Salmon Eresh sabia que se tratava de um assunto delicado, do
qual ele não poderia mais fugir. Vinha adiando o enfrentamento com aquele
cristal translúcido do estúpido perigo que a realidade armava diante de seus
olhos, e agora não dava mais. Iria ter que abraça-la, embora atirar-se para seu
fundo talvez fosse a imagem mais condizente. Olhava por sobre o gorro da cabeça
de Irwin, muito além das árvores empoeiradas que insistiam em crescer num
pequeno quintal com ares centenários de uma casa de tijolos pelos quais
passavam em seus passos trôpegos e concordantes; balançava a cabeça para que
seu amigo não se irritasse com mais uma mostra de que desde quilômetros atrás
não se atinha a nenhuma palavra que saía dele, apenas simulava ouvi-lo, mas as
musas inescrupulosas que tomavam as rédeas de sua vida já sussurravam como
deveria ser, como ele deveria realizar aquela idiotice suicida da maneira mais
desastrosa possível.
_ Hein, Sal?
O que acha?
Salman Eresch
abaixou os olhos, aflito por ser pego em flagrante. Teve que reprimir seu tique
caraterístico de tossir que sempre lhe acometia quando seu retorno à realidade
era cobrado. Era o preço a se pagar por ser demasiadamente íntimo de Irwin.
Conteve-se também para não ajustar o chapéu, sabendo que o amigo iria se
irritar com essa entrega de que sua mente planava no éter sem lhe prestar a
mínima atenção. Com um olhar sereno, voltou-se para Irwin e assentiu.
_ Acho que deve
estar certo meio por cento e o que sobra de resto você deve analisar com mais
cautela.
Pronto! Irwin podia
ter cara de idiota_ e na verdade não tinha, com seu traço cigano que depois de
uma boa ducha de água quente e uma repaginada apareceria com certos ares de
beleza_, mas não o era; de cara ele soube que suas custosas e trabalhadas
palavras haviam caído no vazio, aquela parlenga que vinha fazendo com paixão
desde duas esquinas esquina atrás, fora atirada para o nada. Salmon estreitou
seus olhos e fez uma careta de dor antecipada. Merecia o que vinha adiante. Como
gostaria que Irwin fosse mais condescendente com seus deslizes. Havia tanto mal
no mundo, ele suspirou, olhando com piedade um rato estraçalhado na calçada e
que seus passos tiveram que contornar, e nada desse mal estava instalado no seu
coração, pelo menos não relacionado ao amigo, para que ele perdesse tanto tempo
com destemperos gratuitos.
_ Você é um
egoísta, Sal! Não sei por que raios eu ainda insisto em andar do seu lado.
Melhor seria que eu saísse sozinho conversando comigo mesmo, como faz o velho
Vilhena. Para você só o que tem entre suas orelhas lhe interessa, e o que deve
ter entre as orelhas deve ser realmente muito genuíno para achar que salvaria o
mundo.
Salman engoliu
em seco. Por um triz quase deixara também de prestar atenção a essas palavras
de Irwin pois sua mente começara a analisar quem fora o assassino furioso que
fizera aquilo com o rato. Em ligeiro retrospecto viu que sua cabeça virara em
direção oposta à de Irwin, pronta para vasculhar o cenário onde ele estaria. Negro,
maltrapilho, indisposto a perturbação, seviciado por uma longa vida de maldades
que para ele fora suficiente apenas rasgar a barriga da vítima e deixa-la com
as vísceras expostas: o gato. Mas não! Concentre-se em Irwin, deixe o pobre
irlandês extravasar sua digna e legítima indignação.
_ Tudo bem,
Irv! Eu sou culpado_ começou a dizer com sua voz arrastada, torneada de cinza
por cinco décadas de tabagismo, as cordas vocais acostumadas a trabalhar em uma
meia frequência que se adaptara à malemolência de sua língua preguiçosa que só
se movia para as funções gastronômicas. Uma voz que tinha o privilégio de
atender aos canais de assimilação do senso comum atribuídos à sabedoria e à
tranquilidade, o que mesmo para Irwin servia a lhe acalmar. Irwin considerava
que o amigo podia ser mesmo de uma percepção da realidade superior ao dos
demais; enxergava nas brechas onde ninguém se interessava em perder seu tempo
observando e assim angariava vantagens plausíveis. Mas anos de amizade o
capacitara a saber que sempre havia um elemento de estupidez recorrente
naqueles planos mirabolantes de Salman_ Mas note bem, Irwi. Vamos nos ater ao
projeto. Vamos jogar toda tralha espiritual que nos ocupa hoje no lixo; você
pode fazer isso, não é uma pergunta. Um bom começo é nos desfazermos da ira.
O frio veio
com tudo pra cima. Um vento que deixava claro ter propósitos firmes nos objetos
que estavam além deles, no final da perspectiva livre em que ganhava velocidade
e espichava suas unhas diáfanas de força para acarinhar com ávida violência os
papéis, latas vazias e cestas de lixo, destrambelhando-os com uma alegria
irracional e sem propósito. Tudo no mundo se expressava através de uma
brutalidade descomedida e sem propósito, que se freava quando se confrontava
com vetores das tantas e tantas outras manifestações das leis naturais que
também se cumpriam com o mesmo descomedimento e selvagem exaltação. O mundo não
havia se acabado ainda por causa desse equilíbrio entre a fúria de miudezas da
inconsequência devastadora. Eram esses pensamentos metafísicos cheios de
nuances do oculto gato assassino que ocupavam a mente de Salman, levando-o para
longe do borrão sonoro do que Irwin dizia, que ele sabia ser uma reclamação
renovada de sua capacidade irretorquível de se distrair e não habitar o mundo.
Desde criança era assim, talvez já tivesse contado isso a Irwin numa das tantas
tentativas de obter perdão do amigo por isso. Devo ter falado da minha terna
mãezinha de olhos escuros e lenço na cabeça, que reclamava com uma voz parecida
à de Irwin, cheia de indignação, quando me via com os olhos nublados de sonho
na mesa de jantar. Ela achava que eu não serviria para nada quando crescesse,
era uma mulher dura mas meiga, insinuava meu fracasso por gestos e dar de
ombros, por suspiros de resignação. Ela estava absolutamente certa.
_ Muito bem,
Sal_ Irwin encolheu o pescoço para se proteger na gola do casaco, soltou um
hausto de vapor quente que se projetou numa fumaça translúcida no ar._ Vou
seguir seu conselho. Qual a sua ideia para sairmos desse impasse que estamos
hoje?
Salman não
estava preparado para isso. Com notável lucidez percebeu que ambos atendiam a
alguma necessidade fisiológica em serem deixados em paz para realizar as
últimas atividades peristálticas, e aquela conversa fiada era manifestação
disso. Era uma espécie de função cognitiva inconsciente que as pessoas realizam
em manhãs como aquelas, de uma segunda-feira fria e insubmissamente
indiferente, em que os hormônios e as sinapses nervosas detinham o conhecimento
verdadeiro de que o que realmente era sério e importante eram aquelas singelas
reposições intercambiáveis do corpo. Na mesma linha das danças de acasalamento
dos pintassilgos, mas em sentido contrário. Não havia alegria nem promessas de
vida, mas o recolhimento exercia certo conforto que ele não tinha porquê
reclamar. Ele se obrigou dessa vez a acordar aquele cérebro que sabia ser
meticuloso e astuto quando bem direcionado.
Fez um esforço
não tão hercúleo para se lembrar da situação beirando a catástrofe em que ele e
o amigo estavam. Precisava explicar a Irwin seu plano com a mais zelosa
pormenorização possível, por isso procurava comunica-lo através de um silêncio
eloquente cheio de sutis respiros, remodelamento da velocidade do passo e um e
outro pigarro na garganta de que estava organizando as frases, enfileirando na
cabeça em uma ordem lógica as imagens do que tinha a dizer. Irwin parecia ter
entendido, pois se calou e impusera às pernas a desaceleração que as pernas do
amigo requeria. Pense, Salman, Salman se ordenava, não o deixe esperando. Se
não falar logo o que tem que falar, ele vai se irritar novamente e tudo vai
voltar à estaca zero.
Há quantos meses os dois andavam por aquelas
ruas da cidade, mediam com os pés os metros da igreja da matriz até a orla da
praia, do colégio provençal até o beco do comércio, depois iam do batalhão militar
até a zona do lupanário, faziam a curva no monumento do relógio solar e viam o
sol se ascendendo ao zênite no meio da reserva florestal? Andavam tanto que as
pessoas deveriam pensar que eram antigos aristocratas
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