quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Conexão Bellarosa, de Saul Bellow



Uma das várias facetas que demonstram a originalidade e independência da obra de Saul Bellow é esta que indica que também em sua produção tardia ele virou as costas para as tradições e os costumes da classe literária. Enquanto a norma involuntária dos romancistas_ em maior grau os consagrados_ dita a tendência de se tornarem mais sérios na velhice, escrevendo de forma hermética e rebuscada (vide Faulkner em Uma fábula, e Henry James em As asas da pomba), Bellow traçou o caminho contrário, areando seu estilo ao máximo, limitando-se ainda mais às frases curtas, abraçando um coloquialismo que faz pensar que é um despojamento inusitado para quem escreveu 4 dos maiores romances do século passado, recebeu todos os prêmios e encabeça a lista do cânone da literatura norte-americana. As 4 novelas publicadas pela Companhia das letras esse ano, sob o título de uma delas, A Conexão Bellarosa, é um bom exemplo da extrema fluidez da escrita tardia de Bellow. As 4 novelas começam como se Bellow estivesse na verdade escrevendo despretensiosas crônicas para revistas de celebridades; há o tom cínico disfarçado de trivialidade glamorosa que se vê principalmente em discursos políticos, e que de certa forma desconcerta ao enganar o leitor com uma falsa voz panorâmica como se, em vez de se inciar uma narrativa, vai se embrenhar em um texto de jornalismo literário. Tais inícios mostram que Bellow queria testar em seu últimos textos uma abordagem mais fiel à sua declaração de que a primeira regra da escrita era que a coisa surgisse com facilidade. Nada mais fácil e leve que esses começos, como o de Um furto:

"Clara Velde, para começar pelo que nela chamava mais atenção, tinha cabelos louros curtos, com um corte elegante, que cresciam numa cabeça incomumente grande."

Ou o despretensioso começo de Ravelstein, que revela todo o astucioso brilho da voz de Bellow:

"É estranho que os benfeitores da humanidade devam ser pessoas divertidas. Pelo menos nos Estados Unidos isso frequentemente é assim. Quem quer que deseje governar o país precisa entretê-lo."

E as narrativas seguem da mesma maneira prenunciada pelas primeiras frases, com agilidade, pulos e regressos no tempo, anedotas sobre a inefável tendência dos personagens bellowianos a tangenciarem um extraordinário cotidiano, uma elétrica falta de tempo em ater-se a um só detalhe, substituindo a observação minimalista por um rateio aéreo onde se apreende com deleite os pontos altos e baixos do extenso relevo das vidas pessoais de seus heróis e heroínas. Adorno escreveu que nos ínfimos da beleza da paisagem norte-americana se revela toda a imensidão do país, vastidão que Bellow explorou talvez como nenhum outro romancista em seus grandes painéis da América. Em livros como Augie March e Humboldt, a efusiva vida americana pulsa com esplêndida exuberância, com inextinguível paixão vital, muitas vezes invocada pela pena esotérica de Bellow no entremeio das frases, local mágico onde, como reconheceu Philip Roth em suas releituras dessas obras, acontece uma infinidade de coisas. E por isso, em suas últimas obras, vemos a compensação de Bellow por dar mais vazão à outra face da dicotomia de autor americano e médio-oriental que ele tinha, abandonando o centro de visão do individualismo das grandes entidades que eram seus personagens principais, e abordando agora a multitude de vozes que ficou como réstias não trabalhadas de seus livros maiores. O Bellow tardio é um escritor judeu cuja necessidade de extravasar sua voz negligenciada da aldeia oriental transforma a grande cidade e os homens e mulheres cosmopolitas em uma repaginação urbana dos loucos, infiéis e comerciantes usuários dos contos em iídiche de Isaac Bashevis Singer. Seus livros já não mais se detêm em intrincadas almas argumentativas e afundadas em lutas contra a Providência ou a América financeira, nem comporta mais dissidentes estoicos dos selvagens eventos do século XX. O que vemos nessas novelas são representantes divertidos das ideias ainda não testadas do autor: o magnata que quer resgatar o amor da juventude; a mulher emancipada que se confronta com dilemas morais imprevisíveis ainda que sempre intuídos; o intelectual sentenciado pela medicina que participa ativamente dos embates contemporâneos através das técnicas de comunicação avançadas que o ligam de sua cama com o mundo. É recomendável que se leia esse livro após a leitura de pelo menos um dos grandes livros de Bellow, para usufruí-los com plenitude, pois aqui se tem a prosa fulgurante, a inteligência viva, a brincadeira feliz da escrita de um dos maiores escritores de todos os tempos. São como consolações a seus admiradores por ter-se que se atender às limitações biológicas da partida; mas a última frase desse volume condiz com a saudade cogitativa que é deixado no leitor assim que fechado o livro:

"Você não entrega facilmente para a morte uma criatura como Ravelstein."

4 comentários:

  1. Já comprei o meu e quero ler até novembro. Será que Him with his foot in his mouth (acho que Trocando os pés pelas mãos, aqui) não caberia no volume? Essa novelinha é fantástica!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. As duas primeiras novelas de Trocando os pés pelas mãos (como publicado aqui pela Rocco) estão entre o que Bellow fez de melhor. Sublimes! Mas presumo que não caiba nesse volume da Cia, cuja intenção é a publicação das últimas obras do autor.

      Excluir
  2. de Bellow só li Herzog e não gostei muito do estilo de ironia amarga destilado na obra e por isso não mais voltei a este escritor meu conterrâneo de nascimento, talvez esta ideia de o mesmo ser mais divertido neste livro seja um isco para voltar a lhe dar uma segunda oportunidade

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Conheço algumas pessoas que não gostaram da primeira vez que leu Herzog_ eu incluso. É desses livros que uma revisitação a ele transforma.

      Excluir