinito em si. Pequenas anedotas que engrandeciam a alma do leitor, essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável, sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de exclusivismos humanos em posicionar o homem  como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram Espinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160 livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Espinosa morreu de solidão inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas metafísicos sagrados.

   Espinosa fundou toda uma corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo a que Espinosa atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo consentidos, sem essa vida vicejante, corrupta, escatológica, visceral e mesquinha, a humanidade não teria ido muito além dos limites da caverna. Só um Espinosa fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções, livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar, intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era a isso que o velho Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da obsolescência aceita. Espinosa teria adiantado em três séculos o nazismo e a sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.

   Era para confirmar essa sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima, o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas. Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que Cristo falou aos apóstolos. E Espinosa traduziu essa frase dessarroada por nós vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinosa não diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia. Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas, de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os velhos êxitos alienantes.

  O sr. Flibas resolveu comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de São Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor em quatro volumes. Estava livre de Espinosa, o que queria dizer que não tinha muita coisa a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo. Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando alguém aparecer. Olhou em torno e só agora viu que havia mais pessoas que teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Havia duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Espinosa por aquela cena, de duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse para o sono_, mas se ele não se sentisse tão fisiologicamente isolado em suas resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda insistisse em durar, o propulsor da vida estaria sempre do lado de fora de Espinosa e absolutamente alheio àquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.

   O armênio havia aparecido do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr. Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio de grandes fogueiras para queimar livros.

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