quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A Lucidez Excessiva

Nada me assustou mais no campo literário dos últimos anos que o suicídio de David Foster Wallace. Sobreveio-me o mix de emoções e concepções incertas que faz parte dos sentimentos despertados pelo suicídio e que são cansativos clichês: o susto, o vazio, a busca pelos sinais pregressos que justificassem o ato, e... a certeza de que se é impossível entender. Todo suicida está além das forças da eufemização. Daí que mesmo os mais torpes e infames suicídios_ e a história está cheia deles_ deixa o suicida no equilíbrio inalcançável daquele sobre o qual não se pode cair a condenação; está além do bem e do mal. Li há pouco num romance de Sebald, a história de como Assia Wevill_  a belíssima judia morena, que foi a segunda mulher de Ted Hughes_ repetiu milimétricamente os passos da morte de Silvia Plath, acendendo o gás, fechando as portas e as janelas da casa, deitando-se na cama, até que deixasse a marca severa no espírito de Hughes de que a sina de uma esposa suicida era um dos círculos que o cosmos iria repetir infinitamente para aprisioná-lo em seu inferno particular. A extrema maldade de Assia Wevill, seu toque de originalidade calculado para diferenciá-la de Silvia, foi que fez com que permanecesse junto a ela a filhinha de 4 anos que teve com o poeta. Conceber esses gestos de egolatrismo assassino é algo insuficientemente possível quando as causas pendem para a paixão extrema. Mas um caso como o de Foster Wallace oferece o paradoxo da falta de simetria entre o martírio auto-imposto e a sua profunda personalidade artística, mostrada em livros que não oferecem um indicativo de sua derradeira ação, e o de sua estampa consumível de garotão ultra-culto de cabelos compridos que era uma das promessas das letras estadunidenses.

Li apenas um volume de contos e insights humorados publicado pela Cia das Letras, de Wallace. Fiquei entusiasmado diante a visão de um filósofo com amplos domínios da escrita ficcional, sentado no centro de sua lucidez controladamente demencial, e que prometia que estava para sair da auto-indulgência para mostrar sua efetiva força criadora. Todos os prognósticos apontavam para um novo Pynchon. As lentes ultra-realistas, que beiravam o lisérgico, jamais poderiam diagnosticar uma desistência futura_ afinal, Cortázar mostrou-se assim, e mais uma cambada de outros escritores. Porém, o que mais me impressionou foi um ensaio, que me chegou às mãos após a morte de Wallace, em que ele fala de uma maneira positiva, solar, radiante mesmo, sobre as efluências da alma. Tal ensaio falava sobre a televisão, internet, a fragilidade de se observar o ser-humano em supermercados (e detectar que, por debaixo da flâmula de ódio impessoal que havia por detrás dos rostos, podia-se amá-lo). Era uma palestra para estudantes de não sei qual curso, e Wallace estava alí em toda sua portentosa juventude, exsudando carisma. Parecia Bernard Shaw falando aos segundoanistas irlandeses, mas havia também algo de Churchill convocando para a batalha, e algo de uma versão metropolitana de Whitman. Como me acontece com as grandes páginas que leio pela internet, perdi-a em definitivo, esqueci de sua fonte e de suas circunstâncias principais_ apeguei-me apenas ao que interessa nessa forma filtrante de mídia: a sua energia, a sua música arcangélica, o seu eco. Afinal, o texto, em seu âmbito mais profundo, que só poderia ser entendido depois que o suicídio de Wallace lhe limpava de todas as demais interpretações equivocadas, maldizia a distração perpétua da televisão e da internet.

Se tivesse lido tal ensaio enquanto Wallace estivesse vivo, tal iluminismo de contramão não teria me indicado nem distantemente a morte do autor; mas sua leitura póstuma só confirmava a certeza inexorável de que ele não aguentava mais. No momento em que depositava o último ponto final no texto, Wallace já sabia o que tinha que fazer. Na certa ele tinha tudo muito terapeuticamente controlado, a depressão, a fé de que, afinal, o caminho geral para a destruição por qual anda a espécie não é uma certeza; acima de seu subconsciente que havia decretado em segredo a sentença incontornável, boiava todos os singelos brinquedinhos da resistência que simulavam ter vencido.

Wallace não foi um artista qualquer. Seu romance de mil páginas está programado para ser lançado no Brasil ano que vem. Não há histórico de drogas, como o que levou ao suicídio um outro ícone norte-americano como Kurt Cobain. Não há a possibilidade de um erro de dosagens de antidepressivos, como o que levou à morte o magnífico Nick Drake. Sofria de depressão desde muito cedo, e, ao que tudo indica, tal depressão foi levado a graus exacerbados pelo seu primor cerebral. Lacan dizia que devemos evitar o excesso de informações. Penso aqui com meus botões que foi o excesso de informações que levou alguém brilhante como Wallace ao suicídio. Se eu sofresse de depressão, jamais procuraria auxílio nos livros. Também não procuraria refúgio no dinheiro_ um irmão de uma antiga namorada se matou quando sumiu de suas contas o último centavo. Viveria sob o conforto de um amor envelhecido, que dispusesse a ver meus desabafos sobre dores articulares como homilias religiosas, e me cobrisse gentilmente os pés quando fosse se deitar na cama ao meu lado. Nada mais instrutivo contra o suicídio que os filmes dos irmãos Coen. Excesso de lucidez não significa profecia. Maiacovski se matou por excesso de lucidez; Benjamin idem; e, ironia das ironias, a História iminente provou que ambos estavam constrangedoramente errados. Se tivessem persistidos um dia (Benjamin), ou anos (Maiacóvski), veriam que a aleatoriedade dos acontecimentos serve muito mais para manter a homeostase da existência do que para destruí-la, e que o horror é uma enganosa e ingênua miopia quanto às demais prerrogativas. Do alto da erudição e conhecimento, o melhor para a sobrevivência é deixar de lado as Grandes Verdades e dar ouvidos à vox populi mais banal: nada melhor que um dia após o outro. 

Penso que Wallace sucumbiu às distorções alucinadas da exuberante vida americana, como precaviu Bellow, e não foi forte o suficiente para perceber que tudo não passava de alucinações. Posso estar sendo injusto, mas essa é a forma de otimismo mais acentuado a que eu posso chegar. Isso pode estar sendo provocado pela leitura de Tolstoi, pela indignação que vejo crescendo pelo mundo... Talvez haja um derivado da hipótese de Gaia para a antropologia e estejamos destinados à salvação através daquilo em que menos apostávamos que ela veria: o acaso indiferente.

24 comentários:

  1. O suicídio foi um tema que andei abordando no meu mestrado. Era um tema que eu andou me perseguindo, ou melhor, eu que andei perseguindo.

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  2. http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-25/despedida/a-liberdade-de-ver-os-outros

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  3. Eu já vi casos patológicos de suicidas em potencial, Cassionei, e já beirei o vazio insuportável que leva a isso (escrevi sobre isso num post entitulado "Azulejos"). Mas deploro tudo o mais que leve a ele que não seja meramente glandular_ o que, por si só, também, já é deplorável: acabar-se por sedução enzimática.

    O caso é construírmos uma fortaleza de proteção de razões para continuar-se vivo. Eu tenho a paternidade, a tranquilidade, as belezas singelas da tarde, os livros.

    Outra coisa é um conselho que Aldous Huxley deu e que levo como frontispício a essa fortaleza: jamais levar a sério a literatura e os livros. Simular levá-los a sério, mas só. Nossa infância no conhecimento ainda é gritante.

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  4. Paulo, tu és o gênio da lâmpada, meu chapa!!!

    É justamente ESSE o texto de Wallace a que me refiro. Quando vi a história dos peixinhos, recordei de súbito.

    Obrigado!

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  5. Quando se toca em temas tal qual o suicídio, creio que se é necessário respirar um milhão de vezes!...

    A maior lição de moral da minha vida me foi dada por um amigo esquizofrênico que me disse, certa vez:

    "Ah, Ramiro, você idealiza a loucura!
    A loucura, cara, é uma doença!"

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  6. No meu caso, o meu estudo sobre o tema se centra sobre as obras ficcionais, os personagens, não sobre os autores. E como o meu professor me disse, temos que levar, como eu levo, o assunto com humor, apesar de ser tão duro.

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  7. Penso que o suicídio é a insistência humana com ritos de passagem, a indicar uma esperança avessa à razão no triunfo de uma lógica perversa.

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  8. Não consigo ver a questão do suicídio com dureza. Ramiro, meu professor de psiquiatria dizia - "Ser louco não é pra quem quer, é pra quem pode", que uns até podem amar a loucura ou se sentirem disfuncionais, mas o buraco é muito mais embaixo. Já pensei muito em suicídio, já me angustiei muito, mas sou terrivelmente normal. Talvez isso me impeça de atingir certos níveis. Se não posso atingí-los, como julgar quem os atinge?

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  9. De nada. Li o texto na revista mesmo, em 2009.

    A imagem do supermercado insuportavelmente cheio me é ainda mais marcante que a dos peixinhos.

    Até.

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  10. Valeu, Paulo. Fui no monte de revistas Piauí que tenho estocado nos fundos de casa, e achei o texto no número 25. Há também um conto muito bom do Nabokov.

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  11. Querida Caminhante, se porventura eu encontrasse o seu professor teria extremo cuidado. Creio que atravessaria a rua porque um psiquiatra que, de boca cheia, diz que “a loucura não é pra quem quer, é pra quem pode” esse, sim, efetivamente, é insano. Tal ideologia é elevar exponencialmente a idealização da loucura. Foi justamente contra tal aberração que meu amigo esquizofrênico alertou-me.
    Esse vazio fraseado “… não é pra quem quer, é pra quem pode” é um exemplo típico de uma construção linguística que denomino de “guarda-chuva”, isto é, serve para qualquer coisa e, portanto, não serve pra nada. Caminhante, vou lhe dar um exemplo típico: quando do início de meu mestrado, 1980, uma das primeiras coisas que meu orientador, à época, me disse foi essa pérola: “ pós-graduação não é pra quem quer, é pra quem pode”. Sacou? O que está por traz dessa afirmação é uma visão de mundo alienada, elitista, descontextualizada, por ser uma mentira social, pois muita gente poderia ser pesquisador, contudo, historicamente, muitos, muitos, muitos, que são aptos, concomitantemente, são impedidos de qualquer acesso à academia.
    Vou adotar um critério muito discutível à argumentação a seguir. Vamos admitir que o critério da Mensa, organização internacional associada aos superdotados, seja correto, isto é, apenas 2% da espécie humana possui um QI acima de 133. Ora, para se fazer ciência a sério, creio, dentro desse critério, volto a lembrar discutível, um QI entre 120 a 133 seria suficiente, ou seja, entorno de 5% da espécie humana. Continuemos. Para facilidade de raciocínio, vamos supor que a população brasileira fosse de 200 milhões de indivíduos. Logo chegaríamos que, aproximadamente, 5 milhões, dessa presente geração com idade superior a 25 anos, estariam aptos a qualquer curso de pós graduação. Ora, sem dúvida, isso não é a nossa realidade. Logo, a afirmação supracitada do, dito, acadêmico é, pra dizer o mínimo, um preconceito de classe.

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  12. é óbvio que:
    1) estou falar de cursos de pós graduação "stricto sensu"; 2) e 5 milhões já é um montante preconceituoso, talvez o real se aproximasse de 10 milhões.

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  13. Errata:
    no comentário principal, o correto é "por trás". "Por traz" é um erro. Desculpem-me.

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  14. Sinto ecos de O Mito de Sísifo na conclusão do ensaio. "Talvez haja um derivado da hipótese de Gaia para a antropologia e estejamos destinados à salvação através daquilo em que menos apostávamos que ela veria: o acaso indiferente."
    Quero concordar com você assim como gostaria de aceitar a verossimilhança das palavras de Camus. A de que o homem absurdo é possível. De que esse herói que arranca forças dos próprios trabalhos inglórios e sisifuseanos e que encara com grimace alucinado o sol que queima indistintamente a bons e maus é o antídoto para o ofídio que carregamos desde o primeiro defloramento de nossa inocência.
    Oxalá, meu amigo.
    Continua escrevendo muito bem. E continua me deixando invejoso da sua liberdade e da voz literária que achou para si.

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  15. Grato, Luiz.

    A melhor coisa, a que desperta mais esperança, é essa atmosfera de saturação que eu vejo estar por todos os lados. Parece que mesmo entre os indiferentes há um vagar de olhos que anuncia um desconforto.

    Na verdade ainda não retirei meus Camus da estante. Estou envolvido com uma determinada classe de escritores construtores, que esteve desprezada por um século e agora torna a ser ouvida: gente como Tolstoi e Tagore.

    Há um livrinho do Tagore (fui um grande leitor dele) em que ele diz que é necessário muita coisa para matar um homem. Em plena época da afirmação do existencialismo ocidental da metade do século passado, ele escreve tal coisa. Fiquei muito tempo achando tratar-se de uma figura retórica, mas depois cheguei à mesma conclusão. Cosmológicamente, a vida na Terra é um absurdo. Não deveria ter acontecido. Essa improbabilidade da nossa extrema leveza é um fator de otimismo

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  16. Ramiro, por todo contexto, acho que expressei mal o que meu professor disse. A frase queria dizer que a loucura tem um componente físico, disfuncional, que não se escolhe ter. Era uma piadinha. Bem, não vou falar mais do que faz tanto tempo...

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  17. A máxima lucidez leva ao niilismo, que é a negação das ilusões; e, como as ilusões são o motor da vida, o niilista que realmente captou o vazio da vida não vê razão para prosseguir. E, de fato, não há razão nenhuma.

    Já escrevi dois contos com esse tema.

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  18. tou sem tempo, mas mta boa a discussão aqui. bela argumentação do ramiro. "guarda-chuva", é verdade, tem mto isso.

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  19. Qto à "máxima lucidez", opa, que legal alguém achar possível chegar a ela, não?
    Nem tanto...
    pra mim, "a máxima lucidez" não é um lugar, é uma força. achei ótima essa visão do wallace, pois a que parece superar o homem do subsolo nisso, na força.

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  20. Ninguém disse que a "máxima lucidez" é um lugar, seu jumento. E ela não é algo sobre-humano.

    A máxima lucidez é uma força? Para de fumar.

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  21. Calma, João. Não queria dizer isso_ e, no stress característico a que os estudantes estão submetidos no final de ano, talvez seja até contraprodutivo_ mas, infelizmente, sou BEM mais velho que você. Então, baseado na minha admiração pelo que vejo da busca de esclarecimento demonstrada em seu blog: moderação, cara! Moderação e humildade, as duas coisas mais preciosas que gostaria de ter ouvido como conselho quando eu tinha a sua idade.

    Abraço.

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  22. Eu havia chegado em casa nervoso.

    E você sabe que eu sou moderado. Humilde sou também, de certa forma. Mas não gosto de que zombem do que eu digo nem de que me deem conselhos de maneira que eu pareça um tolo. "Sou muito mais velho, tenho mais experiência que você, meu jovem." Não gosto disso. Há coisas que podem ser compreendidas e aprendidas antes da idade avançada: basta o bom-senso e a inteligência. Muitos são burros, só aprendendo o óbvio quando maduros e vividos, e isso os leva a pensar que tiveram grande progresso. Não é seu caso, creio, mas eu queria dizer.

    Abraço.

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  23. "antes da idade avançada"

    Pô, também não sou tão velho assim. Depois dos anos da adolescência, tudo é progresso, em todos os sentidos.

    E desencana. De tolo você não tem nada. O conselho acima foi ao João nervoso.

    Abz.

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