domingo, 22 de maio de 2016

Júlia e o Chico



A Júlia adora música. É uma personalidade extremamente musical. Vive executando passos de danças pela casa. Prefere Black Sabbath a Led Zeppelin, o que destoa de mim. Adora música minimalista: declara com franqueza tocante a beleza despertada nela pelas músicas de Steve Reich e Philip Glass. Até bem pouco tempo, assistíamos Powaqqatsi no mínimo duas vezes por semana, logo após 2001_ hoje restringimos para uma vez por mês. Ela adora as sinfonias de Beethoven, os concertos para violino de Mozart assinados pela Anne-Sophie Mutter, as sonatas para flauta de Bach. Quando coloco para tocar alguma música que me toca profundamente, sei que ela surgirá do quarto, escorará o queixo em meu ombro e dirá: que música linda, papai! Ela puxou de mim, como dizem, essa felicidade para a música, essa introspecção acolhedora que torna a solidão a melhor amiga. Por vezes fica sentada diante o quintal de casa, comendo uma fatia de pão, enquanto escuta a música vindo da sala (pois constantemente e quase sem interrupção, estamos a ouvir música), enlevada, e eu lhe pergunto o que essa música lhe traz à cabeça. Suas respostas sempre são surpreendentes e de elevado grau poético. A derradeira vez que me respondeu, ouvindo To the unknow man, do Vangelis, disse lhe vir a cena de crianças brincando em um parque. Antes de ontem, no ciclo de músicas brasileiras que estamos a escutar, ouvimos juntos pela primeira vez Meus caros amigos e Construção, do Chico Buarque. Foi só uma vez. Passeamos à tarde de carro, e ela de ora em ora cantava "O que será, que será", indo bem à frente na letra antes de se perder na emulação não-verbal do ritmo. O banho da noite fazemos sempre juntos, eu a ensaboo e ela me ensaboa de volta e passa shampoo em meus cabelos. Depois ela pede para que eu faça a roda, em que se senta no espaço das minhas pernas fechadas em círculo no chão. Então, para minha surpresa, do nada, ela passa a me perguntar coisas sobre a música Construção, recitando estrofes inteiras com uma correção espantosa. Remete a outra música do álbum ao perguntar como é possível existir beijo de café e beijo de feijão. E o que era aquilo de morrer na contramão atrapalhando o tráfego, e atrapalhando o sábado, que isso não se faz não é papai?, que como era possível que a música criticasse a ação do homem quando o que o homem havia feito era morrer, o que é muito mais sério do que apenas atrapalhar o tráfego. Eu me desmancho de admiração e dou grandes gargalhadas, o que a aflige porque eu demoro a lhe explicar. Minha filha de 5 anos debatendo sobre uma música de um dos maiores compositores do mundo. Então é assim, Chico, eu penso, que eu vou paulatinamente aprendendo a gostar de você?

10 comentários:

  1. Ela ouve com a... Mutter? Mas dá um violino pra ela! Gostar de Mutter revela um grau acentuado de maturidade musical. Em nosso tempo , música alemã -- Beethoven, Mozart, Brahms -- é com Mutter, mas quantos anos se leva para descobrir isso!. Sobre Chico... Eu o adoro e acho que vais pelo mesmo caminho. Ignore os romances dele, ouça as canções, Charlles! As canções são sensacionais Tome um café é dê um beijo na Júlia. Parabéns pela filha!

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    1. Mutter é bastante reverenciada aqui em casa. Aquele cd duplo dos concertos de Mozart, com a Sinfonia Concertante (com o encarte com a figura das musas narcotizadas) é o melhor da minha vida. Posso ouvi-lo_ e o ouço_ por repetidas horas consecutivas.

      Aqui não temos escola de música, o que é lamentável. A Júlia fez por três meses o que nos folhetos vinha escrito "aula de balé", mas ela pediu para sair e se negou terminantemente voltar, porque a professora, uma adolescente de pernas lindas, estridente e deslumbrada (biquinho de pato no Faceboo), passava músicas da Anitta e não sei mais quem "da hora". (A Júlia certa vez fez protesto contra o sertanejo universitário no carro da minha irmã, tampando os ouvidos, de modos que minha irmã não liga mais o som do carro quando sai com ela.)

      O mais importante é a formação musical da Júlia_ o Eric segue pelo mesmo caminho: para tudo que está fazendo, até o choreiro de seus sete meses, para "olhar a música", quando ligo o som.

      Se tivéssemos aulas de dança contemporânea, por professoras competentes, a Júlia com certeza estaria matriculada. Ela faz números de dança que cê precisa de ver, como um que interpretou uma música do Lee Morgan (repito aqui a melhor definição de jazz que já ouvi, da boca dela: "o jazz é bagunçado, mas é bonito").

      Mas chega de pai babão.

      Realmente o Chico é um músico fantástico, devo me render.

      Obrigado!

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  2. A Elena ficou encantada com a Júlia. Ela dá aula para uma menina talentosa aqui em POA. As duas se dão muito bem, mas um dia, a menina não fez os exercícios de casa e ouvi a Elena reclamando de sua irresponsabilidade. "Você já tem 9 anos, Helena, 9 anos". E a menina baixou a cabeça, admitindo...

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    1. Caramba, que privilégio dessa menina.

      Já que me provocas, e não se deve provocar um pai babão, conto por final que um dia a Júlia estava chorando na biblioteca, com um sofrimento sentido. Pergunto o que era, preocupado, e ela me diz, puxando o nariz, que todo mundo faz coisas importantes, a doutora a examina (havíamos levado ela à pediatra, à tarde), a mãe cuida dela e de nossa família, só ela não fazia nada, nada, nada. Para convencer ela que a infância é uma baita de uma atividade, foi duríssimo...

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  3. Finalmente, após quase uma década, li por aqui um elogio ao Chico...

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    1. Com o tempo eu estou me tornando menos besta, Ramiro. Mas meu repúdio ao Chico vem de um sério trauma psicológico. Eu sempre odiei minhas escolas, odiei a educação. Fui muito estudioso por mim mesmo, o que foi uma sorte e tanto, mas os bancos da escola e os professores me aterrorizavam. E isso durou até depois da faculdade. Ainda hoje, de forma recorrente, eu tenho pesadelos com o colegial e com a faculdade, pesadelos horríveis de que não me formei e tais.

      A mesma origem de meu desconforto com o Machado de Assis. Não suportava as professoras fazendo a gente cantar "A banda", e as outras música do Chico. O Chico, então, ficou gravado em minha memória sentimental como algo velho, inoportuno, chato e pedagógico. Eu realmente odiava o Chico, não conseguia ver o que todo mundo via nele. Nada tinha a ver com esquerdismos ou o PT ou o Lula. E é sintomaticamente maravilhoso que o olhar da Júlia esteja me libertando disso, esteja sanitizando tudo de bom que foi intoxicado por essas pragas da Moral e Cívica e da Literatura Brasileira.

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    2. Só para não parecer que eu esteja falando de uma Júlia que não é criança, aqui vai uma história "feia", o que prova que ela é uma criança saudável em todas as criancices:

      Essa semana ela quis ir a um circo mambembe que aportou na nossa cidade. Eu fui investigar que tipo de circo era esse, e vi que eram os mesmo camaradas com caras de irmãos Metralhas que bienalmente vem se apresentar por aqui. Os caras tem caras de bandido, sem tirar nem por, e se anunciam como "covers do Patati Patata". Os próprios Patati Patata são horríveis por natureza (me revolve o estômago esses palhaços sem graça que querem ser o exemplo da bondade), mas a Júlia os adora. Eu falo para ela que não iremos, porque se trata de um espetáculo caça-níquel muito ruim, que seria uma perda de tempo ver personagens cafajestes tipicamente pynchonianos querendo levar na conversa pais enternecidos pelos pedidos dos filhos (não falo à Júlia com essas palavras, está claro). Ela costuma desenhar carinhas zangadas e me entregar sorrateiramente quando fica irritada comigo. Eu vou dando corda, desenho uma carinha feliz; ela desenha de volta outra carinha furiosa; eu desenho uma resposta. Daí ela me entrega uma folha com os escritos: "mamãe, Júlia, Eric e cocô". Eu a chamo e pergunto, já intuindo a evidente mensagem, quem ela estava chamando de "cocô". Ela fica meia hora de castigo no quarto.

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  4. Acho que é no Big Sur do Henry Miller que tem um trecho muito bonito em que ele fala que nasceu de novo quando passou a (re-)ver a vida através dos olhos de seus filhos.

    Eu gosto bastante do Chico Buarque.

    Aliás... Leram o site da Folha hoje? Bem didático.

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    1. Li sim.

      No Facebook do Eduardo Cunha tem centenas de comentários elogiando ele, dizendo que ele tem que voltar, que ele é o malvado preferido. Há uma frase do kertész que pode definir bem a nossa dita classe média: "na realidade é mais para uma faixa de intelectualidade média do que para uma verdadeira classe média".

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  5. Charlles,também tenho pesadelos associados a minha formação...
    Apesar de ter defendido o doutorado e feito um pos-doutoramento, há 20 anos, às vezes acordo desesperado com a plena certeza que ainda devo créditos da minha graduação... E o tormento é que sempre sou reprovado por faltas...

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