domingo, 18 de dezembro de 2011

Quatro Fiéis Boêmios Paranóicos


Eles me acompanham pela vida, esses quatro fiéis boêmios paranóicos que se infiltram em altas horas da noite pelo meu sono. Venho adquirindo-os ao longo dos anos, e cada um, pois, tem sua idade e sua sistematização freudiana própria. São os meus quatro pesadelos clássicos. O mais antigo deles é o de ver-me andando naturalmente pela cidade, numa prosaica segunda-feira à tarde, cumprimentando as outras pessoas que passam por mim, Oi ao sr.Giovanni da padaria, como vai ao Moacir cabeleireiro, bom dia à dona Efigênia que vive sentada à porta de sua casa, e nisso vai, até que eu volto os olhos para mim mesmo e percebo subtamente que EU ESTOU ABSOLUTAMENTE NU DA CABEÇA AOS PÉS. Sou tomado por um pânico inigualável (no universo dos sonhos é impossível a pessoa se adaptar às circunstâncias, por mais que passam continuamente pela mesma situação), e por uma vergonha sem igual, mas: espanto! Ao tornar os olhos para todo mundo, percebo que ninguém nota que eu saí de casa sem ter me inteirado da norma elementar do vestuário básico. As pessoas simplesmente ingoram esse meu deslize imperdoável: minha nudez é invisível. Depois li em algum texto psicanalítico que a questão traumática que afeta o sonhador não é a vergonha social da nudez pública, mas o fato de as pessoas serem incapazes de verem essa nudez.

O segundo amigo fiél é bem mais cheio de excentricidade. É um pesadelo que, de certa forma, não oferece o mesmo terror que seus companheiros; é bem mais ameno e simpático (se posso afirmar tal coisa). Sua razão de ser, penso (pois nunca vi uma explicação bibliográfica para ele), é o da deslocabilidade espacial, da incompatibilidade atmosférica. É o pesadelo dos banheiros: vejo-me preso a um mundo labiríntico composto por uma infinita profusão de banheiros por todos os lados. Uma arquitetura descuidada mas solidamente vinculada a seus detalhes técnicos arquiteturais próprios. Cabines de banheiro cinzentas formando andares em prédios altos; horizontes de cabines de banheiro. O que não é de todo desagradável nesse pesadelo é a fotografia que mistura M. C. Escher com Chirico, e tem uma soturnidade calma de Kafka e Rembrandt. Não há ninguém nesse universo a não ser eu. Alimento a crença que o cerne dos pesadelos está nas lembranças mal processadas da infância, e esse parece formar um contraponto ao primeiro pesadelo: de alguma forma que não sei explicar, prescinde da vaidade em ver-me visto em meus pecados e se instaura em uma autosuficiência das cavernas infantis. Só não entendo o por que dos banheiros!

O terceiro companheiro é o mais sacana de todos. É aquele amigo entre áspas que quer valer-se de alguma teoria deslocada de que a amizade tem de ser um espinho de arrependimentos enfiado na carne. É o sonho com a garota por qual fui apaixonado no período da universidade. Foi um de meus amores platônicos, mas, acredito que, pelo período de dúvidas sobre minha futura independência financeira, é esse que se revestiu do casaco molhado de mar das entidades do sonho. Muitas vezes acordo com uma infinita angústia, sem me lembrar do pesadelo, mas sei que ela estava lá. Esse pesadelo já não vem com frequência depois de meu casamento, mas algumas vezes me pega com a vontade de ir procurar o exorcismo num determinado apartamento de Brasília onde a musa se refestela na obesidade gratificante de duas cesarianas.

O quarto pesadelo, o maldito, essa noite mesmo me pegou em cheio enquanto toda a cidade se esmorecia de lassidão em mais uma das infinitas chuvas do mês. Trata-se do aviso oracular de que eu não obtive meu diploma de médico veterinário _ que justifica minha independência financeira_, pois depois de tantos anos descobriram afinal que eu havia faltado uma prova de Estatística no primeiro ano e que, por isso, meu diploma seria cassado. Deus do céu! Acordo suado olhando em volta e com o coração disparado. E esse amigo fiél é o que, contudo, mais deriva de uma situação real, é o menos lisérgico deles. Eu odeio Estatística! Sempre odiei. E, para piorar as coisas, sou um cara a quem muitas vezes vejo associado o termo de ter uma personalidade fortíssima. Não fui o melhor da classe de veterinária, mas sempre era um estudante competente com direito a méritos isolados (fui o melhor aluno de Reprodução Animal, e Patologia). Mas, por ter uma rejeição tão acentuada, eu realmente faltei todo um semestre de Estatística, não fazendo nenhuma das avaliações da matéria.

Hoje não consigo compreender como fiz isso, mas na época não tive o mínimo de atividade crítica das consequências do ato. Era um professor francês que ministrava a matéria, que consistia em seis meses de Estatística, e seis meses de Genética. Um sujeito cordial, ruivo, média estatura, de óculos e barba, católico convicto e tido como alguém que não deveria, sob nenhuma circunstância, ser provocado. Quando vi que, no meio de ano, já constava que eu estava reprovado por ter extrapolado o limite de faltas, a ficha caiu. O que eu havia feito? Por um desses impulsos que me movia ao mais inadivinhável improviso, fui procurar esse professor em seu escritório. Vi-me contando-lhe uma tocante história de que eu perdera meu pai e por isso havia abandonado o curso, mas que, depois de passados o cerne do sofrimento, retornei afim de tentar reaver as faltas e as provas cabuladas. Afinal, salientei, sempre fora desejo do meu falecido pai que eu me formasse em medicina veterinária. Descrevi a ele a cena trágica de uma tora de árvore caindo em cima de meu pai, e, enquanto ele controlava visivelmente para não deixar que seus olhos morejassem de lágrimas, eu tentava desviar a lembrança original de um conto cômico de Graham Greene em que o pai do herói da narrativa fôra morto vítima de um porco que despencou da sacada de um prédio, afastando qualquer riso involuntário de minha face. O professor disse que poderia dar um jeito nas faltas, que ainda não haviam sido mandadas para o núcleo acadêmico, mas, infelizmente, as provas não poderiam ser dadas novamente. Minha única opção era a do prodígio de tirar 9,5 e 10,0 nas provas de Genética, para ir para a quinta prova precisando alcançar um mesmo patamar de excelência. Aceitei e me matei de estudar, e tirei os 9,5 na primeira prova. Nisso, como era esperado, o gentil professor deve ter cruzado informações e visto que o sofrimento pela morte de meu pai havi-me feito faltar apenas a sua matéria, o que o levou a comentar com uma namorada que eu tinha na época que "o Charlles tinha uma lábia que dobrava até o demônio". Alguns amortizantes aconteceram impedindo que ele me massacrasse, como as vezes em que essa namorada me levara à missa em que tive a sorte de ver o francesinho despatriado bem junto ao púlpito, e, a sorte maior, ele também ter me visto. E de que, afinal, eu conseguira me adequar às exigências, mostrando um esforço que poderia ser o indício da recuperação da minha marginalidade.

Mas o preço que tenho que pagar por isso é a recorrência desse pesadelo que esporadicamente me domina e me deixa bem próximo da sensibilidade esbugalhada de um garotinho prestes a responder diante o pai.

5 comentários:

  1. Será que todas as pessoas têm esse mesmo pesadelo com relação à roupas? O meu é diferente - geralmente eu saí, estou à caminho da faculdade, e no ônibus percebo que estou sem sapatos. Aí eu começo a querer voltar, fico com vergonha. No meu sonho, depois que eu noto as pessoas notam também.

    O sonho que me atormenta todos os meses, que quase bate ponto durante as semanas, é de que vou escolher roupas. O cenário muda: às vezes estou numa loja popular, às vezes estou numa loja rica, loja em promoção, às vezes estou vendo sacolas de roupas herdadas das minhas primas (o que me acontecia com frequencia), às vezes estou sozinha, às vezes estou com a minha mãe, às vezes com desconhecidos. A constante do sonho é: não consigo encontrar algo que me agrade. Experimento tudo e nada é pra mim, algumas coisas são muito peruas, ou adolescentes, ou simplesmente não me agradam. Vejo um monte de roupas e nunca adquiro alguma. E eu preciso comprar alguma.

    A metáfora é de uma obviedade que nem precisa que eu fale mais nada.

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  2. Eu tenho um mesmo pesadelo desde criança. Ele tem se repetido com menos frequência, coisa que não me faz reclamar de jeito nenhum. É horrível. Aliás, vou maldizer este blog se, ao repousar o esqueleto neste domingo, este pesadelo ressurgir do fundo do meu inconsciente. Faz tempo que ele não me visita...

    Sonho que estou caindo. Queda livre. E eu caio. Caio. Caio. Nada me segura. O filme da minha vida passa na minha cabeça, peço perdão por todos os meus pecados, aquilo que eu detestaria lembrar está ali de novo. E eu caindo. A sensação de frio na barriga, os suores, a taquicardia, a boca seca está tudo ali. É um horror.

    A pior parte é o final. É quando eu chego ao solo, pesado como um piano de cauda, e me esborracho. Quando bato no chão, dou um salto da cama - normalmente, um duplo twist carpado - e acordo. E aí eu penso seriamente numa neurocirurgia, porque só um tumor cerebral é capaz de criar um pesadelo tão real e tão medonho.

    P.S.: Uma vez, eu me levantei atrasado, depois daqueles cinco minutos que viraram vinte, coloquei a camisa do colégio correndo, os tênis, escovei os dentes, penteei o cabelo (mentira, meu cabelo não cede um milímetro sem água) e saí de casa. Ao chamar o elevador, eu me dei conta de que estava de cueca. Eu estava acordado.

    Fábio Carvalho

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  3. Eu nunca matei ninguém para justificar falta. Acho que o professor iria gargalhar se me ouvisse contando a cena trágica da árvore. Um amigo dizia ter a desculpa perfeita. "Sabe o que é, professor, eu estou com uns problemas pessoais...".

    Daí eu quis saber sobre a hipótese do professor perguntar o que estava acontecendo. "Ninguém nunca perguntou, professor entende. Mas eu já pensei nisso, caso um deles seja indiscreto e pergunte. Respondo, caprichando no carão, que 'é pessoal, professor!'".

    Sou a única pessoa que conheço que teve oito reprovações e se formou no tempo normal. Explico. Até o 4º semestre, fiz tudo direitinho. No 5º, chutei o pau da barraca. Três reprovações. Daí, no semestre seguinte, eu me matriculava em 800 disciplinas que o horário permitia, mas é claro que não conseguia cumprir todas. Conseguia diminuir a quantidade de créditos que faltavam, mas o número de reprovações aumentava.

    A melhor de todas as minhas histórias foi a cadeira de "Direito Usual". Péssima. Chatíssima. Os professores da faculdade de Direito não criavam vínculo com a minha faculdade (Comunicação). Cada semestre, um professor, às vezes dois. E as aulas eram, invariavelmente, na sexta-feira às 7h30. Três aulas germinadas. Isto é, uma ausência = três faltas. Eu me matriculei umas três ou quatro vezes nessa cadeira. Daí, chegou o semestre que eu TINHA que fazer a porra do Direito Usual.

    Primeira semana de aula. Eu fui. Não tinha professor. Segunda semana de aula. Eu fui. Não tinha professor. Terceira semana. Eu fui. Uma fulana do Departamento de Direito avisou que o professor que iria lecionar havia sofrido um acidente etc e tal. Não teve aula. Na quarta semana? EU NÃO FUI.

    É claro que o professor foi. E marcou um monte de aulas extras, que eu nem sabia que rolariam (e ninguém me avisou, pois eu não era "daquela" turma). Quinta semana. Eu não fui. O professor foi. Sexta semana. Eu cheguei um pouco atrasado, mas fui.

    Enquanto caminhava pelo corredor em direção à sala de aula, vi os alunos olhando para suas respectivas carteiras. Todos concentrados. Parei. "Que merda é essa?". Uma das alunas olhou para o corredor e viu minha cara de pânico. "É prova?", perguntei, movendo apenas os lábios. Ela voltou os olhos para a prova e balançou a cabeça positivamente.

    Eu fiquei desesperado. Eu não poderia fazer uma prova sem ter assistido a nenhuma aula. Nenhuma. E eu não iria me formar no tempo regular. Nisso, sai uma aluna da sala, phodona e cdf. Ela me explicou que a prova era de consulta e estava super fácil. Pegou o xerox, marcado nas respostas da prova e me mostrou. "Esta aqui é a questão 1, esta a 2 e esta a 3". Arranquei o xerox da mão dela, passei óleo de peroba na cara e entrei.

    - Professor, tive um problema pessoal na manhã de hoje e não consegui chegar no horário. Sei que a fulana já saiu da prova, acabei de cruzar com ela no corredor, mas eu gostaria de fazer a prova, se o senhor deixar.

    Ele deixou. Eu tirei 10. (F.C.)

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  4. hahahahahahhaha.

    Fábio, tuas histórias são ótimas. Fez-me lembrar que às vezes eu e uma turma de amigos não tinhamos tempo de estudar para uma prova (nossos compromissos extra classe eram muitos e inadiáveis), de forma que matávamos a prova e requisitávamos a segunda chamada da prova. Um de nós escrevia, no espaço do formulário para justificativa, que o carro furara o pneu quando estava indo para a faculdade, e o restante de nós apenas escrevia em cada qual: "estávamos no carro do José, vide formulário dele".

    As provas me deixavam tão traumatizado que duas vezes eu acordava, tomava banho, me aprontava para ir à faculdade, e assim que descia para a portaria do prédio lá de casa percebia que ainda eram 2 da manhã. Faltavam 4 horas ainda para acordar.

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  5. Caminhante, essa versão feminina do pesadelo da nudez eu não conhecia. Interessante! Por isso dizem que a mulher tem menos traumas associados à auto-afirmação e segurança: daí a raridade de gagueira feminina.

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