domingo, 23 de novembro de 2014

Dias de chuva



A chuva é maravilhosa. Chove ininterruptamente aqui há 4 dias. Uma atmosfera que combina com a soturnidade confortável da casa e o prazer da leitura. Passei estes dias envolvido intimamente com Robert Musil; o vício era tanto que cheguei a cogitar em uma lista alternativa dos meus melhores livros e colocá-lo lá entre os cinco primeiros. 

Entremeando esta leitura, li alguns contos desse volume magnífico da Antologia da literatura fantástica editado pela Cosac Naify, cujas assinaturas de Borges e Bioy Casares o torna menos imprescindível que mítico e cultuado. Esse livro tem uma inteligência fina por detrás, que o situa além da quase previsibilidade de seus títulos. Tem o Pata de macaco, um conto que eu amo durante muito tempo e que ainda não o tinha na minha biblioteca, e que me pareceu ainda mais desamparado agora do que quando o li na juventude_ mas com um toque vulgar que não tinha reparado antes, uma certa insuficiência que, em contrapartida, tornam ainda mais humanos esses leitores inveterados que foram Borges e Casares. Há uma gema preciosa de autoria de Casares, A lula opta por sua tinta, que é pura inteligência e humor finíssimo. Há um conto de Maupassant que não figura entre seus melhores, e nem talvez entre os segundos melhores, mas que corrobora com o intuito de que essa antologia se presta à correspondência idiossincrática da personalidade de seus organizadores, o que o torna mais genuíno do que se em seu lugar houvesse um Maupassant mais puro. Há uma série de excertos curtos, de três linhas, que são absolutamente deliciosos. E há, o que confirmei com renovado espanto há poucas horas, essa diatribe inclassificável que se adéqua a todas as expectativas da sublimidade literária, intitulada Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Esse é o conto mais extraordinário, genialmente bem escrito e maravilhoso que já li. Chega a ser algo próximo à loucura, literalmente. Li esse conto várias e várias vezes, desde que ele provocou aquele assombro majestoso e profundo de quando o li pela primeira vez lá pelos meus 15 anos. A sua primeira página é de uma leveza e ardilosidade que só pode ser definida pelo adjetivo multi-simbólico de borgeano. Borges o escreveu, com absoluta certeza, em um estágio de alteridade de consciência que me faz correlacionar com uma definição de felicidade de Nietzsche: um conto escrito com a leveza de uma borboleta ou de bolhas de sabão. Vou transcrever agora o início da parte 2 desse breve conto, uma das páginas mais engraçadas e arrebatadoras da literatura; notem a traquinagem de como foi escrito, a sua alegria satânica e sua laconicidade paradoxal de onde partem infinitas insinuações deduções multifocais (Martin Amis foi de uma obviedade correta ao confessar seu deslumbramento pelos contos de Borges, nos quais cada página equivalia a romances inteiros). Lá vai:

Alguma lembrança limitada e minguante de Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do Sul, persiste no hotel Adrogué, entre as efusivas madressilvas e no fundo ilusório dos espelhos. Em vida sofreu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e apático e sua cansada barba retangular já fora ruiva. Acho que era viúvo, sem filhos. De tempos em tempos ia para a Inglaterra: visitar (presumo, por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. Meu pai tinha estreitado com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidência e que bem depressa omitem o diálogo. Costumavam fazer um intercâmbio de livros e revistas; costumavam bater-se no xadrez, taciturnamente... Lembro-o no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, olhando vez por outra as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde, conversamos sobre o sistema duodecimal de numeração (no qual doze se escreve dez). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecíamos e ele nunca mencionara sua estada nessa região... Falamos de vida pastoril,  de capangas, da etimologia brasileira da palavra gaucho (que alguns velhos uruguaios ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse_ Deus me perdoe_ sobre funções duodecimais. Em setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel) Herbert Ashe faleceu devido ao rompimento de um aneurisma. Dias antes, ele recebera do Brasil um pacote selado e registrado. Era um livro in-oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde_ meses depois_ eu o encontrei. Comecei a folheá-lo e senti uma vertigem assombrada e ligeira que não vou descrever, porque esta não é a história de minhas emoções e sim a de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islã chamada a Noite das Noites, abrem-se de par em par as secretas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que senti nessa tarde.

Eu quase chorei de rir ao reler e reler essa página hoje. Parece Monty Python. Que piedosa orfandade tinha esse sujeito Herbert Ashe, que criança solitária crescida era ele. Visitava um relógio de sol e uns carvalhos na Inglaterra. O pai de Borges estreitava um amizade com ele, verbo para a qual era excessivo. É delicioso isso. Isso é raro, não se vê muito nem entre a mais alta literatura. Uma dessas amizades inglesas que começam por excluir a confidência e que bem depressa omitem o diálogo_ que anedota sofisticada, e como Borges faz com que nos fiquemos completamente à vontade com sua genialidade, uma vez que reconhecemos a sutileza de seu amplo universo; e o reconhecemos com a morte da sisudez através do riso desbragado. Não me surpreende Vargas Llosa dizendo que um dos piores sofrimentos dos escritores latino-americanos era suplantar a vontade imperiosa de escrever como Borges. E nisso voltamos ao conto de Maupassant escolhido para a coletânea: lá pela página 291 encontramos as seguintes frases "o deserto cujo ar transparente e leve ignora, dia e noite, as obsessões", e "ao descer por uma rua inverossímil". A coletânea orgânica revela que sua consumação segue o roteiro pessoal de mostrar as influências que foram construindo os escritores Casares e, principalmente, Borges, pois essas frases maupassanteanas, repetindo o ensaio Kafka e seus precursores, são frases automaticamente assumidas como borgeanas. Talvez venha da impressão que teve Borges com esse conto parte do seu manejo artesão de adjetivos inusitados e inesperados, cujo inverossímil é bastante recorrente, e cuja quebra do período com seus usos muito particulares de apostos e vocativos é algo bem evidente para seus leitores.

Essa antologia, pois, é uma maravilha. Um belíssimo livro, que dificilmente algumas de suas outras edições pelo mundo superam essa edição primorosa da Cosac. O carinho da edição é tão atenta que, ao pegar meu volume das obras completas de Borges, editado pela Globo, para confirmar coisas sobre esse conto de Borges, minhas vistas doeram instantaneamente com a crueza da página branca da Globo. A impressão suave e a folha que absorve o excesso de luz ambiente da Cosac é só mais um mérito desse livro que parece que foi feito sob medida para mim_ o que cada leitor pensará o correspondente para si mesmo.

14 comentários:

  1. fui ao conto inteiro e digo q foi maravilhoso lê-lo e conhecer Tlön logo depois de ver Interestelar no cinema. Ah, a literatura...

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  2. Hum... encaraste aquela parte como e com um humor montipythiano, e deve ser por isso que não vi graça alguma. Talvez a graça esteja somente nos olhos de quem lê. Num outro mundo talvez risse.
    Quando li esse conto pela primeira vez, há alguns anos, fiquei um tanto atordoado. 'O-que-a-ca-bei-de-ler'?. Em Borges, como em Faulkner, encontro sempre um mistério superior, que obriga-me a reler páginas recém passadas na inútil tentativa de desvendá-lo precocemente, ganhando contornos e formas um pouquinho nítidas algum tempo depois.

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    Aqui está para baixar e ler 'Faulkner e a Técnica Do Romance', de Assis Brasil.

    Assis Brasil trabalhou quatro anos na elaboração de Faulkner e a Técnica Do Romance, um verdadeiro roteiro para a leitura de todos os romances do escritor norte-americano. Ao lado da exegese em profundidade, o ensaísta brasileiro aborda os mais variados ângulos da obra faulkeriana, proporcionando, pela primeira vez em nosso país, um contato objetivo e inteligente com aquele que é considerado o maior fincionista do século XX. Alguns temas situados por Assis Brasil são da maior importância, tais como Faulkner e o Negro, O Homem e a Máquina, A Inversão Moral como Tema, A Bíblia como Inspiração, e inúmeros outros.

    https://pt.scribd.com/doc/247205632/Faulkner-e-a-Tecnica-Do-Romance-Assis-Brasil

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    1. É muitíssimo engraçado. E o fato de você não achar graça no Python torna a coisa ainda mais muitíssimo engraçada.

      Tenho um tanto de medo de ler essas análises especialistas de meus livros favoritos, assim como conservo um enjoo correspondente em ver filmes adaptados desses livros_ ou histórias em quadrinhos; já músicas, como as tantas que aquela banda adolescente chamada Engenheiros do Hawai fez para livros, até que me deixa comovido.

      Pra falar a verdade, não suporto essas análises, ainda mais vindo de um acadêmico nacional. Já de cara se arma em mim o fiel e não admoestável preconceito de que o cara que escreve é um intransigente sacerdote de um autor inacessível ao outros meros mortais. Conheci tipos demais assim na universidade para manter por eles uma absoluta indiferença.

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    2. Acredito que 90% do trabalho deles é sem graça. Poxa, até durante as exibições dos sketches o pessoal não ria ao fundo. Meta-humor = não-humor. E dos filmes, 2 são bons - mas nunca recordo os nomes. Niii. Not the Nine O'Clock News > MP. Rowan Atkinson na Conservative Conference me mata de rir semestralmente. BASTARDS.

      O véio nem é do mal, vai. Não está sentado no alto da montanha, mas em seu escritório, em Copacabana..

      Vem outro filme ruim adaptado de Faulkner por James Falco. Filho da puta. E vem aí adaptação de The Humbling do Roth com Pacino no papel principal. E ainda o do Pynchon...

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    3. Esses véios são os mais deprimentes. Se não fosse tão frase com intuitos bombásticos, eu diria que prefiro os críticos literários sentados em sua montanha, como é o caso do George Sterne e Walter Benjamin.

      Eu tenho alguns conceitos absolutos em minha vida: Miles Davis, Faulkner, Led Zeppelin, Charlize Theron. E entre esses parcos, Monty Python. Tirando essas coisas, posso emular o finado Marcos Nunes e dizer que nada é sagrado.

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    4. Posso brincar também? Hendrix, Python, certas árvores; de resto, nada mais é.

      Monty Python: estão acima de tudo que existe ou existiu nem que seja só pela cena do Michael Palin como o César que não consegue falar o "r" no "A Vida de Brian"! (-- So, your father was a "woman"?)

      Peguei uma compilação de contos do Borges que tenho aqui em casa, para ver se tem nele esse conto citado pelo Charlles, e antes de ir ao índice verificar, abri-o aleatoriamente no meio. Não só cai numa das páginas desse conto: cai na página exata que tem esse trecho!

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    5. Situação borgeana, Fabricio.

      Uma página que eu considero irmã desse trecho é a primeira página de O leilão do lote 49. É cheia desse humor carregado de intuições e leveza.

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  3. Esse trecho é muito engraçado. Dia desses estava relendo. O final me lembra muito do Peter Kien de Canetti e daquele capítulo do Bibliômano, em Brás Cubas, que também é hilária:

    "Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.

    É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume, por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar único... Único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a mania deles, vós sabeis muito bem o valor desta palavra, e adivinhais, portanto, as delícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas Memórias; faria a mesma coisa com o Almanaque de Laemmert, uma vez que fosse único.

    O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único! Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar único!"

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    1. Borges e Machado de Assis, que belo humor.
      Aquele "Deus me perdoe", do trecho q o Charlles apontou, é demais.

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  4. Como não poderia deixar de, respeito tua decisão (como se me coubesse algo do tipo), Charlles. Agora, adoraria te ver ensaiando por lá, é o q fazes de melhor por aqui. Ensaio, vê a palavra, não pode haver melhor tarefa para aquela maior q te propões.
    De brinde, novos leitores, que estes aqui, se não percebeste, são todos vozes da tua cabeça (?).

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  5. "Costumavam bater-se no xadrez, taciturnamente".

    Acho que nada é mais taciturno que xadrez. Eu detesto xadrez. Sou péssimo jogador, daí a possível razão para não gostar nem de ver aquele tabuleiro. É curioso como a graça, vez ou outra, está nos olhos de quem vê. Porque eu experimento esse enfrentamento taciturno com alguma regularidade. E é quase trágico. Talvez eu possa rir disso daqui por diante.

    Tenho um primo que é um bipolar diagnosticado muito tardiamente. Todo mundo sempre o achou, er, diferente, mas era difícil acusar qual era o seu problema. Aliás, nem os médicos o fizeram. Ele desenvolve alguns raciocínios complexos, é muito engraçado, mas amalucado. Às vezes, é muito difícil e desafiador o convívio com ele. Sua família mezzo disfuncional (mas cuidadora) não contribui muito.

    Na infância e adolescência, ele fez inúmeros eletrencefalogramas, que nunca acusaram nenhuma onda fora da curva. "Mas esse menino tem alguma coisa na cabeça, não é possível", queixava-se o pai, para quem o fracasso escolar do filho era sinal de baixa inteligência. E ele foi a incontáveis psiquiatras e psicólogos, que disseram que não tinha nenhum retardo, tampouco era doido.

    Sua doença só foi diagnosticada quando ele tinha 35 anos; longe, portanto, de uma boa perspectiva de tratamento. Porque ele é viciado em seus pensamentos delirantes e em sua mente poderosa (que, supostamente, comanda dados para que caiam sempre virados no número 6). Inventou que o Bradesco desviou um dinheiro de sua conta. Quem não o conhece, vezes tantas, acredita em toda sua luta pelo estorno que não havido. O interlocutor desavisado cai das nuvens quando ouve ele falar de uma conta-corrente no Banco Central. Ou no BNDES. Tudo dele é grandioso. Isso é engraçado-trágico.

    Ele bate-se contra o tratamento medicamentoso. Parece ficar triste. Um médico que conheço explicou-me que seus delírios ficam muito podados pelas drogas prescritas. Mas ele tem prazer em seus delírios e recusa o diagnóstico. E tudo, obviamente, fica muito pior quando ele mistura suas prescrições com as drogas ilícitas. Ou quando arruma uma namorada tresloucada - tem doido pra tudo nesse mundo - que rouba brincos e anel de formatura da sogra.

    Meu primo é um maníaco com a profundidade do pré-sal.

    Quando éramos crianças, ele, que é um pouco mais velho, ensinou-me a jogar xadrez. Inventou, em sua mania de ver o inexistente, que eu gosto de enfrentá-lo no xadrez. Ele joga bem. Eu jogo mal. Talvez seu prazer seja me ver perdendo uma partida atrás da outra, risos. Eu o encontro uma vez por ano - ou menos. Mas não deixo de visitá-lo, porque ele gosta de mim (e eu dele). E sou um dos poucos primos que dá a ele alguma atenção, além de lhe ceder incontáveis cigarros sem reclamar.

    É uma novela conhecida as minhas visitas: ele me espera com o tabuleiro montado, como se estivesse me proporcionando um café com broa. Eu fico lá, taciturno, enfrentando aquilo. Ele idem, porque a hora do jogo é séria e ele detesta distrações que lhe tirem o foco. Mente poderosa, né? Se eu não bater pé, ele não me deixa nem tomar café e comer a broa deliciosa da minha tia. Tem que jogar xadrez.

    Acho que preciso contar para ele que eu não gosto de xadrez com a mesma franqueza que lhe disse sobre a realidade de seus poderes mentais sobre dados. Ele ainda acredita que sua mente controla dados. E que sou eu, com meu ceticismo, ou energia ruim, sei lá, que atrapalho o movimento correto do cubo.

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