quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Emaconhado


Há uns três meses recebemos aqui em casa um casal de amigos que não víamos há muito tempo. Pelo telefone já havíamos, eu e e meu amigo, arrumado a celebração do reencontro com o compromisso de que cada um de nós dois levaria uma garrafa de vinho do Porto, nossa bebida de compadres preferida. Assim foi. Sentamos os quatro_ a esposa dele e a minha juntas_, num barzinho aprazível ao qual sempre íamos quando ele morava nessa cidade, um pub que já desmente o conceito por ser a céu aberto e tomar o espaço de uma magnífica praça de frente em que colocamos a mesa e ficamos ouvindo as copas das palmeiras antigas sendo assoladas pelo vento. Dali víamos o boteco que tem na outra esquina, e que tem um valor emocional fundamental pois seria ali que abriríamos um bar temático de boa música que se chamaria Dig A Pony, se esse meu amigo não tivesse se mudado para a capital. Abrimos os vinhos e fizemos os pedidos ao garçom. Das minhas bebedeiras, nunca perco o controle sobre mim mesmo e nunca tenho o desmemoriamento sobre minhas ações que é costume entre outros bêbados, mas o que seguiu nessa noite não me recordo em nada. Isso porque, após os cálices de educação que cada um dos quatro bebeu, apenas eu fui sorvendo o vinho enquanto conversava. O resultado é que deixaram, inconscientemente, que eu tomasse praticamente sozinho as duas garrafas dos Porto.

Apesar de eu ter provado maconha em duas ocasiões, e ela não ter feito nenhum efeito sobre mim que não uma diarreia nababesca, sempre assimilei o grau de beatitude que o Porto me causa como um psicotropismo canabiliano. Eu fui um inveterado tomador de vinhos do Porto antes de me casar, o que resultou em rituais que me levavam próximo a uma percepção xamânica. Com duas garrafas na cabeça, feito que nunca havia testado antes, esses meus amigos e minha esposa disseram que eu fiz discurso, contei piadas além da conta, olhei com atenção despropositada às mínimas observações sociais feitas pelos integrantes da mesa, como se eles estivessem dizendo uma verdade sobre a existência. E, o pior dos piores, os três que estavam ali deixaram que eu entrasse no carro e dirigisse de volta à casa, tendo antes feito um tour pela cidade. Eu escutei todas essas coisas com um espanto estático, tentando perceber logo o momento que eles revelariam que tudo era uma brincadeira da parte deles, mas me dei conta do diagnóstico assustador de que era uma mera reportagem de eventos fieis à realidade, pois eu não me lembrava em definitivo da noite anterior. Mas eles me acalmaram, quando viram a gravidade da minha amnésia, ao dizerem que eu fiquei extrovertido além da conta, mas não fiz nenhuma besteira. A esposa do meu amigo, uma mulher que dos três havia maior anterioridade de conhecimento comigo, e por isso é a amiga por direito que pode falar tudo sem direito a melindres e ofensas, titubeou um instante antes de abalizar tal sentença, como se, afinal, eu tivesse subido na mesa ou mijado em uma das palmeiras na frente de todos, cantando We´re not gonna take it. Mas não; ela disse: é, você estava um tanto intenso em  excesso, o tipo de coisa que só vemos ser anormal em retrospecto

Pois o vinho do Porto me causa um grau que me lembra uma serotonina demasiadamente açucarada sendo liberada na região de trás da minha cabeça, anestesiando a minha nuca. Eu fico emaconhado. Coisa parecida, entre todos os discos de jazz que mais amo, acontece só quando ouço Go, do Dexter Gordon. DG apita de um jeito por aquele saxofone que tem sobre mim o mesmo efeito bestializante de um antigo desenho da Disney, que não me recordo senão do enorme urso que se docilizava quando ouvia uma determinada sinfonia. Assim quando escuto a primeira frase de sax despreocupado de Cheese Cake, e seguindo adiante até a bateria de mesa de botequim de Love for Sale. Cioran escreveu, em um de seus aforismas: "para que reler Platão quando um saxofone pode nos fazer entrever igualmente outro mundo?". Ontem estava ouvindo, à noite, Go, mas tomando um cabernet e não um Porto. Nessas extremas alegrias que a leveza da existência, a falta de conhecimento mínimo sobre qualquer mistério, provoca nessas horas, fez com que eu seguisse o conselho que um dia vi num adesivo colado acima do lugar aonde fica o motorista do coletivo, com o aviso: SÓ FALE AO MOTORISTA O ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO; ao que um chargista fez um passageiro se virar para o motorista e dizer eu te amo. Mandei um e-mail para um amigo virtual com a pergunta acreditas em Deus?. Tal amigo havia me enviado um e-mail clamando do tédio que é a neve e a bonomia eterna de um país tão diferente do nosso. Dessas coisas que a falta de um companheiro de bebedeira causa mesmo nas incruentas noites de sexta-feira.

19 comentários:

  1. Recomendo que bebas ao menos uma vez um Porto Tawny Graham 10 anos (se puder o de 20 é ainda meçlhor). O efeito não é o emaconhamento, mas uma beatitute epifânica: se algum deus existe, deve ser como um gênio que mpora exclusivamente naquela garrafa; quando a bebemos, podemos dançar como Shiva.

    "Das minhas bebedeiras, nunca perco o controle sobre mim mesmo e nunca tenho o desmemoriamento sobre minhas ações que é costume entre outros bêbados"? Ah, é claro! Eu também sou assim. Aliás uns amigos meus também. E todos os demais bêbados que encontramos nos bares de todas as esquinas do mundo...

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    1. Esse ainda não tomei. Não transcendo os Porto de mais que 85 mirréis, e prefiro os que estão na casa do 60. Especulação com canais de esoterismo não é comigo_ atrapalha a beleza da viagem.

      O caráter afrodisíaco do Porto é um fato incontestável aqui em casa.

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    2. É, o Porto é estimiulante, mas não só sexual, embora esse efeito esteja no topo da lista.

      O vinho recomendado custa R$ 35,00. Não a garrafa: a dose. Recomendo experimentar ao menos uma vez. É simplesmente outra coisa. O 20 anos custa R$ 50,00 a dose, em média. Mas são 50 pratas para abrir as portas da percepção.

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    3. vcs vão me INICIAR no vinho do porto, hj vou comprar um.
      onde se encontra esse teu, nunes?
      (certamente hj comprarei o mais barato, deve sr o quê: 60-80 reais? nunca me permiti esse preço, ainda...)

      aqui a gente tá acostumado com chilenos e argentinos. gaúchos, nunca os compramos tintos; são os brancos, os MOSCATÉIS, bons e baratos.

      até uns 4 meses atrás nunca tinha experimentado maconha. mas é como se ainda não tivesse experimentado, teve efeito nenhum (como, aliás, o lança-perfume, numa única vez tbm, num carnaval distante). acho q sou meio drogado IN NATURA.

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    4. Hahaha. Também tenho uma genética natural tendente ao lisérgico, arbo.

      Mas... sendo bastante pedante, mas me vejo na disposição inevitável de dizer isso: nada de maconha, cara. Fuja dessas coisas que isso é uma verdadeira bosta. (Desculpe o lado paternal, mas falo com absoluta sinceridade.)

      Dos Porto que eu tomo, gosto muito do Dom José. Aqui custa 75 reais, mas pela net (claro que vc não vai pedi-lo pela net, mas deve ser um referencial de preço para metrópolis igual a Porto Alegre), custa 45 reais.

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    5. obrigado pelo conselho amigo. particularmente DESTE não estou precisando. é uma daquelas coisas de q tu não te aproxima por ver de antemão (os indícios são muitos) q não serve pra nada, como a SEQUÊNCIA de um besteirol americano.
      sempre passei, mas desta vez estava bem localizado entre amigos e experimentei pra ver "qualé q era". em mim, nada. mas mesmo q tivesse dado algum barato, nessas coisas sei me conter... e suponho q seja a mas fraca dessas merdas. as outras tb nunca toquei e nem pretendo.

      Dom José, vou ver.

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    6. Arbo,

      Dos portos para começar em nível de excelência eu recomendo:

      Graham's 10 years Old Tawny - 200 ml: R$ 67,06
      Graham's 10 years old tawny - 750 ml: R$ 148,25

      É caro, mas vale a pena. Deixa de comprar 3 garras de moscatel que dá para comprar uma de 750 ml. A diferença é tão brutal que você pensará que se trata de outra bebida. Bem, o de 20 anos é melhor ainda: é perfeito. Nem imagine o custo disso.

      Ambos estão acima com os preços da Mistral. Dá para comprar na Internet.

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    7. marcos, acho q esse graham vai ser daqui a dez anos ahuahuah

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  2. Mas, Charlles, vinho do Porto não se toma como um apetitivo? Não é muito doce?

    Quando quero encontrar-me com Dioniso, ataco logo algum tinto incorpado italiano, português ou francês... Há uns 15 anos, descobri um tinto da região do rio São Francico que não devia nada aos europeus. Infelizmente, não me lembro do nome, mas o bichinho era muito bom... À época, era muito superior a qualquer gaúcho.

    Lembro-me de uma vez que estava`à noite com dois amigos em Paúba, praia do litoral norte paulista. Pois bem, misturamos algumas garrafas de um tinto italiano com com fumo... O resultado: eu e um dos borrachos começamos a ver um disco voador na praia... Tal fenômeno ufológico durou uns 10 minutos, até que o mais lúcido disse:

    - Pô, vocês dois estão malucos... A luz vem dos faróis... (intermitantemente, carros passavam na ruazinha de terra adjacente à praia).

    Nós, íntimos das Bacantes, ficamos com uma baita vontade de dar um pau no dito cujo, mais lúcido...

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    1. A graça do Porto é transgredir seu uso e bebê-lo de uma vez da garrafa. Eu o bebia antes de um suntuoso jantar, para rebater a doce.

      Sempre suspeitei de que você é um ótimo companheiro de bebedeira.

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    2. Essa pergunta me diz respeito.

      Não, o Porto que recomendo não é doce: é uma fusão de fragrâncias e sabores sem comparação. E pode ser bebido simplesmente como algo para se ter prazer em qualquer momento, antes ou depois das refeições, mas também sem qualquer relação com almoço e jantares. Só bebê-lo, assim, a qualquer hora do dia.

      Quanto aos vinhos do Nordeste, eles estão melhorando. Mas há um problema: os vinhos de Santa Catarina também. Recomendo os Villa Francioni. Mas existe um do Paraná excelente, tão bom que bebi tanto que terminei por esquecer de seu nome... Os gaúchos, na verdade, não são muito bons. Os brancos são melhores, e os tintos, a maioria é nota 5, 6, à parte os nota 0, que tem às pencas. Os melhores tintos da região devem ser bebidos lá, mesmo porque alguns não se encontram em lugar nenhum fora das fronteiras do RS.

      E é isso: bebamos e comamos. Com palavras no meio.

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    3. Bem, Marcos,então não conheço o tal vinho...Aprendi a beber o do Porto com meu pai já falecido (nativo da Ilha da Madeira, mais precisamente de uma aldeia de nome extremamente poético: Madalena do Mar...

      DIONÍSICA
      by Ramiro Conceição


      Oh Madeira que amei
      no olhar de meu pai.
      Oh Funchal do mar... de Madalena
      Oh Madalena... do Mar!

      Canto este fado em sangue universal
      para além do cabo das tormentas,
      além do bojo deste barco,
      além do atlântico destino.

      Com os pés fazer o vinho
      e bebê-lo com alma de cristal.

      Evoé meu Pai!



      PS. Charlles e Marcos, fiz o poema supra poucos dias
      antes de meu pai morrer... No primeiro post desse blog relato, num comentário, o acontecido...

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    4. Ramiro,

      Se você gosta de fado, vá no endereço abaixo, ouça e veja:

      http://www.youtube.com/watch?v=475HFh5Razw

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    5. “Porém eis aqui gozo e alegria, matam-se bois e degolam-se ovelhas, come-se carne, e bebe-se vinho, e diz-se: Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (Is. 22.13)

      Acho que a sabedoria hebraíca nunca foi tão dionisíaca como nessa máxima.
      Tomei uns tintos do Villa Francioni é achei-os bem bons. Um amigo que trabalha com vinhos me disse que o papa (Wojtyła, acho, não o sisudo emérito que só deve tomar weissbier) depois de uma de suas visitas ao Brasil passou a encomendar os Villa Francioni para o Vaticano.

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    6. Esse trecho do Isaías tá reaproveitado numa canção antiga. Veja em:

      http://rachelsnunes.blogspot.com.br/2012/07/sem-destoar-hoy-comamos-y-bevamos.html

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  3. Por uma dessas coincidências literárias, eis que me deparo com teu blogue e de repente pensei: uau! ele pensa exatamente como eu e tenho lido teus comentários, cronicas e conselhos numa descoberta do quanto ainda preciso ler...rs...e tem sido uma experiência deliciosa e é aí que entra meu comentário, uma vez que acabei de vir parar justamente no país produtor do teu apreciado Porto. Meu modesto conhecimento aconselha a tomar esse vinho antes ou depois de uma refeição, aperitivo que ele é...digo mais, acompanhado de um figo e nozes, entende-se por que é a bebida dos deuses.Isso posto, acredito te salvar de novas aventuras de "psicotropismo canabiliano"...rs...um abraço lusitano, Eliene Salgado

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    1. Obrigado, Eliene. Muitas pessoas já me disseram que o Porto se toma em doses pequenas e acompanhado de doces, determinadas frutas e nozes. Eu já o acho doce demais para fazer isso. E a graça é transgredir as regras. :-))

      Aproveite as maravilhas de Portugal, e fique à vontade aqui no blogue. Abraços.

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