segunda-feira, 13 de abril de 2015

Günter Grass (1927-2015)



Há muitos anos fiquei convalescente em uma cama por dois meses, e o livro que me fez companhia foi Anos de cão, de Günter Grass. Eu estava com o rosto costurado e a perna engessada com um pino no tornozelo, consequência de um motorista imprudente que avançou a caminhonete pela perpendicular de um cruzamento sem ver meu carro na preferencial da estrada. Pedi à minha irmã para comprar o livro em um sebo, um livro que eu namorava já fazia vários meses. Eu lia por oito a dez horas seguidas, entre os despencares no sono que me provocavam os sedativos que eu tinha que tomar para não sentir com tanta intensidade o ferro que fora fundido em meu osso, e que rescendia feito ouro em meus receptores neuronais. A última vez que me lembrava de ter passado pelo deleite da total fragilidade vigiada na companhia de livros foi quando quebrara a clavícula na infância, e pude ler uma série de gibis do Super-homem e mais os livros do Xisto pela coleção Vagalume. Eu sempre fui uma criança e um pré-adolescente infernal, possuído por uma inesgotável energia demoníaca. Grande parte do bullying que eu sofri foi mais que merecido, pois nenhum guri agia tanto com a finalidade de levar uma sova do que eu. Quebrei duas vezes o braço esquerdo (que, na segunda vez, quando o médico abriu o gesso e viu que haviam feito o procedimento errado, ele tornou a quebrar meu braço com um gesto preciso das mãos, enquanto me distraía equivocadamente me perguntando sobre meu time de futebol), uma vez o direito, a clavícula e o tornozelo. Não me estranha que os adultos que conviviam comigo naquela época hoje me veem com um notável repulsa, disfarçada pela humor nervoso de falarem à minha esposa de como eu era impossível. Por isso, talvez, tenha me identificado tanto com esse romance de Günter Grass. Um dos personagens é um gigante mutilado, com o rosto coberto de cicatrizes, amigo fiel desde a infância de um homem minúsculo e frágil que ganha notoriedade fazendo bonecos autômatos que parecem reais, e que os dois são separados pelo nazismo_ um indo para as fileiras, o segundo para as altas patentes do partido. Foi um livro no qual eu me emergi e fiquei dentro dele por dois meses, e não recuso o fato de que a percepção modificada pelos remédios e a sensação de que chegava a um limite do primeiro ciclo da vida tenha acentuado sobremaneira minha forma de entendê-lo. Havia a impressão não confessada de que o acidente fora uma forma inconsciente de catarse pela minha recente separação e pelo aborto carregado de culpa que adveio disso. Tudo no livro é de um abandono e de uma ruína e de uma cinza emanação da morte que adorna a assinatura comunal de Grass. Tudo no livro é acolhedor em decorrência disso, e eu não estaria em melhor condição para lê-lo do que na minha ruína pessoal. Outra coisa é a extrema devoção à literatura que esse romance revela, na forma como Grass escreve avesso a toda moda e manual de etiqueta literária. A segunda parte do livro tem algumas das páginas mais humanas e belas que eu já li, nas cartas do front do soldado para sua prima: todos ceifados pela indiferença suprema dos processos da história. Günter Grass escreveu em um estilo único, independente, altivo, concentrado, pleno de amor. De certa forma eu sempre o vi como um Joyce do pós-guerra, que assim como o irlandês, trata com sua elevada erudição sobre seres combalidos da mais baixa classe popular, seres distorcidos e deformados pela vida subjugada pelas grandes estruturas de poder, seres repulsivos e sentenciados, pelos quais sua arte mostra que temos o estômago muito menos frágil que supúnhamos por amá-los. Li depois quase tudo de Grass lançado em português, inclusive aquele arrebatador romance pelo qual ganhou a glória definitiva, e aquela sinfonia de lucidez e rara poesia escatológica que é o A ratazana. Mas nenhum livro sob sua pena me parece melhor e mais íntimo que o Anos de cão, para quem foi consolado pela figura do grandalhão que vinha proteger o amigo frágil lançando seus inimigos do colégio de cara contra o muro, numa época da minha vida em que, mais uma vez, a literatura veio generosamente me salvar. Um dia triste hoje. Vai com Deus, Günter Grass, e meus inesgotáveis agradecimentos pelo enorme trabalho que fez pelo bem nessa terra.

10 comentários:

  1. Morreu também o Eduardo Galeano. Lembrou-me aquele dia, anos atrás, em que morreram, separados por algumas horas apenas, Antonioni e Bergman.

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    1. Realmente, um dia com duas grandes perdas. Dois escritores muito amados e únicos.

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  2. http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/40120/uruguai+chora+a+morte+do+escritor+eduardo+galeano.shtml

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  3. O mundo do twitter é quase um manifesto surrealista. A escritora argentina Samantha Schweblin segue a Ellen DeGeneres.

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    1. É como se eu ouvisse minha vizinha dizendo: "misericórdia!"

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  4. E o The Economist acaba de transformar Galeano num esquerdoso arrependido. Um Vargas Llosa Redivivus.
    Quanta cara de pau.
    http://www.economist.com/news/americas/21604164-writers-recantation-highlights-intellectual-failures-latin-american-left-gods?fsrc=scn/tw/te/pe/ed/Bello

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    1. https://www.facebook.com/mulleriuri/posts/10203963602279531

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    2. Essa bizarrice do The Economist aparentemente foi distorcida de um texto da Cynara Menezes Trata-se me parece de uma preguiçosa referência a uma entrevista que o Galeano deu a Bienal do livro em Brasília.

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