sábado, 14 de maio de 2016

Rotinização do carisma



A paternidade traz essas quebras do costume na minha vida. Minha filha Júlia faz com que seu pai seja mais sociável. Festas infantis, reuniões de escola, e uma até então inusitada situação de parar na rua, de bermuda, com uma sacola de compras na mão para conversar com um "pai de amiguinho". Confesso que no começo eu assustava com minha hipocrisia. Sorria, contava piadas, encorporava a farsesca figura do quarentão gordo de vida arrumada fazendo piadas medianamente cretinas sobre a calvície alheia. Aliás eu tenho essa doença de caráter (que me veio justo agora o alerta de que eu devo parar de adiar avaliá-la), algo semelhante à vontade do cara que tem pânico de altura em querer se lançar da janela do décimo andar: minha misantropia e minha resistência severa por sair de meu refúgio solitário faz com que, quando acontece o inevitável, eu assuma uma personalidade terrivelmente teatral. (Certa vez, no último ano do curso de História, quando eu era solteiro, participei a contra gosto de uma reunião da turma em uma pizzaria, e um espírito sobrenatural de histrionismo histérico fez com que eu dominasse a atenção da mesa por longas horas, de forma que minha sempre atenta auto-vigilância me levava a temer um AVC ou que eu fosse convidado pelo gerente a deixar o estabelecimento, quem sabe naquele momento em que eu disse para a gostosona da turma que ela para mim era como uma irmã, de tal forma que ela poderia se sentar em meu colo sem muitos prejuízos.) No momento de silêncio que segue após essas coisas eu fico observando a Dani pelo canto do olho, à espera de que ela diga algo do tipo "você exagerou dessa vez, não precisava de tanto", mas ela nunca diz nada, ou por gentileza ou porque talvez essa síndrome lhe pareça um constitutivo surpreendentemente novo do meu comportamento. (Certa vez, em uma reunião de pais, eu liderei sem ver um protesto contra a retirada da professora auxiliar das salas, de maneiras que olhei para os lados e vi os cordatos senhores pais, funcionários públicos dizimistas, e as solenes mães, recatadas e do lar, em possessivos estágios de apitos valvulares arteriais movidos pela súbita indignação, e dois dias depois fui chamado, eu e a Dani, até a sala do diretor_ o que me provocou um temor kafkiano de que, em uma conclusão absurda, nós fôssemos expulsos da escola_, e lá, segundo a Dani, eu fui tão diplomático e atento às normas gramaticais que, o diretor e os coordenadores impressionados, deveriam ter se perguntado se se tratava da mesma pessoa que causou a comoção pública de dois dias atrás.)

De maneiras que fizemos um casal de amigos. Ele, o Sérgio; ela, a Luanda. Simpaticíssimos. Deu medo no começo, confesso, pois seus sorrisos me faziam lembrar de O suspeito da Rua Arlington. Uma vez, de novo confesso (com um pouco de vergonha), me escondi no quarto e pedi que a Dani avisasse ao casal à porta que eu não estava. Mas eles são dessas pessoas tão profundamente cordiais que eu sempre suspeito terem uma precognição sobre essas pequenas malvadezas, e que sempre estão divinamente compreensivos dispostos a perdoarem esses pecadilhos triviais. Depois disso, em um domingo, eles aparecem na hora do almoço, trazendo (pasmo!) uma panela cheia de galinhada. Nós o recebemos, consternados diante uma técnica tão surpreendentemente indefensável de forçar a amizade, e o convidamos para o churrasco familiar que estávamos fazendo. Eles se sentam com caras seguras, como embaixadores de uma país culturalmente mais avançado investidos da missão de se representarem bem para um povo obscurecido pela devoção ao próprio umbigo. Olho para a Dani e ela sabe sobre minha deficiência em dialogar sobre vários assuntos (por isso minha fuga para a comédia pastelão e para a canastrice pura), e o meu olhar é o código 3, de que ela vai tomar frente na conversa e eu vou ficar apenas com o lacônico mas infalível "pois é, hahaha. Pois é." O Sérgio é de Pernambuco; a Luanda de Alagoas. Surge o salvador tema das maiores praias do nordeste, e nisso ficamos, com paixão, por todo o almoço. Os sotaques deles são deliciosos, eu poderia ficar ouvindo aquilo de olhos fechados como o som da água, mas não iria pegar bem. Um jeito infantil, como se estivessem sendo dublados. Penso se nosso sotaque goiano, brutal, não estaria caindo mal para eles, mas aí me recordo da benção de que a gagueira me desproveu de todo timbre vocal (certa vez, em uma piscina, fui perguntado por uma moça linda se eu era irlandês, porque "você fala diferente"). Não deu outra: por mais que eu fugisse ou torcesse a cara, tornamo-nos amigos. Ao menos todas as quintas-feiras e sextas-feiras, no parque das feiras onde o filho deles e a Júlia brincam, nossos encontros são fieis. Na festa de aniversário de 5 anos de seu filho, que eu não pude ir (por razões sinceras, dessa vez), mas que a Dani, a Júlia, o Eric, minha mãe e minha irmã foram, a Luanda depois veio me dizer, com aquela malícia incorrigivelmente machista, que "tinha que mostrar algumas fotos do Gabriel (o filho deles) e a Júlia". Meu sangue ferve, a Dani sabe que eu odeio esse tipo de brincadeira e me olha apreensiva, para que eu me controle, etc, e eu não sorrio. O Sérgio percebe, eles estão em minha casa, ele deixa passar 5 minutos e inventa uma visível desculpa para irem embora. Sempre cordial, sempre com uma delicadeza de quem sofreu muito na vida e tem um conhecimento preciso sobre a perigosa natureza humana. Eu dessa vez não peço para que fiquem; nem vou até a porta para acompanhá-los. Depois que meu sangue esfria, eu pergunto à Dani se minha reação ficara tão evidente; ela diz que já tinha alertado a Luanda contra esse tipo de brincadeira. No fundo, eu me sinto um idiota, principalmente por incorrer na quebra de um de meus fundamentos básicos, o de "não levar tão a sério os livros". Eu realmente odeio qualquer tipo de sexismos, e hipocritamente, pois eu mesmo pratico vários (como ter chamado, acima, uma colega minha de gostosa), mas como me acho acima do bem e do mal e mais próximo da verdade do que os reles mortais, me encho de pretensões patriarcais (que, por si mesmo, já é uma atitude desbragadamente sexista).

Mas tudo se resolve. Saímos mais um bocado de vezes. Fizemos piqueniques. A companhia deles, suas simplicidades, suas adstringentes visões do pragmatismo da vida, suas absolutas descomplicações, me cativam. Muitas vezes me fazem sentir saudades deles. Uma vez, a Dani ficou pasma, eu telefonei para o Sérgio, e ficamos 15 minutos rindo pelo telefone. Nesta última quinta, a Dani e eu buscando a Júlia na escola, os encontramos buscando o Gabriel. Eu digo ao Sérgio: "O senhor está muito desocupado hoje; nunca te vi nessa hora na escola". Ele sorri de uma maneira diferente; meia hora depois estamos sentados no banco do parque, vendo as crianças no pula-pula, ele em um inédito silêncio. Pergunto, para quebrar o silêncio constrangedor, como vai a indústria onde trabalha. Ele começa a contar que a situação vai mal, que despediram uma pancada de funcionários. Passa um minuto e ele diz, compungido: "Inclusive me demitiram também". Eu o olho sem acreditar; deve ser brincadeira; ele é um dos escalões mais altos da empresa, gerente de almoxarifado, ninguém jamais iria prescindir dele. Mas é verdade. Chamaram-no na quinta-feira passada, ele avança pelo corredor sem nunca ter suspeitado até então da possibilidade, mas mal entra na sala já tem completa certeza. Fico tão triste e sem ter o que dizer, que apenas me entrego à sua fluida eloquência. Analiso as consequências da coisa, olho para o filho deles pulando com imolada felicidade junto à minha filha no pula-pula. Lembro do período de um ano em que estive desempregado. Sou tomado pela angústia de que ali, do meu lado, o meu inesperado amigo, peça suprema do molde da gentileza e do cavalheirismo espiritual, sofre a pior violência que um ser-humano pode sofrer. Falo algumas abobrinhas aborrecidas, consolo que só deve piorar as coisas, que me deixa irritado comigo mesmo por não poder ajudá-lo. Há meses os salários estavam atrasados, pagaram apenas metade de seu decimo terceiro. Ainda acho aquilo inconcebível: um pai de família; chegaram há um ano e meio na cidade. Sua vida é de uma perene peregrinação: o nordeste, São Paulo, Minas Gerais. A indecência desse país e dessa merda de povo que não se deixa em paz. Cada dois anos em um emprego e em uma peleja diferente. Ele me diz que tem uma chance de permanecer na cidade, pois há uma loja de construção, uma das maiores do vale, que lhe concedeu uma entrevista e para a qual entregou seu rico currículo, e que precisam de um gerente de almoxarifado para o depósito que estão construindo.

Por um fortuito acaso, depois de nossa conversa, ao lado do escorregador inflável em forma de onda com golfinhos em que a Júlia e o Gabriel brincam, o encarregado de contratações da loja de materiais de construção com o qual o Sérgio se entrevistou surge com sua esposa. Eles conversam a certa distância, fico olhando com apreensão. O Sérgio retorna com seus minúsculos olhos um tanto mais esperançosos, sua cara de criança na devida medida possibilitada por seu conhecimento da natureza da existência irradiada com uma luz quase indelével. Ele me diz que a conversa o deixou um tanto aliviado, pois o encarregado falou com o patrão e o indicativo é forte para que o contratem. Sem que ambos percebêssemos, nos demos um abraço. A coisa á tão natural e tão o que sobrava verdadeiramente para ser feito naquela hora, que não houve a minimo desvio de percepção sobre a efetividade daquela chave final da conversa. Eu olho para o escorregador e vejo a Júlia, para quem nada escapa, para a lucidez da qual tudo é repassado diligentemente pelo seu filtro apreensor, me olhando. Uma das vezes em que o Gabriel foi até em casa, ela o abraçava constantemente, assim como costuma abraçar suas amiguinhas, assim como nós, a família, vivemos direto um nos braços do outro, e eu a chamei num canto e expliquei que meninos e meninas não se abraçam. Ela me sorriu lá de cima do brinquedo e disse, olha só papai, e pulou deslizando, feliz da vida, até embaixo.

10 comentários:

  1. Gostei muito Charlles.
    Dessa comicidade própria com que trata da sua personalidade e da comovente abordagem sobre a construção da relação com o casal e o drama de Sérgio. Muito bom. Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. É,Charlles,às vezes a passagem de uma centena de dias se resume num simples abraço tal qual aquele que você viveu com seu amigo...

    De acordo com Rilke,quando tais coisas acontecem, seria porque a vida está a demonstrar que nāo nos esqueceu.

    ResponderExcluir
  3. Ssó passei pra dizer isso (voz de Stevie Wonder)
    Raios, como sou infantil.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Já não tenho mais peso de consciência quanto à infantilidade; como você disse sobre confissão, isso também faz parte da literatura.

      (Respondi mais em seu e-mail.)

      Excluir
  4. "Uma vez, de novo confesso (com um pouco de vergonha), me escondi no quarto e pedi que a Dani avisasse ao casal à porta que eu não estava."

    Já me escondi debaixo de um cobertor fingindo dormir por cerca de duas horas num recinto pequeno apenas para não falar com as pessoas que surgiram sem ser convidadas. Ganhei de ti, mas claramente perdi na vida. (Sempre recordo desse momento com uma mistura de vergonha total e gargalhadas).

    "Penso se nosso sotaque goiano, brutal, não estaria caindo mal para eles, mas aí me recordo da benção de que a gagueira me desproveu de todo timbre vocal (certa vez, em uma piscina, fui perguntado por uma moça linda se eu era irlandês, porque "você fala diferente")."

    Caralho. Isso acontece com todos nós, então? Quantos ex-colegas de faculdade me perguntavam de onde eu era; na primeira aula que dei os alunos fizeram a mesma pergunta; o mais louco, porém, é que todos nao-gaúchos identificam-me NA HORA, e o meu sotaque portoalegres-gaúcho-serrano é uma das coisas que minha esposa mais aprecia em mim.


    Meses atrás fiquei pela primeira vez desempregado e com medo do amanha, de pagar as contas, de nao conseguir resolver os problemas que inevitavelmente surgem. Arranjei trabalhos diferentes, nada fixo, os quais nunca tinha feito antes. As coisas estão melhores hoje, mais estáveis. Mas como reconfortava e dava forcas o abraço dela todas as noites.


    Só não entendi a parada da foto da Júlia e do amiguinho. Perdao a burrice. Li algumas vezes, mas não entendi, acho, o machismo, o sexismo ali. E por que nao pode abraca-lo? Desculpa, nao estou te criticando em nada, só nao entendi.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Com você também! hahaha

      É machismo, só se explica assim. E um grande ciúmes de pai. Não adianta teorizar se você não vive a mesma situação. Se tiveres uma filha, pode ser que entenda.

      O Sérgio e família acabaram de sair aqui de casa agora. Ficaram umas três horas. Esta semana sai sobre o emprego. A Júlia e o Gabriel brincaram, entraram na piscina de bolinhas, correram pela casa, se esfalfaram. Mas a Júlia não o abraçou_ deram as mãos, deitaram-se lado a lado, escorregaram juntos. Eu poderia dizer que o minha prevenção seja contra o machismo que existe na cabeça dos outros, mas talvez não seja tão simples. "Guardar uma certa reserva", era um dos lemas de uma das mulheres mais lindas que conheço: Wislawa Szyborska.

      Reafirmo: o desemprego é a pior violência conta uma pessoa. Nada é mais vil e voraz do que isso, nada é mais terrível e demolidor. Todos os tratados sobre as condições humanas deveriam ter isso em mente. E desarma qualquer um: quando o Sérgio me disse que estava desempregado, a Júlia poderia numa boa dar um grande abraço no Gabriel que eu nem ligaria.

      Dessas coisas.

      Excluir
    2. Ah, também diria (direi) ao Eric a mesma coisa que disse à Júlia.

      Excluir