quarta-feira, 11 de abril de 2012

Lendo Singer



Há alguns anos que não procurava mais achar nos sebos esse que é um dos meus fetiches de leitor, o romance Sombras sobre o Rio Hudson, de Isaac Bashevis Singer. Digitei o título na Estante Virtual, por  acaso, e eis que encontro não um exemplar desse livro já fora de catálogo, mas um dezena, e a maioria a preços módicos. Comprei-o por 20 reais, o que é um espanto para quem sabe da qualidade e da raridade da obra, mas não tão surpreendente para quem já conhece as incríveis facilitações da EV. Como não estava nos meus projetos ler Singer por agora, assim que o volume chegou, guardei-o num lugar da estante que prefigura um esquecimento em alerta de pelo menos um ano. Por esta semana chega Contra o Dia, de modo que estou reservando as energias todas para as suas 1.088 páginas, e a imersão total no universo pynchoniano. Mas eis que folheio o Singer e, como é de se esperar, já estou na página 148 de suas 562.

De Singer li dois de seus grandes romances e uma quantidade de seus contos formidáveis. Não há contista superior a Singer no século XX. Mesmo Borges, Carver, Cortázar, por mais que sejam excelentes, não despertam em mim a confortável sensação advinda de um conto de Singer de que se usufruirá de uma alegria completa, que abarca a estética e o prazer de um narrativa pura. Não se vê nos contos de Singer as armadilhas do intelecto que nos contos de Borges aparecem como exagerada estrutura básica. O leitor lê a um conto de Singer sem a mínima necessidade de estar em guarda e armado contra suas vaidades eruditas. Penso que Singer conseguiu essa voz única, esse tom intimista que remete às fábulas e às milenares narrativas orais de aldeia, por sempre ter escrito em iídiche, o que lhe dava a certeza de que seu leitor seria alguém de sua família, de sua restrita casta espiritual. Nunca se sentiu despertado pela fama de que seu leitor pudesse estar em um centro urbano, lendo suas palavras em um metrô enquanto vai para o escritório. Singer sempre escreveu para o garoto da aldeia judaica confinada numa geografia e tempo estacionários, e por isso seus contos são tão atmosféricos e alienígenas. E por isso é tão gratificante ler Singer. Ele traz a impressão de que existe um significado subjacente pairando sobre o caos da modernidade, e que o segredo é tão simples quanto é abrangentemente complexo.

Contudo, Sombras sobre o Rio Hudson traz um Singer diferente. A começar pelo cenário: uma Nova York dos anos 1950. Talvez esse seja o único detalhe destoante, mas isso já configura uma série de elementos novos na narrativa singeriana. Não mais a aldeia polonesa, mas a grande capital dos negócios. Não mais o judeu feudal e prestes a se desenraizar, mas o capitalista sobrevivente do massacre que se imerge cada vez mais nos pecados do Império. E Singer, um escritor a que se possa sem nenhum remorso dar o atributo de genial, é inteligente demais para não fazer as pontes sutis e dolorosas que se insinuam neste tema perigoso. Os personagens desse livro são judeus ricos que tiveram seus filhos, esposas e maridos mortos nos campos de concentração alemães. Numa emulação ao existencialismo hedonista francês, essa consciência de que a ideia de deus não se coaduna à brutal experiência histórica leva alguns dos personagens à busca da felicidade imediata, surgida no adultério, na traição dos preceitos familiares, na refutação da fidelidade a um deus inexistente. O livro mostra as qualidades das circunstâncias que o gerou, tendo ele sido escrito em capítulos para jornais judaicos americanos: a prosa é fluida, rápida, intercalada com movimentos feitos para apreender sempre a atenção do leitor. O que vem de imediato na cabeça é a energia de um folhetim de Nelson Rodrigues. Singer sempre teve essa dinâmica de exímio contador de história que não entulha a narrativa com pesos desnecessários, e é justo nesse romance que se pode perceber o quanto ele tem a ensinar sobre todas as miudezas da arte do romance. Aqui ele é o mestre supremo; é difícil largar o livro; quer-se lê-lo na velocidade proposta pela escrita, mas as descrições de Nova York são soberbas demais e requer releituras encantatórias, os conflitos filosóficos dos personagens são profundos o bastante para torná-los íntimos do leitor. E, outro aspecto das situações históricas da produção da obra se faz visível: foi escrita em 1957-58. Por isso, a crítica da superfluidade dos judeus no mega-capitalismo cuja construção foi massivamente auxiliada por eles nos EUA se faz presente em todo o romance. Singer é tão ácido aqui quanto Roth na visão do judeu que se estereotipa na caricatura do deformado portador da usura e da lascívia. Talvez por essa negrura inevitável, Singer tenha se negado a publicar o romance em livro, e ele tenha saído apenas após a sua morte_ para o espanto geral da crítica que viu nele talvez a sua melhor obra (concordo).

Volto na visão que Singer tem de Nova York. Penso que uma das grandezas desse romance esteja aqui. A cidade é mostrada sempre coberta de neve, o que denota a nostalgia das aldeias nativas da Polônia nos personagens. Mesmo seu caráter opressivo é suavizado pelo filtro do olhar dos personagens, que veem os trabalhadores imigrantes, as luzes de neon, a superpopulação dos metrôs, as lanchonetes sujas sob a luz do amanhecer, os faróis dos carros de madrugada, de um distanciamento que muito tem do deportado espiritual de Kafka e da criança eterna de Bruno Schulz. Nova York de Singer é convertida em uma aldeia judaica ludibriada pelas emanações da ilusão estruturada do poder e do dinheiro, suas luzes nunca iluminam, mas ajudam a espalhar as sombras, seus céus são descritos como quem vê faixas de nuvens de gelo acima das altíssimas coberturas dos prédios, numa surda independência aos sons das máquinas e das angústias humanas. Sob um céu desses é que se torna possível que o marido traído, Stanislaw Luria, que perdeu a única mulher que amara nas câmaras de gás nazistas, se apresente ao professor Shrage, um símile intelectual estoico do sr. Sammler de Bellow, e lhe proponha uma comprovação ou refutação definitiva da imortalidade da alma: com seu suicídio, sua hipotética permanência fará todo o esforço para se comunicar com o professor, retornando da improvável dimensão dos mortos. A grandeza de Singer nos certifica que isso pode ser perfeitamente possível.

5 comentários:

  1. Já estava babando de vontade de ler o livro, aí lembrei que você descreve as coisas de um jeito que até Ulisses fica parecendo bom. Assim não vale!

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    1. Hahahaha.

      Deixe de ser má intencionada. Dos livros que te indiquei, você gostou de praticamente todos. Ulisses realmente é um caso a parte.

      Deve ter na biblioteca daí_ essa maravilhosa biblioteca pública onde se encontra de tudo_ um volume de contos do Singer. Leia uns dois. Se não gostar, desista do autor.

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  2. Charlles, você me deu motivos exagerados para comprar esse livro de Singer - que a minha esposa não saiba. Esta semana eu já comprei dois livros na EV ("A neve", de Pamuk e "Grande e estranho é o mundo", do escritor peruano Ciro Alegria). Seu belo texto também alimentou em mim um certo fetiche. Coloquei a obra comentada na minha lista de prioridades.

    Abraços, Charlles!

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    1. Não vai se arrepender, Carlinus. O livro, que muitas pessoas pedem à Companhia das Letras uma nova edição, valeria uns 75 reais. Tem até por incríveis dez reais, o que não recomendo, vai que a conservação esteja ruim. E a leitura é uma alegria.

      Abraço.

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  3. Nossa! Se eu não estivesse economizando para esperar a chegada do Kindle em setembro (rumores!), compraria esse livro! É um belo texto, desses que despertam a curiosidade.

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