sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Os Invisíveis

Leio sobre a "mãe dos trabalhadores americanos", Mother Jones, num caderno especial da Le Monde Diplomatique. Mother Jones está, para todos os efeitos da posteridade, praticamente esquecida. Sua história é um desses milagres que revelam que a obviedade do animal pensante que somos ficou perdida em algum lugar entre o saceio do estômago e a flacidez dos glúteos, e comportamos hoje A exceção da grande maioria dos que apenas passam pela vida. Sua biografia mostra que ela foi uma das raras pessoas a que se pode veicular o conceito de humano, no que teve de engajamento por uma vida melhor dos trabalhadores massacrados dos EUA do início do século XX, missão que levou a sério e aos extremos da abnegação pessoal pelos 93 anos que teve em sua longa vida. Desde muito jovem ela já se indignava com o sofrimento dos servos modernos assalariados da indústria americana, suas parcas condições de moradia, alimentação, a ausência total de profilaxias e tratamentos de saúde, a baixa estimativa de vida, a redução brutal da existência apenas e tão somente para ser um instrumento para a riqueza exorbitante de uma minoria de industriais. Mas foi depois que perdeu os quatro filhos e o marido numa epidemia de febre amarela, causa que atribuiu às condições de miséria do povo, que largou definitivamente o lar e qualquer posse material para viajar pelo país, promovendo greves, protestos, agitações populares, através de sua poderosa capacidade discursiva e sua prontidão em se fazer de escudo, que a fazia identificada automaticamente pelos trabalhadores. Durante 25 anos, essa senhora não teve residência fixa; uma vez, diante do Congresso, explicou: “Da mesma forma que meus sapatos, meu endereço me segue por onde eu for”, diz o ensaio da Le Monde.

Mas o que mais me chamou a atenção nesse texto foi o espanto do autor ao narrar as agrúrias da rotina de trabalho dos funcionários de indústria dos Estados Unidos da época. Trabalhavam 12 horas por dia, seis dias por semana. Mas é o quanto ainda trabalha a maior parte dos servos modernos assalariados do Brasil atual.  Uma grande parte dos 5.565 municípios do país possui um quadro de exploração patronal mortificante, anacrônico, brutal, que se disfarça sob uma série de subterfúgios amenizantes como a da "saudável" maleabilidade das leis trabalhistas que tornam o mercado de trabalho mais dinâmico e produtivo, que faz crescer a economia do Brasil para continuar mantêndo-nos como a nona economia do mundo. Hoje em dia, uma brasilcolonização retrógrada e acabrestante submete os trabalhadores braçais sem especialização a uma diária de serviço aviltante, desumana, desmoralizante sobre todos os aspectos, mas isso jamais é falado na imprensa, jamais é mencionado nas conversas sofisticadas das elites culturais que se vangloriam de serem de esquerda, jamais passa pela cabeça do consumidor padrão que vai ao supermercado todas as semanas que ele mesmo interaje com esses neo-escravos constantemente. Esses trabalhadores são os legítimos invisíveis da sociedade.

Há um episódio da antiga série Além da Imaginação em que os criminosos de uma sociedade futura são sentenciados a viverem pela cidade vestidos com um uniforme que os distinguem como aqueles com os quais ninguém pode conversar, cumprimentar, ou sequer demonstrar que os vêem. Eles sofrem de uma imolação extrema que os levam à loucura, pois a completa indiferença programada dos outros cidadãos lhes dão a certeza de que, enfim, eles foram executados, eles não mais existem, deles nada mais pode partir de danoso ou benigno. Esses neoescravos são exatamente assim, no que tange ao contexto comunitário de não serem vistos em sua natureza humana, senão apenas notados em sua funcionalidade prática instantânea. Tirando os trabalhadores das grandes cidades, que são acobertados pelos direitos trabalhistas através de uma suficiente prontidão dos ministérios público e do trabalho em fazê-los atendidos, afirmo sem medo de ser leviano que, nas demais cidades com média de 20.000 habitantes, esses trabalhadores ainda se encontram no obscurantismo jurídico do Brasil Colônia: são escravos que cumprem a obrigação patronal de serem meros instrumentos de arrecadar dinheiro para os donos absolutos de suas forças de trabalho. Aqui na cidade onde moro vejo isso constantemente e em todos os lugares, e a cidade onde moro é uma representante fidedigna do microcosmos econômico, político e social dos milhares de municípios interioranos brasileiros.

Fico muito constrangido de ir fazer compras no supermercado. Sei por ter amigos que trabalham nesses estabelecimentos que todos ali purgam uma carga de serviço de 12 horas por dia, 6 dias por semana. A mesma labuta violenta contra a qual se indignou o autor do artigo acima mencionado sobre Mother Jones. E a maioria ganha um salário mínimo, sem adicionais de hora extra ou qualquer outro. Um moça do caixa chegou a me confessar que odiava o horário de verão porque tinham que, literalmente, trabalhar uma hora a mais, pois a vontade do patrão os levava a fechar as portas quando não houvesse mais luz do dia. Não por acaso as caras que vemos nesses mercados mudam de três em três meses, pois ninguém suporta muito tempo uma escala de opressão tão gritante. Um amigo de serviço me disse que, antes de ser técnico de abate, havia participado de uma entrevista de emprego com um dono de supermercado: este lhe colocara a panos limpos que ele, para trabalhar ali, não poderia estudar à noite, não poderia chegar atrasado um minuto sequer, e, todo trabalho faltado seria descontado do já por si minguado salário. E o mais grotesco é que em todos os supermercados vejo frases bíblicas pintadas pelas paredes, se Deus é por mim, quem será contra mim; mil de teus inimigos tombarão à esquerda, e mais mil à direita, mas contigo, nada acontecerá. Não à toa o neo pentecostalismo mantêm um grau de submissão retroalimentar nas várias igrejas que se tem por aqui, onde os pastores fazem subir ao púlpito os empresários colaboradores das cestinhas de final de mês, e num nível abaixo ficam prostrados em condicionada admiração os milhares de pobres coitados dos fiéis a quem nunca chegarão o direito da educação esclarecedora e do tempo livre para festejarem com a família. Nesse natal, quando eu for comprar um panetone ou um litro de leite, eles estarão lá, os invisíveis, cumprindo à risca a tarefa de serem braços para carregar, olhos para procurar pelas prateleiras, pernas para irem aos depósitos, mãos para digitarem valores. E só! Não me admira que suas caras sejam o matiz entre a estupidez de não estarem ali em espírito, ou um ódio muito bem disfarçado. E sobre eles, a doutrina rígida de escravos imposta pelo cristianismo prostituído da perene humildade, pregada pelos pastores que estacionam suas Hilux nas garagens dos grandes templos. E sobre eles a estatística milagrosa e cafajestemente falsa de sermos a nona economia do mundo; sobre suas costas, o fardo de carregarem números impossíveis, que servem para apimentar os investimentos, enriquecer as indústrias, expandir as empresas, crescer as boas novas de felicidade radiante dos templos, e, assim, manter em contínua produção a realidade imaculada de continuarem a serem invisíveis e com a importância básica irrestrita da enxada. E isso, enquanto cito apenas os supermercados. As lojas daqui mantêm vendedores no mesmo ritmo de servidão, e lhes pagam, apenas e tão somente, 3% de comissão em cima do valor dos produtos por eles vendidos.

E onde estão os sindicatos?, os fiscais das leis trabalhistas?, a motivação de um desses escravos em processarem seus patrões? Respostas: os sindicatos não existem, ou estão comprados já há décadas pelo Conselho Dirigente de Lojistas, o que os fazem inutilizações que apenas comemoram o feriado do Dia do Trabalho com sorteio de uma moto (ironia não falta a esse pessoal!). Já houve casos de processos por parte de funcionários, mas estes tiveram que se mudarem de cidade, pois a lista negra na qual passaram a figurar seus nomes lhes impossibilitaram para sempre arranjarem outro serviço.

O MP é composto de funcionários públicos (juízes e promotores), que possuem a idiossincrática certeza de que não fazem parte da sociedade, estão numa bolha de proteção da qual observam não muito detidamente os demais mortais que encenam o grotesco da vida da qual prontamente se excluíram em suas fortalezas de poder e altos salários. A universidade local, que nunca passou de um colejão em que penduram-se os cabides de emprego, é cega e molejamente corrupta _ a ponto de, em um livro lançado por um dos doutores em sociologia, estar citado alguns pareceres capengas da chefe do sindicato de trabalhadores rurais como se fossem ápices da inteligência humana (uma mulher que há anos vem mantendo o cargo através de revesamento com o filho e com laranjas).

Assim... saúdo daqui desse meu canto representativo do grande Brasil, a Nona Economia do mundo (foguetes e mulheres seminuas, paisagens rascantes da magnífica agropecuária nacional, cidades turísticas com trabalhadores com lindos sorrisos marfínicos), a Mother Jones. E repito as palavras de um dos radialistas que notificou o momento de seu sepultamento:

Hoje, nas planícies de Illinois, nas colinas e vales da Pensilvânia e da Virgínia, na Califórnia, Colorado e Colúmbia Britânica, homens fortes e mulheres esgotadas pelo trabalho derramam lágrimas amargas. A razão é a mesma: Mother Jones está morta”.

15 comentários:

  1. vamos celebrar a estupidez humana...

    cara, bateu forte esse texto aqui. pq acaba acontecendo comigo de não ver. é foda. é exato. obrigado por me lembrar.

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  2. Acabo de voltar do supermercado agora, arbo. Estou sozinho em casa e fui comprar algo para comer. Na seção de açougue, haviam três jovens universitários (faziam questão de dizerem em voz alta que estudam em Goiânia) comprando carne para churrasco. Tiravam onda com os dois rapazes que o atendiam, faziam questão de demorar por terem percebido que eu estava ali à espera, e, quando finalmente o funcionário lhes entregou o pacote, foram embora sem um gesto de agradecimento. Um deles foi aluno meu há cinco anos, em um colégio particular da zelite (argh!), e notei que estava constrangido. Demorei para reconhecêr o rapaz magérrimo naquele pós adolescente que já criava a sua meia papada no pescoço. Preparando-se solenemente para ser adulto. E o pior que eram estudantes de veterinária. Senti vergonha por eles. Faziam o tipo "estamos nessa cidade de caipiras para detonar". Leia o texto do link apresentado pelo Paulo no post passado, tem tudo a ver.

    Abraço.

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  3. Charlles, já tinha ficado de coração partido com o texto, agora esse comentário...

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  4. Fernanda, não sabe o quanto fico indignado pela situação desse enorme setor de trabalhadores às margens da justiça trabalhista que temos no país. Essa a razão por eu ser absolutamente contra a dita "esquerda" e os partidarismos patriarcais que vigoram no país. Eles fazem que não percebem o czarismo patronal que é a regra geral reinante. Os abusos que se cometem contra esse pessoal são ainda mais grotescos. Graças a Deus eu não faço parte das zelites, e tenho a limpidez de dizer que percebo essa situação como uma violência contra mim mesmo.

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  5. ah, eu imprimi e li ontem no ônibus aquele texto. tudo a ver, tudo a ver com meu comment tbm. nunca fiz e nunca farei o q esses guris fizeram. eu não me referia a maltratar, ou achar-se acima de. mas, por descuido, ser indiferente. o q não chega a ser melhor.
    por isso eu disse, obrigado por me lembrar. acho q a gente tem q fazer esse exercício sempre. bom é tbm o q diz o wallace.

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  6. Charlles, em 13/11/2011, creio, postei na rede, aqui, no blog do Milton, no blog do Carpinejar e no site do DCE livre da USP, um “ desesperado poema desabafo”…

    AOS BANDOLEIROS DA USP
    by Ramiro Conceição


    Talvez fosse isso, que poderia ter sido:
    estudantes livres avaliando o ensino… não tido;
    mas não a baderna por três maconheiros detidos
    no horário de aula pago… pelo imposto do povo!
    Chega dessa farra de mimados, covardes!
    Chega dessa gentalha média, que dá nojo!
    Que vê o público qual a merda de seu bojo.
    Sem dó, sem qualquer piedade: Lei neles!

    Para a minha surpresa, o referido poema ficou no site do DCE “livre” da USP por, aproximadamente, 1h. Depois foi CENSURADO (deletado) por um e/ou por um grupo de imbecis, ditos, democratas. É bom ressaltar que tal conduta é semelhante àquela adotada, por exemplo, nos blogs dos jornalistas associados à Veja.
    Nas semanas seguintes, totalmente consternado, li, na rede, declarações de apoio de vários professores da USP ao desdobramento do movimento. Finalmente, assisti, via canal aberto de televisão, o fechamento da avenida Paulista por uma passeata de estudantes. As palavras de ordem eram, em faixas, mais ou menos assim: “libertação dos 73 presos-políticos”; “abaixo a repressão policial na USP” e coisas que tais.
    Presos políticos? Repressão? Qual é o tempo que tais indivíduos estão vivendo? O que está a ocorrer na USP é uma guerra efetiva contra o tráfico! Ou as “beldades uspianas” estão isoladas da sociedade brasileira (fora dos portões da USP é uma lei e dentro dos mesmos vale outra: tal qual a vergonha social que está a ocorrer na Unicamp, isto é, após a 17:00, os “aviões” têm livre acesso à universidade)?
    Que caralho é isso?!!! Quem consolará as mulheres estupradas?!!! Quem consolará as famílias de estudantes assassinados?!!! Quem devolverá a saúde metal às vítimas de seqüestros relâmpagos?!!! Quem?!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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  7. Estou a aguardar, ansiosamente, a passeata dos estudantes da USP que fechará a Avenida Paulista, entre o natal e o ano novo…

    (Ops, e as férias?!...).

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  8. Três coisas:

    Por estas e outras que sinto um colossal opróbrio de ser HUMANO...

    Belo texto o do David Foster Wallace (obrigado pelo link)

    Alguém sabe onde posso comprar Os Buddenbrooks do Thomas Mann? (Editora Nova Fronteira) Não encontro de jeito maneira

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  9. Completando o comentário anterior:

    Abraço,
    Rodrigo

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  10. Ramiro,

    Lamento que seu poema tenha sido censurado/deletado do site do DCE. Sou aluna da Faculdade de Direito da USP e tenho de confessar que também não acho muito democráticas várias das decisões e escolhas deles.
    Entretanto, gostaria de dizer que a "baderna" da USP vai bem além dos três maconheiros, eu diria mesmo que os três maconheiros podem ser mesmo ignorados que não fará lá grande diferença dentro do que os estudantes reclamam. Em outras palavras, não, os protestos e a ocupação - ilegítima, diga-se - não foram pela maconha nem pelo direito de fumar maconha nos campi. O buraco é bem mais embaixo.

    Abs,
    P.

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  11. Rodrigo, tem Buddenbrocks aqui por dez reais:

    http://www.estantevirtual.com.br/q/Os-Buddenbrooks

    Abraço.

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  12. Ramiro, eu já achava esses eventos da USP um nonsense total, em que os alunos estavam na saia curta de não conseguirem justificar com a mínima coerência o que REALMENTE eles estavam reivindicando. Desinteressei-me da coisa quando, já nas primeiras cenas, apareceu um aluno de dentro do ônibus onde estavam se manifestando, às portas da universidade, sendo admoestado pela mãe. Perguntado pelo repórter, respondeu: "minha mãe não me autorizou a falar nada. Daí que vou ficar calado."

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  13. P,

    eu sei que os efetivos problemas da USP não são os três maconheiros. E concordo com você: os três, ou os 73!!!, poderiam ser mesmo ignorados, pois não fazem qualquer diferença dentro do que a maioria (dos estudantes) reclama e com razão).

    Foi justamente isso a causa da minha revolta: um fato banal ser utilizado politicamente por uma burra liderança escrota (PSOL, PSTU e que tais) que, afinal, ajudou o, dito, Reitor a posar de cordeirinho diante da grande mídia; e, infelizmente, causou o afastamento da população dos efetivos problemas da universidade.

    Tal despreparo político me deixou muito puto (afinal, tudo que sou político cientificamente devo aos 25 anos que vivi dentro da USP: sou um verdadeiro dinossauro vivo, que estava na noite da assembleia que decidiu pela fundação do DCE livre da USP, na década de 70; e, portanto, tenho profundo respeito pelo movimento estudantil, mas não pela gentalha ou a canalha, porventura, ligadas a ele).

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  14. Espero não ser necessário dizer que pertenço a uma geração que, efetivamente, tragou!...; e que não tem os pés na senzala tal qual um certo príncipe oriundo da USP que, digamos assim, esqueceu os seus escritos...

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  15. Quero comentar sobre isso não. Faz hora que me esquivo de postar comentário aqui (dispenso incentivos MESMO), mas olha... é bem pior do que o post o lugar de onde eu olho a coisa.

    Fábio Carvalho

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